“TEATRO E BEBÉS” NO III FESTIVAL DE TEATRO JOSÉ GUIMARÃES

Na nossa ronda pelos artistas e demais criadores teatrais, residentes ou com sede de trabalho em Gaia, para uma reflexão sobre o estado do teatro profissional neste concelho da margem esquerda do rio Douro, marcamos hoje encontro com a atriz Kátia Guedes. Licenciada em Teatro (Interpretação e Encenação) pela Escola Superior Artística do Porto e Mestrada em Estudos Artísticos (Teoria e Crítica da Arte) pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto), iniciou-se como amadora na Associação Sociocultural Vale D’Ouro, onde escrevia, dirigia e representava. Um ano depois, em 2009, já pisava palcos profissionais enquanto aluna de teatro, ao mesmo que ia participando nos mais diversos workshops sobre técnicas de representação, produção e escrita dramática. Passou depois como formadora pela Cooperativa Atlas e como atriz e pela estrutura gaiense ETCetera Teatro, Napalm e Porta 27. Mais recentemente foi cofundadora, com a atriz Inês Cardoso, de “Teatro e Bebés”, um projeto de iniciação ao teatro onde a quarta parede é quebrada, dando lugar a jogos de interação e à participação dos bebés na história, através dos sentidos. O público gaiense poderá apreciar uma das peças deste projeto (“Arco-Íris”), que será apresentada na manhã de 20 de novembro, no auditório da Tuna Musical de Santa Marinha, no âmbito da III edição do Festival de Teatro José Guimarães. Passemos-lhe a palavra:

 

Que objetivos presidiram à criação do projeto “Teatro e Bebés”, que passará brevemente pelo Festival de Teatro José Guimarães, em Gaia, com “Arco-Íris”?

Este projeto, meu e da Inês Cardoso, e abraçado pela [Associação] Primeira Pedra, surge apoiado em duas bases: a primeira prende-se com o facto de adorarmos trabalhar com o público infantil (é clichê, eu sei, mas aprendemos mesmo com os mais pequenos) e a segunda é esta necessidade de educar o povo português a ir ao teatro, acreditamos que “é de pequenino que se torce o pepino” e por isso tentamos conduzi-los para esse caminho com espetáculos pensados para eles. Eu vi o meu primeiro espetáculo de teatro com 12 anos, mas confesso que adoraria dizer que foi com 8 meses como muitos dos nossos espectadores poderão, um dia, dizer.

 

Se quiseres estimular os gaienses a experienciar o usufruto do vosso projeto, em família com seus bebés e demais filhos, como definirias o espetáculo “Arco-Íris”?

O “Arco-Íris” é um espetáculo maravilhoso de se fazer e ver. Resumidamente, acordamos num mundo sem cor e temos como missão “pintá-lo”. Aqui, cada cor é um pequeno universo explorado junto dos bebés e através de diferentes sensações. É delicioso ver como algo tão simples como a cor lhes traz tanta alegria. Se eu fico derretida com as reações, imagino como ficam os pais.

 

Ao assistirem ao espetáculo, será que os pais ganham uma maior consciência da importância do teatro na construção emocional e cognitiva dos seus filhos?

Sim, completamente. As reações são sempre surpreendentes. Mesmo que inicialmente o bebé esteja desconfiado ou até a chorar por ser tudo novo e estranho, rapidamente muda e se apaixona pelo que está a acontecer à sua volta. Estes espetáculos foram pensados por mim e pela Inês mas houve toda uma investigação junto de educadores e psicólogos para percebermos que técnicas usar e que temas seriam importantes abordar. Por exemplo, o uso da palavra (o facto de haver uma história) parece não fazer qualquer diferença se deduzirmos que eles ainda não percebem, no entanto, descrever o que está a acontecer é uma mais valia para eles porque começam a habituar-se à palavra e ao seu significado através da audição, claro, mas também do cheiro, tato ou da visão. Os pais, que conhecem os seus mais que tudo melhor que ninguém, testemunham esse acontecimento: o bebé passa a ser um espectador atento e com vontade de participar e isso é surpreendente.

 

A interação entre a educação e a cultura, articulando matérias curriculares com a prática e fruição cultural, devia ser um pilar da política cultural municipal?

O ideal seria a prática cultural num contexto geral, tanto educacional como de lazer. É urgente, necessário e imperativo que se apoie a cultura, seja de que maneira for. Neste contexto em específico, é importante que se promova teatro na e para a escola, que se dê valor à arte e que se aprenda com ela. O teatro educativo é um aliado na aprendizagem e formação do aluno e, para os profissionais da área (companhias de teatro, atores, produtores, etc.), significa mais oportunidades de trabalho. Vila Nova de Gaia tem muitas escolas e muitos artistas, é injusto que alguns alunos ou escolas inteiras não possam ver o espetáculo porque não têm dinheiro, mas também é triste, que as companhias de teatro vendam o seu trabalho por valores cada vez mais baixos para que possamos continuar a trabalhar, mesmo que não tenhamos muito lucro. Portanto, respondendo à pergunta, claro que [a articulação de matérias curriculares com a fruição cultural] deveria ser um pilar da política cultural do município. Seria um bom começo.

 

Que outras formas de apoio aos artistas, criadores e companhias de teatro residentes no concelho de Gaia deveriam ser consideradas pelo município?

Quando se fala em apoio à cultura as pessoas tendem a julgar-nos porque associam esse apelo só aos pedidos de subsídios. Mas vejamos, nem tudo passa por aí. Eu não acredito que o nosso trabalho deva depender de apoios financeiros, não é saudável e ninguém está a pedir trabalho de mão beijada. Mas acredito na aliança entre os dois mundos, até porque existe uma co-dependência entre eles. Seria utópico nomear as medidas que me fariam mesmo jeito. O que é preciso é conhecer as necessidades de um lado e a possibilidade que o outro lado tem de as satisfazer. Por exemplo, precisamos que a agenda cultural seja mais recetiva aos projetos que aqui nascem e de parcerias entre os nossos espaços culturais e as nossas companhias de teatro. Parece óbvio, não é? Não é. Torna-se óbvio se falarmos dessa necessidade com quem nos pode ajudar e é por isso que, primeiro que tudo, precisamos que nos ouçam, que esta falta de comunicação desapareça, que haja mais diálogo. Só assim é que o caminho para a frente se faz, se seguirmos na mesma direção, porque quando um não quer, dois não dançam, certo?

 

A Câmara de Gaia afirmou recentemente que “a Cultura não parou em Gaia durante a pandemia”. Será um indício de mudança na política cultural no concelho?

Os tempos foram e são complicados, ninguém se preparou para nada disto. A recuperação está a ser muito lenta, mas acredito (pode ser inocente da minha parte, mas acredito mesmo) que houve um maior entendimento, talvez um despertar, para a importância da cultura e a falta que ela nos faz. Gostava que essa consciência permanecesse e significasse mudança. Vamos ver.

 

O que gostarias de ver a acontecer concretamente em Gaia nos domínios da cultura, nomeadamente no que se refere às artes de palco nos tempos pós-pandemia?

Que se encham salas, que se promovam e abracem pequenos e novos projetos, que se proporcionem oportunidades de levarmos a cena o nosso trabalho, basicamente, de termos a hipótese de convencer o público a ir ao teatro em Gaia. Seria um bom começo se se abrissem mais portas, mais salas, mais espaços, porque isso sim é um entrave ao desenvolvimento do teatro em Gaia. Não conseguimos chegar ao Auditório Municipal (AMG) e depois, os outros espaços que nos acolhem (e obrigada por isso) são, infelizmente, de difícil acesso ou desconhecidos. Seria mesmo um bom começo se a agenda cultural de Gaia tivesse mais salas disponíveis, mais diversidade, mais opções. Não faltam projetos, temos bons criativos, faltam lugares.

 

A falta de uma programação regular no AMG tem sido muito criticada. Na tua opinião, esse problema deve ser resolvido com uma companhia residente?

A curto prazo, talvez. Acho que pequenas temporadas de diferentes grupos seriam um ponto de viragem e é mesmo urgente que a programação do Auditório Municipal seja mais dinâmica, mais atrativa. Se o espaço existe e se os projetos anseiam por lugar, porquê manter um auditório municipal assim? Praticamente vazio? Praticamente parado? Abram as portas e as mentes daquele lugar.

 

Há quem defenda que o AMG devia ter uma programação que não se encaixe no lado comercial da arte, que misture géneros, linguagens, estéticas… O que achas?

Acho que deve haver lugar para tudo. Há uma tendência em menosprezar o que é comercial por parte do lado alternativo, ao mesmo tempo que há uma assumida falta de entendimento dessa mistura artística, contemporânea e alternativa por parte do espectador comum. É importante rejuvenescer, mudar, ver coisas diferentes, sair da zona de conforto, mas também é importante voltarmos ao clássico, ao conhecido, ao comercial. O teatro, a performance, a dança, enfim, as artes cénicas, merecem uma casa como o AMG que procure proporcionar em pleno e de forma constante a experiência artística, seja ela alternativa ou comercial.

 

E o outro espaço municipal, o Cineteatro Eduardo Brazão, devia seguir esse mesmo modelo do AMG ou assumir-se como palco de projetos mais experimentais?

Pelo que sei (e perdoem se estiver enganada) acho que [o Cineteatro Eduardo Brazão] funciona maioritariamente como sala de cinema, mas tal como disse, seria bom que mais espaços funcionassem em diferentes vertentes. Esse espaço só alternativo ou só comercial não me parece que seja o objetivo neste momento, não é tempo de atribuir rótulos, é sim tempo de criar mais trabalho no meio artístico e mais cultura, mais vida a Gaia.

 

A terminar, fala-me de ti: além do “Teatro e Bebés”, quais são neste momento os projetos em que estás envolvida e que sonhos desejas realizar num futuro próximo?

Estamos em fase de recuperação. Depois de tudo ter parado, estamos a tentar voltar ao trabalho ainda que aos poucos. Neste momento estou, claro, com o projeto “Teatro e Bebés” que me deixa muitíssimo feliz, estou a dar aulas de teatro a crianças e estou com um espetáculo chamado “Amor e Redes Sociais” no Hard Club, no Porto. Acredito que as coisas vão melhorar. Tem sido difícil, mas esta foi a profissão que escolhi e é inevitável que os meus sonhos passem por aqui. Esta pandemia fez-me perceber isso também. É difícil ser artista, mas é pior não conseguirmos praticar a nossa arte. O meu sonho num futuro próximo? Trabalhar na minha área, trabalhar, trabalhar. Só assim sou feliz.