Salvato Trigo, fundou a Universidade Fernando Pessoa, em 1994, com o objetivo de reformular e atualizar o sistema de ensino. Explicando os motivos pelos quais optou por criar um novo projeto de educação em Portugal, Salvato Trigo confidenciou ao AUDIÊNCIA que, a seu entender, a educação e a instrução têm de avançar no tempo. “Não podemos estar a ensinar às pessoas um tempo que já foi. Ora, a Universidade Fernando Pessoa nasce, justamente, com esse objetivo. Com o objetivo de responder a necessidades futuras e não a necessidades passadas”, admite.
Por Lara Ferreira Oliveira e Marília Costa
Para quem, eventualmente, não o conhece, quem é Salvato Trigo?
É um cidadão que fez, recentemente, 74 anos. Nascido no concelho de Ponte de Lima, numa freguesia chamada Estorãos, que fez a escola primária na sua terra natal e estudou depois, a nível do ensino secundário, no Seminário de Braga. Depois estudou, naturalmente, na Universidade, fazendo a sua formação superior na área da fisiologia românica, uma área que se dedica, essencialmente, ao estudo da etimologia e origem das palavras que vêm de língua latina. Fiz depois um doutoramento na área das literaturas da expressão portuguesa com a concentração muito específica das literaturas africanas de língua portuguesa. Fui, durante a minha vida profissional, essencialmente, professor, percorrendo todos os estratos, graus ou níveis de ensino. Portanto, foi uma longa experiência de conhecimento do sistema educativo, desde o nível preparatório, secundário e superior. Exerci, fundamentalmente, a atividade de docente durante mais de 40 anos e, além disso, tive outras atividades fundamentalmente ligadas à gestão de escolas. Desde logo, com uma experiência em Angola, ao ter sido diretor de um colégio, e uma experiência na África do Sul onde fui professor. Tive ainda experiências noutros países, colaborando também em ensino, em processos de graduação e processos de pós-graduação. Do ponto de vista cívico, exerci atividades que têm indiretamente a ver com algum contributo que pude dar também ao serviço público quando fui presidente da Assembleia Municipal do meu concelho, em dois mandatos, embora não consecutivos. E pude, civicamente também, assumir a dimensão de mandatário distrital de candidatura à Presidência da República, na época do Dr. Mário Soares e, depois também do Dr. Jorge Sampaio. Além disto, sou, naturalmente. o fundador da Fundação Fernando Pessoa e, enquanto fundador, sou também o criador das atividades ligadas diretamente à Fundação Fernando Pessoa, que são atividades de educação de ensino superior e atividades ligadas também à prestação de cuidados de saúde. Portanto, a Fundação Fernando Pessoa tem hoje a sua atividade concentrada na Universidade Fernando Pessoa, na Escola Superior de Saúde e no Hospital Escola da Universidade Fernando Pessoa. Sou o fundador deste projeto, o principal responsável por ele e, acontecendo o que acontece a muitos dos criadores num determinado momento viramos escravos das criaturas.
Qual a história da sua paixão pela educação?
A minha paixão é pelas pessoas. E quando se tem uma paixão pelas pessoas tem que se ter uma paixão pela educação. As pessoas, os seres humanos, têm necessidades naturais e básicas, como se alimentar. Mas, durante um certo período da sua existência são crianças, o período durante o qual estamos a ser criados por outros, ou seja, estamos a ser alimentados por outros. Também não falamos durante um certo período da nossa vida, a infância e, portanto, como não falamos em termos da articulação verbal, para nos relacionarmos com os outros, usamos fundamentalmente as mãos. As mãos são o grande instrumento de comunicação e de transformação da humanidade. Toda a transformação que os humanos foram fazendo na sua natureza passou pelas mãos. Durante o período da infância, como não falamos, apontamos, ou seja, usamos os dedos, fazemos aquilo que se pode rigorosamente chamar de comunicação digital, feita com os dedos. No período inicial, usamos os dedos das mãos todos quando precisamos de contar, e contar pelos dedos significa configurar os chamados números digitais, que são os números naturais. Tudo começa pela comunicação digital antes de chegarmos à comunicação verbal. Podemos dizer, de uma forma mais ampla, que começamos a comunicar gestualmente. E essas necessidades básicas naturais, envolvem também descansar. Isto porque, o nosso crescimento e o nosso desenvolvimento dependem da qualidade da nossa alimentação e da qualidade do nosso descanso, que nos vai garantir preservar, manter a saúde que é uma condição essencial para que nós possamos ser úteis à sociedade. Portanto, alimentação e habitação, são os dois requisitos fundamentais para que uma sociedade se possa desenvolver. Depois vêm as outras necessidades que não são naturais porque fazem parte da natureza humana, mas podemos passar sem elas, como o sexo, que é uma necessidade natural, mas não é uma necessidade básica. Depois temos as outras necessidades que não são nem básicas nem naturais, o que chamamos de necessidades sociais, de estratificação social. É ter um carro de uma determinada marca, usarmos sapatos de uma determinada marca, ter uma roupa de uma determinada marca. São necessidades que as pessoas têm para se estratificarem socialmente. Com isto tudo, queria eu dizer que, justamente, as minhas maiores preocupações são, em primeiro lugar, a minha paixão pela educação e pelas pessoas. Ou seja, percebermos que as pessoas só crescem, só se desenvolvem e só têm um grande papel para o desenvolvimento das sociedades, uma vez que sejam educadas. E, aqui, apenas e só para fazer uma distinção entre educação e instrução. Eu diria que a minha paixão é a instrução, mais do que a educação, porque a educação compete, na primeira instância aos progenitores. Educar é simplesmente transmitir valores, e transmitir valores é transmitir, em primeiro lugar, leis morais, onde estão concentrados os valores. A educação é o transporte dos usos e costumes, é o transporte do passado, ou seja, o transporte da nossa ancestralidade. Por isso, costumo dizer que nós educamos com o passado, instruímos sobre o presente e refletimos sobre o futuro. Portanto, a diferença que há entre a educação e a instrução é que a educação é, evidentemente, concentrada na transmissão e aquisição de valores para criar comportamentos e atitudes. Mas nós instruímo-nos com o presente, ou seja, a instrução é a atualização dos valores e instrui-los. Instruir quer dizer atualizar, e atualizar valores é explicar, refletir e, sobretudo, ter a preocupação de nunca ler com os olhos do nosso tempo o tempo dos outros, porque os valores são diferentes. Portanto, não podemos estar com os nossos olhos do presente a fazer juízos de valor sobre esse tempo do passado. E, por isso, é que a instrução não é fundamentalmente valorativa, é sobretudo informativa. Informar e transmitir meios, ferramentas e capacidade de pensar. E a capacidade de pensar significa a capacidade de escolher, ser crítico, analisar e fazer sínteses. E isso é o conteúdo da instrução. Portanto, paixão pela educação, é paixão pela instrução.
O que o levou a fundar a Universidade Fernando Pessoa, em 1994?
Em 1994, o sistema educativo em Portugal era um sistema muito tradicional. A educação portuguesa sempre foi uma educação muito tradicional, mais conservadora, com modelos de transmissão do conhecimento que já não responderiam às necessidades do tempo. E, evidentemente, que a instrução tem sempre que corresponder às necessidades do tempo. Não podemos estar a ensinar às pessoas um tempo que já foi. A instrução pressupõe a capacidade de encontrar modelos, ferramentas e meios para podermos avançar, portanto, não podemos usar modelos que foram interessantes e importantes no século XIX ou século XX, mas que no século XXI já não funcionam. A instrução deve ter sempre em consideração os destinatários das instruções, que são as gerações. A geração atual não tem rigorosamente nada a ver com as gerações de há 3, 4 ou 5 gerações atrás. E, portanto, não podemos ter espaços onde se aprende do século XIX com professores do século XX a tentar estimular alunos de século XXI. Temos que sincronizar, temos que ter a preocupação de que a instrução se faz para o tempo presente e para as gerações presentes. Temos que adequar os conhecimentos que, entretanto, se tornaram obsoletos e temos que encontrar ferramentas, meios e desafios para os novos conhecimentos.
Então, entendeu que poderia, eventualmente, ser protagonista de um projeto de educação e instrução diferente?
O meu objetivo era justamente esse. Era não fazer aquilo que já estava a ser feito, aquilo que os outros faziam, não vale a pena repetir o que os outros fazem. Era tentar analisar bem os sinais dos tempos e ver que necessidades formativas iriam acontecer no futuro. Ora, a Universidade Fernando Pessoa nasce, justamente, com esse objetivo. Com o objetivo de responder a necessidades futuras e não a necessidades passadas. O mote, o logo da Universidade Fernando Pessoa é “nova et nove”. Que quer dizer ensinar coisas novas com métodos novos. Não podíamos continuar, ou não devíamos continuar, a ter o processo de ensino como se fazia antigamente em que uns falavam e outros ouviam e depois tomavam nota para, no momento adequado, poderem ser avaliados, não por aquilo que tinham aprendido, mas pela capacidade que tinham de memorizar o que os professores diziam nas aulas. O processo instrutivo é um processo criativo, por natureza. Tem que haver implicação daquelas pessoas que fazem parte do processo. Essas pessoas não se podem limitar, exclusivamente, a repetir o que os professores lhes disseram. E, portanto, como vivíamos nessa época, um tempo em que o sistema era, de facto, muito tradicional, a preocupação foi engendrar um conjunto de formações que pudessem responder a necessidades futuras. E, por isso, é que a Universidade Fernando Pessoa resulta da fusão de dois institutos que foram também dinamizados por mim. Institutos esses que se destinavam a estudar coisas novas. Era inevitável que, com a evolução da sociedade portuguesa, designadamente, depois de termos aderido à União Europeia, à comunidade económica europeia, o país ia ser transformado. Portanto, a primeira preocupação foi preparar as pessoas para o mercado, ou seja, para a sua empregabilidade, porque, no processo educativo anterior, no processo superior que o país tinha, a empregabilidade não era uma preocupação nem uma prioridade porque toda a gente tinha emprego. Qualquer pessoa que fosse para a universidade, como eram muito poucos, era fácil arranjar um emprego. Um diploma universitário num tempo onde eu tirei o meu, era uma chave que abria as portas todas, era uma chave mestra. Mas depois não. Atualmente, um diploma universitário começa a ser, cada vez mais, normal. Ora, quando um diploma universitário normaliza, isto significa que a quantidade de diplomas que chegam ao mercado é muito superior. E, portanto, é importante diferencia-los, para que esses diplomas, ou alguns deles, possam responder a necessidades. E, por isso, a Universidade Fernando Pessoa, começa pelas ciências do mercado, chamadas Ciências de Informação e de Empresa. Ou seja, uma empregabilidade onde houvesse uma transferência de conhecimento teórico para uma dimensão da aplicação desse conhecimento. Sempre tivemos uma preocupação da transferência do conhecimento e a sua aplicabilidade, ou seja, aquilo a que eu costumo chamar conhecimento útil, porque é quase imoral estar a cobrar propinas a estudantes para aprenderem coisas inúteis. Isso aprendem sozinhos, não precisam de estar a pagar propinas. Portanto, a primeira preocupação foi, justamente, procurar nichos que não estavam preenchidos em termos de formação. Fomos a primeira instituição a criar em Portugal cursos superiores de Marketing, cursos superiores de Engenharia Publicitária, cursos superiores de Relações Públicas, que correspondem, de facto, às chamadas necessidades de mercado. O mercado precisa de gente capaz de comunicar bem, de ser capaz de posicionar um produto, ser capaz de fazer uma divulgação seduzível para a compra desse produto. Depois, fomos para alternativas à formação que, no ensino público não existiam, procurando não repetir essas formações. A Universidade Fernando Pessoa não tem, na área privada, nenhuma formação que eu diria dita tradicional como História ou Direito. Nós fugimos sempre disso porque essas eram formações que já estavam mais que preenchidas, não valia a pena estar a saturar o mercado. A nossa preocupação era, justamente, apostar na empregabilidade e, consequentemente, na formação de pessoas que pudessem corresponder a nichos de mercado. O objetivo foi tentar fazer um processo, um novo projeto educativo que não fosse suplementar, ou seja, que não fosse supletivo àquilo que já existia, mas que fosse um projeto educativo complementar. Foi esse o objetivo.
Que cursos se assumem como uma marca identitária da Universidade Fernando Pessoa, distinguindo-a de tantas outras?
Foi nesta instituição do nosso país que foi criada uma nova disciplina que ninguém conhecia. Criámos uma disciplina nova, naquela época, chamada Gramática da Comunicação. Isto porque o principal objetivo de uma formação superior é saber comunicar, ou seja, ter a capacidade de articular conhecimentos e de, com essa articulação, transmitir aos outros esse mesmo conhecimento. O primeiro objetivo é ser capaz de comunicar o que aprendeu e ser capaz de relacionar o que aprendeu com o que aprenderam os outros. Daí a tal dimensão “nova et nove”. Ensinar a comunicar é, no fundo, levar os outros a comungar connosco os nossos pontos de vista para tentar convencer os outros que os nossos pontos de vista são melhores que os pontos de vistas dos outros. Portanto, a grande Gramática da Comunicação é, eu diria, axial, é aquilo a que nós chamaríamos a coluna vertebral da nossa identidade. É ser uma universidade onde as pessoas aprendem a comunicar e aprendem a comunicar com correção, não apenas formal, mas também cultivar, falar, exprimir-se bem na sua própria língua, não apenas na correção formal, mas também na correção substantiva e na correção moral. Aprender a comunicar é aprender a pensar, e aprender a pensar é aprender a ser crítico, ter um pensamento crítico. Ser crítico é saber escolher. Saber escolher é analisar e depois de uma análise fazer uma síntese e transmitir aos outros a nossa própria síntese com preferência de forma original. O objetivo da comunicação é sermos originais na forma como comunicamos. E isso é possível se tivermos sempre presente que a palavra original vem da palavra latina “oris”, que quer dizer boca. O original é o que sai da nossa boca, não é o que sai da boca dos outros. Na nossa tradição dizemos que gostos não se discutem, é preciso é respeita-los. Mas é aí que surge a originalidade. A originalidade é, no fundo, a implicação de cada um de nós na comunicação de tudo. É essa a perspetiva que eu diria que é mais identitária nossa, a preocupação de nos ligarmos muito às questões de natureza humana e social porque o Homem está sempre no centro de tudo e por isso é que nós começamos também pelas ciências humanas e sociais, depois fomos para as ciências e tecnologias também desde o princípio e, finalmente, entramos nas ciências da saúde considerando sempre o Homem no centro. Isto porque a tecnologia é uma ferramenta que, naturalmente, deve ser posta à disposição e ao serviço doa humanos. Ou seja, nós não podemos estar a desenvolver tecnologias que no fundo são nocivas ao próprio processo de socialização e desenvolvimento dos Homens. Há um neuro psicólogo francês chamado Michel Desmurget que fez uma tese de doutoramento no MIT, nos Estados Unidos, sobre o gesto e a importância que tem o gesto como linguagem cerebral, ou seja, as mãos como instrumento através do qual o nosso cérebro recebe, produz exprime informação. Diz ele que a articulação dos dedos e, portanto, tudo o que é a digitalização da mão humana é absolutamente indispensável para fazer a irrigação dos circuitos neuronais, para que o cérebro funciona bem, onde nós processamos toda a informação que recebemos do exterior. Quando não usamos todos os dedos, estamos naturalmente a constranger os tais circuitos neuronais, alguns dos quais não são utilizados, porque só são utlizados aqueles que recebe o sinal dos dois dedos, aqueles com que a nova geração, a Geração Z, utiliza, o indicador e o polegar. Não usando essa função, necessariamente que o cérebro vai ficando preguiçoso porque não é estimulado. O que significa, que diz esse neuropsicólogo, que a geração atual, a geração do zapping , é uma geração que pela primeira vez na história da Humanidade tem um coeficiente de inteligência inferior ao dos seus pais. É altamente preocupante porque a inteligência antes de ser artificial é natural. Além disso, como é uma geração muito digital no sentido de usar os dois dedos para fazer tudo, incluindo socializar. A socialização que nas gerações passadas era feita com movimento, hoje a socialização é sentada. Portanto, ele chegou à conclusão que na geração atual há uma diminuição preocupante de 25% do volume da sua caixa torácica, porque as pessoas não fazem movimento, não exercitam, etc. Isto só para dizer que, como vos estava a tentar explicar, o processo hoje de conhecimento tem de forçosamente passar pela interdisciplinaridade e de cruzamento de saberes para que nós possamos na verdade compreender o tempo que vivemos. É essa a perspetiva que a Universidade tem, praticamente, desde que nasceu.
Quantos alunos estão inscritos neste estabelecimento? Acredita que, ao longo dos anos, tem havido uma maior procura pela Universidade Fernando Pessoa?
A procura da instituição tem sido constante, dada a filosofia da organização da própria instituição. A instituição está sempre muito atenta ao sinal dos tempos e, como facilmente compreendem, se a instituição se cingisse exclusivamente por aquilo que poderíamos chamar o mercado interno, a instituição iria ter graves problemas. Isto porque o mercado interno, há 40 anos para cá, está a diminuir, por força, simplesmente, da lei da demografia. Desde 1981, aproximadamente, estamos sistematicamente a descer nas taxas de fertilidade e de natalidade, isto significa que nascem cada vez menos pessoas. Ora, se não houver pessoas, naturalmente, que a economia dos bens e dos serviços é automaticamente prejudicada. Evidentemente que dizem, que isso depois fabrica-se para os outros. É verdade, foi o que a Universidade fez quando verificou que a taxa de crescimento da natalidade começava a ser preocupante e, portanto, começamos a sentir os efeitos das milhares de escolas primárias que fecharam no país todo, desde os anos 80 para cá, naturalmente que isso iria chegar às portas da Universidade. A preocupação foi antecipar-nos a essa crise que ainda não está no seu pico, procurando compensar as perdas internas, ou seja, a perda de procura interna, com a busca de procura externa. Começamos a internacionalizar a procura. Em vez de nos quedarmos dentro do território em que estamos apenas cingidos à procura interna, procuramos abrir a uma procura externa. Há onze anos consecutivos que nós temos tido uma procura cada vez maior de candidatos externos, que vêm fundamentalmente de França, Espanha, Itália, Alemanha, e de outros países fora da Europa, a ponto que hoje a Universidade Fernando Pessoa tem representado no seu campus 49 países diferentes. De procura de estudantes que para aqui vêm, não estou a contar com os estudantes de Erasmus+, evidentemente, mas os que se fixam aqui na nossa região para estudarem as diversas áreas de conhecimento, sendo certo que a que tem procura internacional mais acrescida é a da saúde, ou seja, medicina dentária, enfermagem, etc. No mercado interno, a procura tem sido, felizmente, constante. Desde o princípio do ano letivo de 1987/88, quando começamos o projeto que depois deu origem à Universidade Fernando Pessoa, a minha preocupação foi sempre não cair naquilo que eu chamo o efeito do acordeão, ou seja, ter muitos alunos num ano e no ano seguinte reduzir para metade. Nós procuramos sempre a velha lei da vida e de que o caminho de faz caminhando e que se dá um passo depois do outro. Daí que nós nunca sofremos como outras instituições de ensino privado, que, entretanto, até já desapareceram, desse efeito do acordeão. Cresceram artificialmente, aliás, não cresceram, incharam. Evidentemente, quando não compreendemos que inchar é uma coisa e crescer é outra, a nossa preocupação é que nunca se pode crescer abruptamente, temos de crescer aos centímetros e não aos metros. Portanto, mesmo no mercado interno nós sempre crescemos. Crescíamos era 5, 10 alunos de um ano para o outro, não crescíamos 1000 como outros cresceram e depois desapareceram. Portanto, digamos que a sustentabilidade da procura da Universidade é hoje completamente assegurada, e muito compensada no desequilíbrio interno com o exterior. Ou seja, a internacionalização. A universidade hoje tem 48% de alunos estrangeiros. A menos que hajam políticas públicas que sejam capazes de incentivar a alteração da lei demográfica, obviamente que a tendência vai ser crescer com a procura externa, já que a procura interna irá, naturalmente, diminuir por ausência demográfica.
A seu ver, de que forma é que, através do programa Erasmus+, esta instituição de ensino viaja além-fronteiras? Qual é a importância e o impacto na vida dos estudantes?
O programa Erasmus+, diria que foi a grande conquista da União Europeia. É o melhor programa que a UE alguma vez podia ter criado para tentar concretizar aquilo que ainda não foi possível fazer, que é a coesão europeia. De facto, o programa Erasmus+ era completamente indispensável e continua a ser, ainda que tenha de ser corrigido nos seus pressupostos, para promover a integração europeia, ou seja, promover integrações culturais, para que pessoas de proveniências distintas se pudessem encontrar e, foi, de facto, um programa que, desse ponto de vista, tem um resultado altamente meritório. Não só pela possibilidade que deu às pessoas de conhecer outras culturas, outras formas de estar, de ser, de ensinar, etc., fez também com que houvesse uma quantidade considerável de casamentos miscigenados. Para mim, este programa precisa de ser melhorado relativamente às condições de apoio à mobilidade. O grande problema em Portugal é que as bolsas muito reduzidas relativamente àquilo que é o custo de vida. Quando uma pessoa entende que deve ir fazer um programa de mobilidade durante a sua formação superior, tem de contar necessariamente com os custos do mesmo. Nós na Universidade aos estudantes do programa de mobilidade que tenham média igual ou superior a 15 valores, isentamo-los de propinas durante o período da mobilidade. Justamente para que isso sirva como apoio. O problema é que a bolsa nacional do programa Erasmus+ é de tal maneira diminuta que não chega, de facto, para que uma pessoa com alguma dignidade possa estar um semestre a viver num outro país para poder pagar um quarto ou uma residência, para poder comer, ver um espetáculo, enfim, fazer a tal vida cultural e académica para que o programa foi criado.
No que diz respeito aos estudantes que vêm, nós mantemos sempre mais ou menos o mesmo número, entre 100 e 120 por ano. Quanto aos nossos estudantes para o exterior, infelizmente, não temos muita expressividade e devíamos ter, mas nós não sabemos o que mais podemos fazer a não ser isentar esses estudantes do tal contributo que teriam de pagar como propinas e que deixam de pagar durante o período em que estão fora, para acrescentar à pequenina bolsa que lhes dão que às vezes não chega sequer para pagar a primeira semana de alojamento. Há que mexer nisso, há que perceber que é um programa excecional, mas que tem de relativizar as suas regras. Evidentemente que os estudantes universitários, os pais em princípio não ganham o salário mínimo, mas é esse o valor a indexar. Um português que ganhasse 1500€, como ganham em França, já tinha um bom salário em Portugal. Infelizmente, há uma quantidade muito reduzida em Portugal de pessoas com esse rendimento. É necessário perceber que as regras não podem ser iguais para todos, não se pode definir uma bolsa para um estudante em Portugal e um estudante de França, que tem um poder de compra maior. Para um estudante francês que vem fazer Erasmus em Portugal, é vir fazer turismo. Um estudante português que queira fazer Erasmus em França, não vai conseguir porque não tem como suportar as despesas dessa mesma situação.
Na sua opinião, qual é o papel que a Universidade Fernando Pessoa tem junto da comunidade?
Nós procuramos sempre, desde o princípio, assentar o projeto educativo da UFP em três pilares fundamentais: ensino, investigação e prestação de serviços à comunidade. A prestação de serviços que fazemos à comunidade, muita dela é graciosa, caritativa, sobretudo naquelas áreas que são áreas de interface com a comunidade que são as áreas em que nós podemos prestar serviços à comunidade que precisa deles e que não tem condições de os adquirir, porque não tem condição socioeconómica. A área da saúde em primeiro lugar. A grande prestação de serviços à comunidade que fazemos é na área da saúde, fundamentalmente. Nos cursos que aqui temos e em que a comunidade é importante como um parceiro de aprendizagem, ou seja, em que os estudantes têm que fazer práticas clínicas e por isso têm de treinar em pacientes concretos. É por isso que eu digo que os pacientes das nossas clínicas pedagógicas não são clientes, mas parceiros de aprendizagem. Por isso mesmo é que não lhes cobramos como se fossem clientes. A maior parte dos tratamentos que aqui disponibilizamos para essa comunidade, são feitos de forma protocolada com as Juntas de Freguesia e são gratuitos, justamente para que pessoas que vivem aqui na freguesia de Paranhos e outras do Grande Porto, que tenham protocolo connosco, vêm aqui fazer tratamentos dentários que, de outra forma, não fariam porque não tinham dinheiro. O Serviço Nacional de Saúde no campo da saúde oral ainda é muito deficitário. Essa é uma área que a prestação de serviços é feita constantemente, quer na área de Medicina Dentária, de Psicologia, de Enfermagem, das Ciências da Nutrição, na Fisioterapia, na Terapia da Fala… Nas restantes áreas das Ciências Humanas e Sociais e das Ciências e Tecnologias, já fazemos isto em função de projetos de estágio, projetos de bolsas escolares para estudantes que as empresas têm necessidade de determinado tipo de problema para resolver, isso acontece muito na área da informática, em que as empresas querem desenvolver determinados softwares e não têm capacidade, porque são micro ou pequenas e não têm orçamento suficiente para pagarem a uma empresa especializada o fornecimento desses serviços e, então faz um protocolo com a universidade, paga uma bolsa a um aluno de mestrado e com a bolsa o aluno faz o seu projeto de mestrado, desenvolvendo para a empresa. Nós temos vários métodos de prestar serviços à comunidade, agora a UFP é conhecida fundamentalmente por isso, por estar muito próxima da comunidade. Nós temos há vinte e tal anos um projeto ambulatório de saúde pública, onde já prestamos apoio a mais de 500 mil pessoas, digamos que a nossa vinculação à comunidade é muito grande.
Quais são as suas perspetivas para o futuro?
As perspetivas são obviamente de procurarmos antecipar o futuro, que é uma coisa difícil. Sempre tivemos essa preocupação. Temos de estar atentos às tendências. Hoje mais do que outrora, o mundo é uma grande aldeia, estamos todos em contacto uns com os outros, as coisas levam, às vezes, mais tempo a chegar cá, mas vão chegar. O importante é sermos capazes de identificar essas tais coisas que um dia vão cá chegar, embora mais tarde do que já o fizeram noutros países, mas que inevitavelmente chegarão. Portanto, a nossa preocupação em termos de futuro é, em primeiro lugar, consolidar sempre esta questão essencial: a Universidade hoje não serve para os estudantes virem buscar informação, porque os estudantes, hoje, têm meios à sua disposição através dos quais eles podem sozinhos colher a informação até, às vezes, a mais. O que é importante é que a universidade se assuma, claramente, como a casa onde se aprende a pensar. Hoje as universidades não formam para o país, mas formam para o mundo e a mobilidade a que as pessoas estão sujeitas. Portanto, a nossa principal preocupação para o futuro é, justamente, não sermos surpreendidos. Aliás, quando começamos este projeto o nosso mote era, justamente, anteciparmos o futuro. Antecipar o futuro é saber se, de facto, as ofertas formativas que nós hoje temos na universidade vão ser no futuro úteis, ou se, eventualmente, teremos de fazer alterações quer na oferta e nos conteúdos da oferta. A preocupação que temos é essencialmente compreender uma coisa: hoje o conhecimento tornou-se numa mercadoria, num bem transacionável. Na minha geração o conhecimento não era uma necessidade absoluta. A minha mãe era analfabeta, eu ensinei-a a ler e a escrever quando ela tinha 42 anos e, a primeira vez que foi capaz de assinar o nome dela, de entender títulos de jornal, foi como ter entrado no paraíso, assim se vê a importância que o conhecimento tem para as pessoas. Mas naquele tempo, o conhecimento não era um bem de primeira necessidade, hoje é. Hoje ninguém consegue situar-se em sociedade sem passar primeiro na escola. A importância da escola, hoje, é completamente diferente do que era nesses tempos. Tornou-se inevitavelmente uma estrutura absolutamente indispensável do funcionamento das sociedades. O conhecimento tornou-se num bem transacional, o que toda a gente procura. Naturalmente, que a procura por um conhecimento com mais qualidade, cada vez mais útil, é aquilo que vai fazer, cada vez mais, mover as universidades. Inclusivamente, o “Times Higher Education” publicou um artigo com uma reflexão sobre a necessidade de repensarmos em termos universitários, o chamado ensino centrado no estudante. A reflexão que se está a fazer é se essa receita não produziu produto de fraca qualidade. Porquê? Porque quando se centra o ensino exclusivamente no estudante, o que se procura é tratar o estudante como um cliente e garantir a sua satisfação. A satisfação do estudante, pelo menos dos estudantes na maior parte dos casos, é de que lhes seja o mais possível facilitada a vida. Que eles sejam capazes de atingir os objetivos e obterem um diploma com o menor esforço possível. Portanto, se o ensino centrado nele, é necessário ler uma determinada obra, por exemplo, para sua satisfação o professor resume-lhe o texto. Vai-lhe reduzindo o esforço que é necessário para que o conhecimento possa ser mastigado, digerido pelo próprio estudante. O exame é uma coisa que dá cabo da saúde mental das pessoas, então não se faz exame e faz-se outra coisa parecida. Esta tentativa de retirar esforço a quem aprende para colocar do lado de quem ensina toda a responsabilidade está completamente errada e obviamente tem gerado situações difíceis. Porque as pessoas não têm essa experiência paradisíaca de serem eles próprios a descobrir o mundo. Essa experiência é irrepetível e de uma enorme riqueza interior. Quando alguém é capaz de ler um romance de fio a pavio e depois poder discutir com outros sobre a dimensões filosóficas, ideológicas, etc., que esse romance possa ter. Esta tentativa de facilitar o percurso reduzindo o esforço de quem aprende, é contrária àquele velho princípio de que o único local em que o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário. A vida não é assim. O sucesso pressupõe trabalho, esforço, dedicação, envolvimento e também a experiência excecional que temos de utilizar todas as nossas capacidades naturais para partirmos à descoberta, e a descoberta ser assumida de forma singular, ou seja, quando cada um descobre da sua própria forma, o mundo tem outro sabor. O futuro é refletir sobre tudo, sobre a necessidade que nós temos na universidade de procurarmos antecipar o futuro onde este caminho que estamos a seguir, de alguma diminuição do esforço de quem aprende para irmos, fundamentalmente, para um receituário de quem ensina e tornar o ensino como se fosse uma receita culinária para a confeção de um prato, eu acho isso profundamente errado e, no futuro vamos ter graves problemas se não mudarmos a rota. A nossa preocupação é mantermos esta procura internacional, a universidade está perfeitamente consolidada em mercados internacionais, portanto não tem dificuldade nenhuns hoje de atrair estudantes internacionais e procurar também por essa via fazermos a nossa própria avaliação. Ou seja, nós enquanto atraímos estudantes que vêm de outras culturas, outras famílias, uma boa parte dos estudantes internacionais que vêm para aqui, os seus pais também são pessoas de formação superior. São pessoas com espírito crítico, capazes de verificar se a qualidade que os filhos estão a obter é boa ou não. Isso para nós também é um processo indireto de nos avaliarem e, portanto, nos posicionarmos no mercado, aquilo a que em Ciências da Comunicação se chama o benchmarking.
Por fim, para terminar, qual é a mensagem que gostaria de transmitir?
A mensagem é que eu espero que o mundo possa vir a ser um espaço onde todos nós possamos viver, usando sobretudo o velho mandamento do “amai-vos uns aos outros” em vez do “armai-vos uns aos outros”. Eu queria que o mundo pudesse voltar ao mandamento primacial, nós hoje vivemos num tempo em que o mundo se tornou num lugar completamente inesperado, para não dizer completamente destemperado. Isto porque é um mundo que se esqueceu do mandamento do “amai-vos uns aos outros” e começou a praticar o mandamento do “armai-vos uns aos outros”, e isso é extremamente preocupante, perigoso, negativo e totalmente contrário à natureza humana. Nós temos enquanto humanos a obrigação de, pelo menos, aprendermos mais com os animais, porque tudo aquilo que nós sabemos foram eles que nos ensinaram. Nós esquecemo-nos da forma como nos ensinaram porque, como sabem, os animais, enquanto seres vivos e nossos imediatos antepassados, são de facto criaturas que só comem quando têm fome, só bebem quando têm sede e que não matam gratuitamente. Pelo menos, tenhamos a grandeza de perceber que a humanidade se está a detorar cada vez mais porque esqueceu-se de onde vem e está completamente perdida porque não sabe para onde vai. De repente qualquer maluco carrega num botão e faz desaparecer aquilo que nós pensamos como adquirido, que vamos ter futuro. Por isso é que o futuro é um tempo muito preocupante, muito instigante, e ao mesmo tempo, a continuar assim, um tempo muito perigoso.