É impressionante o modo, sem atropelos, como o princípio das celebrações do natal se têm acelerado nestes tempos que correm. Até mesmo no nosso torrão de nascimento, quando tudo começava aos oito de dezembro, agora as iluminações para a época são inauguradas a meados do mês anterior.
Todos nós sabemos as suas causas e propósitos. Porque, afinal, também o Holloween, celebrado a 31 de outubro, está dando muito mais lucros com trajes, máscaras, cortejos e danças, do que o Dia de Todos os Santos, com o milho cozido e as castanhas assadas, o que já fez muita gente trocar o pão-por-Deus pelos bombons das bruxas.
Aqui está lançado um outro tópico, que não faz parte desta conversa, mas foi lembrado, e tem que sair:
Na família onde me vim encaixar não se passava o Dia de Todos Santos sem comer milho cozido. As castanhas por si ficavam esquecidas, devido ao preço. Vinham da Califórnia, e segundo as “bocas ruins”, não eram tão boas como as nossas, dos Açores, que naquele tempo ainda não chegavam aqui, porque o mundo ainda era grande. Milho, sim. Amarelo ou branco nunca faltou p’los Santos e p’las Almas, a 1 e 2 de novembro, respetivamente.
Subdividida a família do José e da Olívia, na sua casa nunca mais houve vapor de água com cheiro a milho naqueles dias. Mas por terem dito aos filhos milhares de vezes que “quem não come grão não é cristão”, os mais velhos fumegam em seus lares, por várias horas, as panelas mais velhas, com aquele cereal, de onde comem também os filhos e netos. A particularidade é que tem outro nome. Vejam só: “Holoween Corn”.
Santos e Santas com Bruxas não fazem farinha. Tio Jacinto que o diga. Porque tal como nós, Também veio da Terra dos Moleiros. Todos aqueles que conhecemos, enquanto praticavam os seus ofícios, defendiam os seus moinhos das bruxarias e dos maus olhados. Pelo lado de dentro da porta, uma velha ferradura para dar sorte, e um frinquinquim (besouro) preso à madeira com um prego, ou alfinete. Por incrível que possa parecer, o sacrifício daquele inofensivo bichinho era um remédio santo, que perdurava muito tempo, sem prazo de validade, até aparecer outro para o substituir.
No país do “melting pot”, aonde as tradições e os costumes das várias etnias não se derretem assim, à toa, como prevê a política de acolhimento, a magia das celebrações natalícias começa com o Dia de Ação de Graças, assinalado todos os anos nas quartas quintas-feiras de novembro.
O dia que se segue também toda a gente conhece: o “Black Friday”. Dia dos centros comerciais, em que alguns retalhistas conseguem fazer um terço do seu lucro anual. Até dos Açores tem vindo gente à América, à caça dos grandes saldos. Uns anunciados, outros de ocasião, enfim, poupanças nunca vistas. Vantagens do mundo pequeno, onde os bolseiros médios se acham grandes e juntam o útil ao agradável.
Compras em New York City, com direito ao espetáculo de natal da Radio City Music Hall, jantar de lagosta no Lobster Pot, costeleta de primeira no Fuso Stake House e, como não podia deixar de ser, as afamadas visitas aos factory outlets. Uma correria de quatro dias, porque a passagem de regresso é já na segunda-feira.
Mas afinal, o que há de agradecer neste Thanksgiving?
O fato de estarmos vivos, longe da guerra, termos voz para refilar, e queixar-nos se a vida não corre a gosto, nunca refletindo que há sempre alguém pior do que nós, entre tantas outras coisas.
Logo que a família imediata se possa juntar neste dia, isto já é uma graça. Se durante um ano conseguiu estar junta várias vezes, ainda melhor. Mais graças se deve dar. Aliás, não deve haver nada mais agradável aos olhos do nosso Deus do que ver uma família reunida em volta da mesa. Nem é necessário haver perus, nem milho cozido ou castanhas assadas. Qualquer coisa que sirva de refeição serve.
Nem todos se podem juntar às famílias no dia de Ação de Graças. Por vários motivos. E cada um é que sabe com que linhas é que se cose. Um filho quando se casa passa a pertencer a duas famílias, e se quer viver feliz tem que dar o braço a torcer sem nenhuma delas ofender.
Mas também sabemos que um pai tomando conhecimento de uma visita de filhos, principalmente se vivem longe, fará todo o possível de lhes apresentar comida na mesa. Com esta dica, temos um exemplo:
Num destes dias tivemos oportunidade de participar numa cena que quase nos deixou remorsos. Não nos deixámos cair nesta fraqueza só pelo nível com que se apresentaram dois idiotas, janotas e bem falantes, açorianos com pronúncia continental forçada.
Os frangos assados da Market Basket superam todas as expectativas, e desde há muito são afamados, quer pelo preço, quer pela qualidade. Sobreviveram à crise das galinhas, que em todos os supermercados faltaram há pouco mais de um ano, e à disparatada subida do preço dos ovos, que veio logo depois. Eles sempre lá estiveram, no compartimento de comidas quentes, ao dispor de quem os quisesse comprar, sempre com o seu preço inferior a cinco dólares.
Para além de tudo isso, os frangos da Market Basket são um desenrasque de almoço ou jantar, e cada um permite saciar duas pessoas muito bem, se lhe adicionarmos um acompanhamento. Se vêm da China ou do Japão, pouco importa. O que interessa é que têm toda a proteína que se espera, são de uma qualidade excelente, e o seu paladar é de comer e chorar por mais.
No passado domingo, 12 de novembro, por motivos de força maior tivemos de recorrer aos bons préstimos destes frangos para nos desenrascar com o almoço, e fomos ao Market Basket às dez da manhã.
À entrado do supermercado fomos ultrapassados por um indivíduo bem trajado, de chapéu coco e de laço Burberry (fingido) ao pescoço, do estilo “um quarto para as três”. Adiantou-se a pegar no carro de compras, e dirigiu-o a toda a velocidade para o compartimento dos frangos. A seguir, começou e encher o carrinho. Quando lá já colocara oito, apareceu-lhe de frente um amigo, dos mesmos portes e moldes, que ao espantar-se com aquela quantidade lhe disse, ao mesmo tempo que o cumprimentava, para não levar todos, porque também queria um. Neste preciso momento o outro tira mais dois, fazendo com que na prateleira ficasse apenas um.
Temos quase a certeza de que a loja deve ter um limite estabelecido de quantidades. Mas se ninguém se queixa, está tudo bem.
Ambos estes indivíduos eram bem falantes, da elite que dá nas vistas, mas pensavam que seriam os únicos a falar a língua de Camões naquele lugar.
Enquanto seguiram as explicações da quantia, que as filhas e os genros, e os netos, vinham jantar a casa, aproveitámos a ocasião, e por detrás deles retirámos do compartimento o último frango, e com ele nos safámos para o outro lado. Nisto, um dos dois bons falantes, exclamou a alto e bom som:
-João, o filha da puta pegou no último frango!
Ouvindo isto, do outro lado tivemos de retorquir, com voz de bom volume:
-O filha da puta ainda está aqui, neste lado, onde não há frangos, mas sim pedaços, para mais dois filhas da puta que os queiram Comprar.
Dito isto, sem lhes olhar nos olhos, iniciámos a retirada, imaginando a reação daqueles dois idiotas, e as palavras que, provavelmente, um deles proferiu:
-Porra, o filha da puta falava português!…
Sim, falava e entendia. Quanto ao “roubo” daquele frango, só por si foi uma graça recebida, à qual temos de agradecer. De igual modo, também agradecemos a Deus pelo fato de termos idiotas vivendo entre nós. Assim seja!
Por hoje é tudo, e aqui nos despedimos, desejando a todos uma feliz quadra natalícia.
Haja saúde!…
Pedi a Deus para ter
Saúde e sabedoria
Para poder agradecer
As bênçãos de cada dia.
Meu Deus, tão grato estou
Pela minha companhia.
Por isso graças vos dou
Sobretudo neste dia.