O DIA-A-DIA NA QUINTA DOS FRADES (OLIVEIRA DO DOURO, VILA NOVA DE GAIA) – 2ª PARTE

Na edição de junho de 2020, tivemos a oportunidade de compreender como era o dia-a-dia na Quinta dos Frades desde os longínquos tempos do século XVII até há alguns anos atrás. O testemunho de Maria Ferreira, que lá viveu mais de 50 anos, foi fulcral neste processo de investigação. Contou-nos a mesma que o portão da quinta nunca estava fechado (“só encostado”).

Na segunda metade do século XIX, havia muita gente interessada quer para trabalhar na Quinta dos Frades, quer para a visitar. Tantas que, ao domingo e de barco a partir da Ribeira do Porto, eram feitas excursões até à propriedade.  “Juntavam-se ali no adro da Igreja dos Frades, mas fora da quinta, embora muitos pedissem para entrar, visitar e nós deixávamos”, recorda Maria. O “Senhor Doutor Pinto d’Avintes”, um médico da freguesia vizinha, também era presença assídua nos bosques da Quinta dos Frades e nunca ia sozinho. Acompanhado dos seus familiares e/ou amigos, “passava lá o seu tempo” e, no São Martinho, assavam-se castanhas e bebia-se vinho, tal como pedia a tradição.

Não é difícil imaginar a alegria que, naquele lugar, era vivida! Mas o que tinha afinal (e tem, embora em ruina) esta propriedade que tanta multidão atraía? Bem, além de toda a estrutura conventual do século XVII e de uma igreja com a mesma tipologia da Ordem Carmelita Descalça, a propriedade era, ainda, adornada com um lago artificial, que, através de bicas perfeitamente esculpidas no granito, faziam brotar a água fresca da mina; também haviam belas cameleiras, diversas árvores de fruto, entre tantas outras coisas. Elementos naturais e artificiais que, ao longo do tempo, conferiram sempre um certo misticismo próprio ao lugar, fabulizaram diversas narrativas e despertaram a atenção alheia.

Há mesmo quem afirme que ali existe um “túnel subterrâneo” que faz a ligação, através do rio Douro, até à margem oposta! E também existem estórias de habitantes oliveirenses que dizem tê-lo percorrido! A Maria não o confirma, nem tampouco o desmente. Na verdade, ela apenas conhece a entrada desse “túnel” que, segundo esta, é “ali mesmo na esquina do convento, no atual muro da quinta”, mas nunca se arriscou a conhecer-lhe o traçado. Acrescentou, ainda, que “há quem diga que, antigamente, os que morriam no Porto eram transportados para a quinta através desse túnel” e rapidamente faz a associação desses cadáveres com os que se encontram sepultados na igreja, em que os túmulos, na década de 80 do século passado, foram lamentavelmente vandalizados.

Na verdade, tratam-se, pelo menos, dos restos mortais, quer do fundador da Congregação de Nossa Senhora da Conceição, D. António Leite de Albuquerque, e de Marcelino Máximo de Azevedo e Melo, o 1º Visconde de Oliveira do Douro e fundador do atual Banco de Portugal.

Os proprietários da quinta, de acordo com o testemunho de Maria Ferreira, nunca se opuseram e/ou desautorizaram as visitas ao local, compreendendo, talvez, o valor patrimonial existente. Naquele tempo, o proprietário da quinta era o Dr. Gaspar da Costa Leite, sucedendo-lhe mais tarde o seu filho, “um homem muito rico” e que tinha “tudo, em terra, até à Igreja Paroquial de Oliveira do Douro”, lembra Maria. De facto, não é só Maria que o perpetua na sua memória, a própria toponímia da freguesia o eternizou, dando o seu nome à rua que atualmente dá acesso à Igreja Paroquial, em homenagem à parte do terreno por ele cedido à Igreja no sentido de alargar os domínios territoriais desta instituição. “Ele era boa pessoa”, confessa-nos Maria.

Como é que de um passado nobre, intensamente vivido e aberto à comunidade, se passa à condição de ruina e fechado? Foi esta a questão que colocamos a Maria. “Ainda me lembro que quando os netos venderam a quinta, que o tinham feito sob a condição dos futuros proprietários fazerem obras à igreja e entregá-la à freguesia… Mas isso nunca vi acontecer! Era uma igreja bonita e no meu tempo ainda lá se celebravam missas por um padre que os donos traziam”, lembra Maria. Hoje, a Quinta dos Frades é propriedade do grupo Yeatman e, já no tempo de Maria, a cobiçavam. Embora, antes de chegar às mãos deste grupo, tivesse pertencido primeiro ao “Senhor Antero” da Quinta da Paradela, na agora União de Freguesias de Pedroso e Seixezelo, o qual estava ligado ao transporte de mercadorias e vivia proximamente ao Jardim de Soares dos Reis, em Vila Nova de Gaia. Maria “não sabe ao certo” quem era este “Senhor Antero”, mas sabe que foi ele quem vendeu posteriormente a Quinta dos Frades ao grupo Yeatman. Hoje, é o refúgio dos proprietários deste grupo e, em boa verdade, continua a cumprir um dos seus papéis iniciais, o de afastamento mundano, o qual também foi sentido quer pelo fundador da Congregação, quer por aquele que ali escolheu passar aqueles que viriam a ser os momentos finais de uma vida longa, Marcelino Máximo de Azevedo e Melo.

 

* Fábio Soares é natural da freguesia de Mafamude, em Vila Nova de Gaia, e residente na freguesia de Oliveira do Douro, também no mesmo concelho. É licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado na mesma área pela Universidade do Minho. Participou em diversos projetos de investigação em Arqueologia e foi o responsável pela organização e inauguração da Sala Museu Silva Leal, no Instituto Profissional do Terço, no Porto. Hoje, além de trabalhar na área do ensino, onde leciona a disciplina de História, é Sócio-Gerente da empresa Fábio Soares – Serviços de Arqueologia que, entre outros serviços, se dedica à divulgação do património cultural.