OS RAPAZES DA RUA (5)

Diziam os mais velhos que “o diabo nunca quis nada com rapazes”, e também se ouvia dizer que “os rapazes são o poder do diabo”.

Na minha fraca maneira de compreender as coisas sempre  entendi estes ditos. Visto que os rapazes da rua arranjavam sempre maneira para se divertir, e nunca precisaram de cafeína nos seus cérebros nem nas suas artérias sanguíneas. Corriam, saltavam, falavam, gritavam, riam, choravam, e irritavam aqueles que nos seus cantinhos queriam silêncio e tranquilidade.

Ai daquele vizinho que mandava calar os rapazes que brincavam perto da sua porta. Tornava-se inimigo número um, e nunca mais tinha sossego, enquanto aquela casa habitasse. Apareceu um destes na minha rua, e foi morar para a casa que era do Mestre António Maneta, sendo logo apelidado pela rapaziada de “Rei da Rua”. Impunha respeito. Era o Serafim. Bombeiro de primeira classe. Para além de ser alto, andava sempre com ovos debaixo dos braços e mantinha uma posição extra-vertical quando se movimentava de pé. Seus filhos eram mais novos do que a mancha dos putos da rua e, por isso, desejava que a frente de sua casa lhes fosse sempre reservada. Impossível à primeira vista, devido à sua localização, na zona fronteiriça da Ponte Nova e São Vicente.

Era ali, descansando as correrias, que os rapazes se sentavam no chão, e brincavam às três-pedras, ou às cartas, e outros jogos. Além disso, a casa tinha uma parede bem direita e lisa, bastante apropriada para o pula-paredes.

A casa do Rei da Rua tinha uma janela com persianas, cujas seguranças para a posição de abertas eram soldados de bronze.

Qual é o rapaz que, passando por estes bonequinhos pode resistir à tentação de mexer com eles?

Se estivessem virados para baixo, um de nós metia-os para cima; e logo outro rapaz virava-os para baixo.

Quando se virava as cabeças para baixo, num movimento rápido de 180 graus, no interior da casa sentia-se uma vibração sonora parecida com a de um dos sinos da Conceição. De fato, esta manobra de virá-los para baixo bruscamente era muito mais divertida do que aquela de os meter para cima.

Dava gosto fazer isso quando tínhamos a certeza que o Sr. Serafim se tinha ido deitar com Dona Gilda, porque o seu quarto de cama era mesmo aquele da janela com persianas. Mas isso não acontecia frequentemente porque havia muitos dias em que o bombeiro só vinha para casa depois do cinema. Após as onze da noite, por assim dizer. E os rapazes bem-ensinados tinham de estar em casa às dez.

Quando se passou a rezar, por tempo limitado, a “missa das onze” na Esplanada Peixoto, Dom Serafim já não morava na Rua de São Vicente.

Um dia, cansada e já sem aço nenhum, Dona Gilda veio à porta, pedir pelas Almas do Purgatório aos rapazes para irem brincar para a canada dos São Jorge, que ficava a dez passos da sua porta.

Ninguém fez caso da mulher, porque toda a gente respeitava a Sra. Mariquinhas São Jorge e sua família, e aquele pedaço de chão, em frente à casa do Rei da Rua, era mais direito e quentinho, porque apanhava mais sol, do que aquele beco sem saída, inclinado que misericórdia.

Se fosse o caso do Serafim ter vindo à porta, no momento em que ele aparecesse os rapazes sumiam-se sem ser preciso palavra alguma. Mas como se tratava de Dona Gilda a coisa ia mais no gozo, sem problema, em modo de divertimento.

Sim, senhora. A gente não faz mais barulho, nem vai tocar mais nos bonecos. É só a demora da senhora ir para dentro, e tudo volta ao normal…

Nisto, Dona Gilda, que não metia medo a ninguém por ser muito mais pequena que o marido, chata, por assim dizer, pediu a dois rapazes para entrar em sua casa; e a um outro, cá fora, para virar para baixo, violentamente, um dos bonecos.

Credo! Realmente, parecia o sino da Conceição, a tocar para a missa das dez!

Dona Gilda falou, e a sua diplomacia ganhou um certo aconchego no entender da rapaziada, em contraste com a  ruindade do marido.

“Vocês dizem que o meu marido é o Rei da Rua. Eu fico contente com isto. Porque se ele é o Rei, eu sou a Rainha… Vocês não são rapazes malcriados, eu nunca ouvi vocês dizerem pragas. Se falassem mal, eu própria iria queixar-me às vossas mães… Eu quero ser amiga de vocês, porque o diabo não quis nada com rapazes, e eu muito menos…”

A partir daquele dia os rapazes da rua passaram a usar o seu ponto de descanso à frente da casa número um da Rua da Ponte Nova. Mas sempre que passavam pela janela de persianas, mudavam os bonecos para cima, ou para baixo, a oposição da maneira como eles se encontravam.

Cremos que em menos de dois anos o Rei da Rua mudou-se de residência. Foi morar para a Ribeira de Baixo, a Rua do Barracão Velho.

Dia de água é dia de pancadas” era outro dito frequente na linguagem dos dias de chuva. Porque a rua não convidava às brincadeiras do ar livre, e as mulheres, ficando fartas de sofrer os rapazes em casa, batiam-lhes por qualquer mínima falha.

A Canada dos São Jorge, que outros chamavam dos  Graciosa, por ali habitar uma família vinda de uma daquelas ilhas, era o fim da Rua de São Vicente, e dava acesso a um velho moinho que já não funcionava.

Ao lado do moinho havia uma cocheira com espaço para abrigar pelo menos duas bestas. Continha uma manjedoira da largura do estábulo, e por cima dela havia um compartimento para armazenagem de folha seca.

Este compartimento serviu várias vezes para um jogo de cartas em dias de chuva. Mas numa destas ocasiões houve alguém que falou mais alto e acordou do “sono vinículo” o Jaime São Jorge, que era um solteirão, morador naquela casa que parecia ter sido outrora apalaçada, com três diferentes divisões arquitetónicas.

Veio o mal-disposto à canada, com uma catana na mão direita, ainda sob influência dos copos que despejara, e começou a bradar, dizendo que a catana estava amolada, pronta a cortar o pescoço de quem o acordasse novamente.

Deixaram os rapazes de utilizar a canada e a cocheira. Puta que pariu ao Jaime São Jorge!

Descobriu-se, então, dois outros locais, que a geração anterior já havia utilizado: a fábrica de blocos e o moinho do Sr. Aurino Taxinha.

Um bom lugar para se passar uma hora de um dia de chuva era o moinho, na Rua da Ponte Nova, se o Sr. Aurino andasse por fora, e se o moleiro não tivesse muito trabalho, em gozo do estado de boa-disposição. O moinho podia albergar quatro rapazes, fazendo-lhes aprender coisas novas.

Do outro lado da rua a fábrica de blocos nunca se poupava a esforços, onde laboravam rapazes musculados e homens fortes. Uns acarretavam as matérias-primas (tufo, cascalho e cimento), outros preparavam a massa que era posta nas formas de ferro, nas quais batia Manuel Canejo com um maço de madeira, tão forte, que se ouvia tanto na Loja do Mestre António, como na Assistência.

A fábrica de blocos só servia de local de brincadeira se o moinho estivesse fechado, ou em ocasiões especiais. O seu interior lembrava um castelo medieval. Mesmo assim, algum corisco de rapaz de vez em quando subia a meda de blocos a secar, e de lá saltava para os montes de cascalho, ou de tufo. Depois tinha que desatar a correr para não apanhar uma coça, não escapando ao risco de ser denunciado.

No moinho, o dia de picar a pedra era bom para ouvir histórias. Os célebres casos que os mais velhos contavam e que as crianças ouviam atentamente quando não tinham “bicho carpinteiro”.

Quando o moleiro estava bem disposto, depois de ter ido “mamar” um quartilho ao Mestre António, às vezes, para se divertir um pouco desafiava os rapazes a brigar entre si. Se o Carlinhos não “guerrava” no Manuel era uma vergonha. Não sabia guerrear. O António Caiador depois de levar duas punhadas do José Chouriço Mouro começou a sangrar! Já se sabe que quando aparecia uma pinga de sangue acabava logo a guerreia. Mesmo assim, a coisa podia tornar-se complicada. Como aquela vez que o Joaguim Florista levou dois sopapos do Jorge Calufa, que para se vingar foi chamar o irmão mais velho. Quando o irmão chegou fez um grande leilão, e a rua se transformou num cenário do dia do juízo.

Se este “guerrava” ou não naquele, tiravam-se as dúvidas: metia-se um pauzinho no ombro de um, e o outro tentava de lá tirá-lo. Mal tocasse, levava logo. Ali não se perdoava! Aquilo era logo: um sopapo, duas chapas, três punhadas… Porque se não fosse assim, os outros rapazes diziam que quem deixou tirar o pauzinho era um grandessíssimo maricas. Um “paneleirim”, na nossa linguagem, se tivesse ficado quieto.

Quis um dia o moleiro ver qual dos rapazes cantava melhor. Fez um lenço cobrir um bocal de uma velha gambiarra partida, ainda ligada a um fio comprido, a fazer de conta que era um microfone. Atuaram dois cantores, sem nenhuns aplausos. O terceiro meteu-se em palco e começou a fingir que cantando estava, mexendo com os lábios e dobrando a língua, sem produzir sons. O moleiro perguntou-lhe o que se passava, e o cantor respondeu: “A luz foi-se embora.” – um verdadeiro retrato do dia-a-dia, que estávamos habituados. Os sucessivos cortes de energia elétrica nos anos setenta.

O moinho a certa altura do ano disponibilizava uma mó para milho torrado, um dia por semana. As nossas lembranças trazem à tona as quintas-feiras. Era neste dia que um saco de leite em pó do dispensário era tão apreciado, porque se misturava o leite com a farinha torrada, ainda quentinha, acabada de ser fabricada. Quando não era possível arranjar um pacotinho de leite, o açúcar ajudava bastante na mistura. A farinha torrada, só por si, consolava. Mas se fosse misturada com leite em pó, regalava. E se esta mistura tivesse açúcar, levava uma alma ao Céu e os moleiros à falência.

Por hoje é tudo. Haja saúde!

 

 

Moí teu alqueire de milho,

Cada grão tinha teu brilho,

Mais belo que a luz da lua.

Encontrei-te no caminho,

Levei-te para o moinho

E fiz dele casa tua.

 

Comi o teu milho torrado,

Que me deixou consolado,

Antes de se tornar farinha.

Oito maquias direitas

Foram minhas contas feitas.

Nem sequer tirei a minha.

 

Fall River, Massachusetts, 17 de Julho de 2022

Alfredo da Ponte