O NATAL DE ANTIGAMENTE

Ornilda de Andrade vive no Lar Augusto Ferreira Cabido no Pico da Pedra e Isabel Arruda na freguesia da Maia. Ornilda com 88 anos e Isabel com 73, falam sobre a época festiva que se aproxima.

 

 

Ornilda e Isabel têm em comum o facto de terem vivido na infância um Natal diferente ao dos dias de hoje, mas, em simultâneo, eram Natais diferentes para ambas. Em comum a família, a paz, a alegria e o Menino Jesus.

O AUDIÊNCIA Ribeira Grande recolheu o testemunho de cada uma: Ornilda de Andrade, por se encontrar confinada no Lar Augusto César Ferreira Cabido, escreveu sobre o tema, e Isabel Arruda conversou com o AUDIÊNCIA sobre o Natal da sua infância.

 

“Não tínhamos prendas, mas tínhamos muito amor”

Isabel Arruda é nascida e criada na freguesia da Maia. Atualmente, aos 73 anos, frequenta o Centro de Convívio da Casa do Povo da Maia bem como o curso de renda, passatempo que não descura no dia a dia. Em entrevista ao AUDIÊNCIA, recorda a forma como festejava esta época na infância.

 

 

O Natal dos tempos passados

Isabel Arruda recorda com saudade os tempos que já lá vão. Descendendo de uma família humilde, nunca houve carência de amor e alegria na época natalícia.

“Eu era de uma família muito pobre. Nessa altura, a gente fazia uns biscoitinhos e se, por acaso calhava, cozia-se um pouco de massa, muito pouca… matávamos uma galinha, das mais magrinhas que estavam no quintal, porque as mais gordas eram para pôr ovos”, começa por dizer a anciã.

Um galho de árvore era fancado no chão do quarto de cama da casa onde vivia, e que albergava a ela, aos dois irmãos e aos pais. Na altura não havia luzes de Natal, bolas ou fitas para decorar aquele símbolo de Natal. No entanto, não deixava de ser decorado. Isabel conta que “enfeitávamo-lo com uns figos passados que havia numas cestinhas”, e quem lhe dera que houvesse dessas cestinhas agora, para recordar os tempos passados. Essas cestinhas, em conjunto com as tangerinas que a mãe comprava, faziam de enfeite na árvore de Natal.

“Passava um senhor das Furnas numa carroça vendendo tangerinas e laranjas. Então, a minha mãe escolhia as tangerinas que tivessem um pezinho para amarrar e pôr na árvore”, explica Isabel, recordando entre sorrisos que ela e a irmã, como dormiam naquele quarto juntamente com os pais e o irmão, “à noite quando nos deitávamos, íamos buscar um figo ou tangerina e comíamos na cama. Era um Natal abencoado!”, diz. “Não tínhamos prendas, mas tínhamos muito amor!”

A primeira prenda que Isabel se lembra de ter, foi um pequeno tacho de alumínio. Nesse ano, a irmã e o irmáo receberam uma das cestas de figos.

“Antes de irmos para a Missa do Galo”, diz, “minha mãe mandou-me pôr uma chinela velha na chaminé. Quando cheguei, vi aquele tachinho e fiquei radiante de alegria!”.

Os tempos eram outros. Vividos com menos do que hoje em dia, mas, afirma, com mais alegria. Hoje em dia são mais os “enfeites”, os “brilhos” e as luzes, mas também são mais os desgostos.

“Íamos à Missa do Galo na noite de Natal, e o dia passávamos em casa. Nunca fomos pessoas de andar a visitar e a tomar «calzinhos» [expressão micaelense para pequenos copos de bebida alcoólica]”.

No entanto, na passagem de ano, naquele humilde quarto recebiam alegremente os jovens rapazes que iam pelas portas desejar bom ano.

“Estou a ver meu pai, em ceroulas pelo quarto, com uma garrafa a dar ‘calzinhos’ aos rapazes. Lembro-me de eles dizerem «eh, meu tio, esse ‘calzinho’ não está bem cheio», e meu pai respondia «isso está bom, que é para não fazer mal a vocês!». Mas na verdade, as garrafas de licor eram escassas, e era necessário dar a todas as visitas.

Hoje em dia, Isabel também faz os seus próprios licores, mas com “as medidas certas”. Antigamente, em casa dos pais, “a minha mão fazia com muita água e pouco álcool, porque o dinheiro era pouco, mas agora faço como deve ser”.

 

“Agora passamos o Natal de uma forma diferente”

“Casei, tenho dois filhos. Agora passamos o Natal de uma forma diferente”, diz a maiense.

No entanto, depois de se casar, festejava a época com os filhos e com o marido, nunca esquecendo de ir levar um “tachinho com bacalhau e batatas” aos pais e ao tio que, por motivos de doença, não saiam de casa.

Durante muito tempo foi assim, mas quando os filhos casaram, a ceia de Natal passou a ser em casa de Isabel, com toda a família reunida. Comem o tradicional bacalhau e depois vão à Missa do Galo. “Quando voltam, trocamos os presentes. Os meus ficam aqui debaixo da árvore de Natal, depois os meus filhos levam-me as suas casas e vou buscar os meus presentes.”

A alegria com que se vive a época continua a existir. São tempos de reunir a família, e é esse o espírito de Natal que sempre viveu.

 

As pandemias do passado e do presente

Se há algo de que Isabel Arruda sente falta, é do Centro de Convívio da Casa do Povo da Maia, onde se encontrava com os colegas e amigos. Por estes dias, as atividades ainda não foram retomadas devido à situação pandémica por que vivemos. Mas não é por isso que a anciã esquece os amigos, e até lhes dedica as quadras que fez.

“Na primeira fase da pandemia, fiquei de rastos. Vivi-a com muita intensidade porque o meu pai viveu e foi doente da gripe espanhola”, uma gripe pandémica que terá feito mais de 50 milhões de vítimas.

“Quando esta pandemia chegou, meu pai deveria ter entre oito e 10 anos. Os seus irmãos e meu avô estavam todos nas suas camas, e meu pai estava num cantinho, tapado com uma saca de lona”, recorda tristemente, por a situação de antigamente ter sido vivida em diferentes condições.

Isabel conta que acredita ter sido a água que curou o pai. Em especial, a água da “fonte velha”, que fica “a quem vai para a Lombinha da Maia”.

“Quase todas as casas de antigamente tinham uma copeira”, começa por descrever. “Em casa de meu pai havia uma, então na copeira lá estava uma jarra de barro cheia de água da fonte velha. Deu muita sede a meu pai e bebeu muito daquela água. Ao fim de um bocado de tê-la bebido, sentiu-se melhor”.

Na altura, “havia uma senhora que andava a distribuir pelas casas café com leite” duas vezes ao dia. Depois de ver o seu estado da manhã, cria que o fim da vida daquele jovem de oito anos estava perto do fim. No entanto, “quando a senhora chegou à tarde para dar a nova chávena de café com leite, ficou admirada ao ver meu pai melhor”. Se foi milagre da água da “fonte velha” ou não, nunca se saberá. “Foi porque a sua hora não tinha chegado”.

 

 

“Sou das que acreditam no amor”

Chamo-me Ornilda, tenho 88 anos e vivo há 16 meses no lar do Pico da Pedra.

Não sou escritora, mas vou falar-vos do que é o Natal para mim.

O Natal para mim é sobretudo o nascimento de Jesus e só depois a festa da família. Enquanto criança e jovem, o Natal era mais religioso. A família ia à Missa do Galo e à do Dia de Natal. Não havia a tradição da ceia de Natal ou do bacalhau e não havia árvore de Natal na casa dos meus pais. Fazíamos um altar com vários degraus onde se colocavam laranjas, tangerinas e trigo verde porque dava frescura. No último degrau colocava-se o Menino Jesus de pé.

Não havia troca de prendas e os brinquedos não eram novos. Cheguei a receber louça de barro dos meus pais, depois uma máquina de costura, um ferro de engomar e, por fim, bonecas de papelão feitas com meias.

Não havia bombons, passas, frutos secos, bolos ou quaisquer outros doces. Tínhamos figos passados de alfarroba, massa sovada, uns biscoitos e uma mesa com chocolatinhos, os quais chamávamos de “cigarros de chocolate”.

Hoje, dirão que é pouco, que era um Natal pobre. Mas era um Natal cheio de amor e de espírito de família, de fé, onde o Menino Jesus era a figurinha principal.

O Natal de hoje é muito diferente: é um Natal onde as figurinhas centrais são o Pai Natal, a árvore de Natal e as prendas, que quanto mais caras melhor. O Menino Jesus já não tem o lugar principal. É um Natal consumista, onde a ementa é escolhida e discutida durante dias e as prendas têm de ser as melhores. Mas as pessoas serão mais felizes? Não acredito! Sou das que acreditam no amor, no espírito de família e no Menino Jesus.

Do Pico da Pedra, no lugar onde vivo, confinada em casa com as minhas companheiras de lar por prevenção devido à COVID-19, desejo-vos um Natal com saúde, amor, paz e com a bênção do Menino.