A SAGA DO ACORDO ORTOGRÁFICO (PARTE I)

Sobre o AO e as mais recentes investidas para a sua anulação vou escrever dois textos: um a sério e outro a brincar, avisando, desde já, que não serei parca em adjetivação. O texto de hoje é o menos sério, o menos profissional, o mais controverso. É um texto para rirmos em vez de chorarmos. Já ninguém aguenta tanta loucura por esse mundo fora.

Aqui estou eu para convidar o povo de Portugal a dar início (comigo a liderar o processo, claro está) a uma nova frente de batalha por uma causa nobre e justa: nós não queremos a anulação do último Acordo Ortográfico. Nós exigimos a anulação de todos os Acordos Ortográficos estabelecidos até hoje e exigimos que nos devolvam a matriz identitária roubada e todas as idiossincrasias que fizeram parte do nosso passado glorioso.

Considerando que vamos encetar uma luta devidamente organizada, com abaixo-assinado nas redes sociais e manifestações populares na rua “contra os canhões lutar, lutar”, então que seja uma luta plena e consciente, em busca da etimologia de todas as palavras destruídas, abandonadas, esquecidas ao longo dos séculos por sucessivas gerações de ignorantes (leia-se os nossos antepassados) que, sem escrúpulos, tiveram o atrevimento de ir mudando a maneira de falar e de escrever em língua portuguesa.

Isto é inadmissível. Há séculos que, em Portugal, se vem delapidando a nossa língua com linguagens que nem o mais astuto cidadão de séculos passados entenderia ou seria capaz de prever tal evolução. Palavras faladas, gritadas, cantadas, leva-as o vento, mas quanto ao texto escrito…. não admitimos mais crimes e desrespeito.

Quando há 800 anos D. Afonso II decidiu redigir o 1º texto oficial de sempre em Língua Portuguesa – o seu testamento num acto propositado de rebeldia para marcar a nossa independência nacional -, estava longe de imaginar o Soberano que o seu tão amado povo o iria trair mudando o que ele ousara registar em pergaminho.
Se D. Afonso II e o povo de Portugal de séculos idos se levantassem da cova e vissem os horrores linguísticos que proliferam em todos os quadrantes, sentiriam vergonha de algum dia terem erguido uma espada para defender esta gente mal agradecida ou de terem partido em viagens perigosas, espalhando a língua e a fé cristã.

Que ousadia foi esta de um povo que não soube acautelar o que tinha de mais sagrado – o seu património linguístico, a casa do ser, o que nos dá vida e alma, o nosso ganha-pão, a nossa subsistência, a nossa saúde mental, o nosso futuro no mundo. A língua, essa graça divina a quem tudo devemos, foi espoliada, roubada, massacrada durante séculos para gáudio de gerações insensíveis à origem das palavras, à etimologia do nosso léxico, único, sem mácula.

Quem a língua portuguesa maltrata má morte terá na certa. É nossa obrigação, pois, erguer a bandeira lusa e ir para a rua com espadas, catanas, paus, canas e pedras defender o legado perdido. Mas queremo-lo por inteiro, sem falhas, sem erros e sem gralhas. Queremos o português original, o de D. Afonso II que, no século XIII, assim escrevia com tanta propriedade e saber:

“En’o a nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temẽte o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de toido meu reino fiz mia mãda p(er) q(eu) depos mia morte mia molier e me(us) filios e meu reino e me(us) uassalos e todas aq(ue)las cousa q(eu) De(us) mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. P(ri)meiram(en)te mãdo q(eu) meu filio infante don Sancho q(eu) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este for morto sen semmel, o maior filio q(ue) ouuer da raina dona Orraca agia o reino entegram(en)te e en paz. E ssi filio barõ nõ ouuermos, a maior filia q(ue) ouuermos agia’o. E ssi no tẽpo de mia morte meu filio ou mia filia q(ue) deuier a reinar nõ ouuer reuora, segia en poder da raina sa madre e meu reino segia en poder da raina e de me(us) uassalos atá q(uan)do agia reuora. E ssi eu for morto, rogo o apostoligo come padre e senior e beigio a t(er)ra ante seus péés q(ue) el recebia en sa comẽda e so seu difindemẽto a raina e me(us) filios e o reino (…)”

Meu Deus, o que foi feito desta língua viril, tenaz, patriótica e original? Está na hora de a termos de volta, acompanhada de tudo aquilo que sempre nos caracterizou, das nossas tradições, da nossa cultura, da nossa identidade, do nosso carácter, da etimologia mais sagrada.

Queremos tudo o que nos pertenceu de volta. Não admitimos que mexam nas nossas raízes épicas de nação que deu mundos ao mundo.

Está na hora, povo luso, de elevarmos o orgulho nacional e pela pátria lutarmos contra os “barões assinalados” que, ao longo de séculos, roubaram a essência da alma lusitana.

Vamos dizer BASTA! QUEREMOS AQUILO QUE É NOSSO! As nossas tradições, os nossos costumes, a nossa cultura ancestral. Vamos exigir que nos devolvam a língua pura, virgem, original, acompanhada de casas de terra batida onde orgulhosamente viviam os nossos antepassados; naus em que partiam à descoberta de novos caminhos marítimos; bestas que os transportavam de um lado para o outro; peixe e carne que cozinhavam em fogo vivo; ruas enlameadas ou empoeiradas onde a maioria vivia uma vida inteira; piratas que os atormentavam; guerras contra Espanha e os mouros; D. Sebastião que está mais do que na hora de se libertar do nevoeiro; porcos e galinhas que passeavam por entre as gentes; roupas toscas e sandálias de madeira; mercados cobertos de moscas, crianças maltratadas; mulheres subjugadas; deficientes abandonados à sua sorte; reis e rainhas e todas as suas cortes; inquisição; Jesuítas e Judeus explusos, Marquês de Pombal.

Queremos de volta o nosso legado histórico e o nosso património linguístico por inteiro. Exigimos coerência na nossa luta. Queremos a essência, a etimologia de cada palavra da nossa língua original e da nossa alma lusa. Somos os verdadeiros defensores da pátria, puristas da língua, vassalos das nossas tradições, arautos da nossa história.
Conto convosco para, juntos, encetarmos a única luta capaz de dignificar os nossos antepassados e o legado deixado por D. Afonso II e pela sua “molier raina dona Orraca”.

Viva Portugal! Viva a língua portuguesa! Abaixo todos os Acordos Ortográficos e todas as mudanças operadas na língua falada ou escrita que o insano povo português ousou aceitar. Libertemos, finalmente, a língua do mau olhado da evolução dos tempos e da desfaçatez de meia dúzia de pseudo-iluminados que têm inventado esses acordos à revelia dos verdadeiros desígnios da língua para infernizar a vida de quem escreve!

 

Graça Castanho
Docente na Universidade dos Açores