RECORDANDO DONA ZENAIDE

Como em seguimento da crónica anterior, na qual tentei “glorificar” o Adro das Freiras, não deixaria agora, de modo algum, a oportunidade de falar um pouco de uma pessoa que me deixou uma marca na vida, reforçando, sobremaneira o carinho e o amor à pátria. Graças a ela, comecei a entender que Portugal começava na Ribeira Grande e acabava em Lisboa, em vez de ser ao contrário, como estávamos habituados, com as glórias e louvores que se dava constantemente à metrópole, deixando o nosso berço na condição de um simples servidor do império português. Esta pessoa foi a minha professora das disciplinas de Português e História no espaço de preparação para o ensino secundário.

Maria Zenaide Borges Miranda, conhecida no meio social ribeiragrandense por Dona Zenaide, nasceu a 3 de Janeiro de 1940 na freguesia Matriz, concelho de Ribeira Grande, S. Miguel, Azores. Frequentou o Colégio Ribeiragrandense até ao 5º ano. Após o curso do Magistério Primário lecionou no 1 ciclo nas escolas de Ribeira Seca e Ribeira Grande até 1973, altura em que passou a dar aulas de Português e História na escola preparatória Gaspar Frutuoso até 1989.

Em 1973 o ciclo preparatório teria um ou dois anos de existência, tendo começado a funcionar com o objectivo de eliminar a quinta e a sexta classes, há pouco tempo criadas pelo governo, em regime opcional. A partir de então, quem desejasse o ensino secundário havia de passar pelo ciclo, vindo este, pouco tempo depois, a fazer parte da escolaridade obrigatória.

Por acaso, foi precisamente no ano de 1973 que fiz o exame da quarta classe e entrei na escola nova do Adro das Freiras, quando a Dona Zenaide passou a ser professora naquele estabelecimento. Ali também tive a felicidade e o prazer de ter como professora de matemática a Dona Elvira, outra figura que não esqueço, de quem guardo boas recordações. Mas Dona Zenaide era um rosto familiar, que eu sempre via na igreja, e muitas vezes na minha rua, quando ela se deslocava à tapada, ou quinta, que a família possuía, situada mesmo ao lado da ermida de São Vicente. Como seu aluno, cruzei-me com ela pela primeira vez fazendo de conta que nunca antes a havia visto, pelo que fui logo chamado à atenção, dizendo-me ela que conhecia muito bem os meus pais e irmãos. Bonito trabalho! Tinha de andar na linha, senão…

A irmã de Luís Filipe Borges Miranda, de José Francisco Borges Miranda e de Dulce Maria Filomena Borges Miranda Mota Amaral morava na Rua da Matriz, em casa dos pais, que tinham por nome: José Teixeira Miranda e Maria Guiomar Borges Giesta.

Dona Zenaide era uma senhora professora muito fina, e ao mesmo tempo muito simples, dotada de uma cultura fora do vulgar, e em parte um pouco reservada. Como já mencionei, foi por ela que os seus alunos conheceram cronistas, escritores e poetas açorianos. Introduziu-nos Gaspar Frutuoso e Frei Agostinho de Mont’Alverne, entre outros; e Dias de Melo, que da sua narrativa intitulada “Pedras Negras” nos foi dado trabalho nas aulas depois das leituras em casa.

Dona Zenaide Lecionava História e Português, como já foi dito. Mas, às vezes, dentro da sala nem sabíamos qual era a disciplina que ali se tratava. Sabíamos, sim, que era uma aula da Dona Zenaide, onde muito se aprendia e nunca se pegava no sono.

Dona Zenaide tinha uma redonda caligrafia, difícil de ser igualada ou duplicada. As provas que corrigia, entregues aos alunos para serem assinadas pelos respectivos encarregados da educação, eram revistas por ela para certificação de terem sido assinadas. Graças a Deus, da minha parte nunca foi necessário, em História ou Português, fazer nenhuma falsificação em tais documentos, embora apetecesse, muitas vezes, colocar um sinal + em frente ao “Bom” que poderia ser grande ou pequeno. Sim, Dona Zenaide usava “bom” e “BOM”. Em Português e História, no Ciclo Preparatório nunca conheci um “Suficiente”. Quanto a números, naqueles anos lectivos de 73/74 e 74/75 os valores ainda eram de 1 a 20. Só a partir do ano 75/76 é que se passou a usar a escala de 1 a 5. Foi este o ano da transformação do ensino em Portugal, quando os cursos secundários Geral do Comércio e Liceal se fundiram, dando como resultado o Secundário Unificado. Foi precisamente quando ingressei no terceiro ano, em 1975, que o sétimo substituiu o terceiro, fazendo com que apanhássemos toda a transformação do ensino velho para o novo. Mas isso é outra história.

Dona Zenaide apresentou-nos, com tanto carinho, os poetas ribeiragrandenses, entre outros, Oliveira San Bento, Ezequiel Moreira da Silva e Albano Cordeiro, e dentro da sala de aula apontou um aluno como futuro poeta, que por falta de vontade dele nunca o chegou a ser.

Como o leitor já teve oportunidade de ver, durante o período deste relato deu-se a revolução dos cravos. Estávamos na segunda parte do primeiro ano preparatório. As crianças do Ciclo, de dez e onze anos estavam mais esclarecidas do que gente madura sobre o estado da nação, graças à Dona Zenaide. E no ano lectivo seguinte (1974-1975) estávamos a par de todos os movimentos libertadores das colónias, e de toda a situação do país. Era a História que se estava a fazer. Mas, nem por isso se deixou de estudar a Revolução Francesa, suas causas e consequências.

Nunca serão apagadas da memória as visitas de estudo, das quais há que destacar a da Fábrica do Linho, na Ribeirinha, que ainda funcionava; e a das ruínas do Mosteiro do Santo Nome de Jesus, que foi mencionada na crónica anterior, e que eu não vou repetir por não ser o sino do relógio municipal.

Dona Zenaide ensinou várias gerações, nunca se poupando a esforços. Se os alunos não “encaixavam” à primeira, voltava a explicar, procurando maneiras mais acessíveis. É aqui que se vê o valor de um mestre. Mestra, neste caso. Também nunca parou de aprender, porque entre 1979 e 1983 tirou a licenciatura em História e Ciências Sociais na Universidade dos Açores. No início da última década do século vinte, acompanhando as mudanças que a vida exigiu, mudou a sua residência para Ponta Delgada, tendo terminado a sua actividade docente em 1994 na Escola Preparatória Roberto Ivens.

Mais ou menos na viragem do século, por ocasião de uma visita que fizemos à terra que nos viu nascer, encontrámos a Senhora Maria Zenaide Borges Miranda na Ribeira Grande. Durante a conversa que tivemos Dona Zenaide falou-nos desta forma:

já moro há algum tempo em Ponta Delgada, mas venho muitas, mas muitas vezes à Ribeira Grande; e todas as vezes, quando o carro começa a descer o morro, e se começa a avistar a Ribeira Grande, sinto qualquer coisa apertando o coração. É sempre uma sensação fantástica. É um momento de alegria quando se avista a Ribeira Grande.

Dona Zenaide recebeu o convite de honra para o décimo segundo convívio ribeiragrandense da Nova Inglaterra, que teve lugar em New Bedford, aos 9 de outubro de 2004, no qual participou alegremente, tendo oportunidade de rever velhos (e novos) amigos e alunos. No uso da palavra deu-nos uma nota de satisfação, dizendo que tinha conseguido plantar no coração dos seus alunos o amor à terra e à família. Sem dúvida.

Nos nossos dias, Dona Zenaide ocupa o corpo e o  espírito nas actividades da Academia Sénior da Universidade dos Açores.

Muito obrigado, senhora professora, por toda a paciência, compreenção, carinho e dedicação. Um enorme “Bem-haja” com imensa gratidão.

 

O juízo não me falha

E tenho boa memória.

Quero dar uma medalha

À professora d’História

 

Dona Zenaide Miranda

Fez-me ser mais português.

Eu lhe grito da varanda:

-Obrigado, outra vez!