Rui Caria nasceu na Nazaré, em 1972, é fotojornalista, formador e fotógrafo da Leica. O seu percurso profissional na área da imagem começou em 1990 e três anos mais tarde tornou-se correspondente da TVI, onde permaneceu até 2003. Reside na Ilha Terceira e é repórter correspondente nos Açores para a informação da SIC, desde 2006. Também, colabora como fotojornalista com a imprensa nacional e internacional e foi finalista e vencedor de diversos concursos de fotografia como o Sony World Photography Awards e o National Awards. Recentemente, foi desafiado pela Xiaomi para documentar um tema à sua escolha, através das lentes dos novos smartphones da série 13T. Em entrevista ao AUDIÊNCIA, o fotojornalista falou sobre o seu percurso profissional e o que o levou a viver no arquipélago açoriano. Revelando que procura, através da fotografia, “olhar para o que já existe e mostrá-lo de outra forma”, Rui Caria falou sobre o projeto “Redescoberta na Terceira”, no âmbito do qual captou a vida de um guardador de cabras e do último chocalheiro dos Açores, com o intuito de homenagear e registar estas partes da cultura portuguesa, através da fotografia e de um pequeno documentário.
Para quem eventualmente não o conhece, quem é o Rui Caria?
Falar de nós nunca é fácil e eu deixo sempre isso para os outros. Eu posso falar um pouco sobre o meu percurso, que é aquilo que eu sou, porque nós somos também o que fazemos e o que vamos criando ao longo da vida. Eu tenho 51 anos e por isso já vi algumas coisas, mas falta-me ainda ver outras e há outras que nunca vou conseguir ver, pois teria de viver três vezes. Porém, sinto-me bem com o sítio onde estou e já consigo estar sozinho comigo, o que é ótimo, porque nem sempre é fácil estarmos numa espécie de solitude e eu já consigo estar quieto e aturar-me a mim mesmo, o que não é fácil. Portanto, falar de mim é também falar do meu trabalho e daquilo que eu fui fazendo, que me define bastante. Eu gosto de criar coisas, de contar histórias e olhar para quotidianos ordinários e retirar dali algo de extraordinário. É quase como olhar com uma lupa, que tem sempre atrás dela um olho pueril, infantil, porque as crianças olham espantadas para as coisas de uma forma deliciosa e se olharmos para elas a olharem para as coisas, nós aprendemos a olhar para as coisas que temos como assumidas, que são os nossos lugares, também, do dia a dia e, hoje, na espuma dos dias, na azáfama e na vertigem onde o mundo corre, e onde nós corremos também, é bom parar e olhar para as coisas com mais cuidado, com mais calma, com um olhar novo, sobre coisas velhas e a fotografia tem muito a ver com isso, não é mostrar nada novo é mostrar de novo. É olhar para o que já existe e mostrá-lo de outra forma. Acho que é isto que me faz, também, estar na fotografia, é esta possibilidade de me espantar com o ordinário e de ficar parado a olhar para uma coisa que outras pessoas não param para olhar. Eu acho que a idade também nos vai dando mais uma necessidade de abrandamento e contemplação e se calhar é isso o que eu sou, um sujeito contemplativo.
Nasceu na Nazaré. Foi essa necessidade de abrandamento que o levou a residir na Ilha Terceira?
A minha vinda para a Ilha Terceira não tem nada a ver com a fotografia, porque eu nem sequer fotografava de uma forma séria quando vim para aqui. Portanto, eu trabalho há muito tempo em televisão e toda a vida me lembro de olhar para câmaras e ficar fascinado com os objetos. Portanto, olhar através daquilo, para mim, é quase uma coisa constante na minha cabeça, eu praticamente olho para as coisas recortadas. Os Açores não me trouxeram mais do que uma paisagem magnífica, a exuberância do tempo não cronológico, por termos chuva e sol, tudo a acontecer ao mesmo tempo e belíssimos arco-íris, que eu também gosto de fotografar, às vezes a preto e branco até. Eu não sei se estou num paraíso, porque o paraíso não é um lugar, é um estado e eu estou em paraíso, isso eu sei que estou. Eu estou bem, é aqui que eu gosto de estar, é um género de poiso e já estou cá há 18 anos. Eu fazia parte de uma banda de bares e vim tocar aqui a umas Festas da Praia, no verão, e fiquei fascinado com a ilha, com a paisagem e as pessoas. Na ocasião, identifiquei-me bastante com este lugar de uma forma quase magnética, mas não fiquei logo por cá, naturalmente, porém passado mais de um ano estava a viver cá. Foi assim, a música também me trouxe até aqui e também faz parte da minha existência e é necessária para mim, enquanto espectador. Toquei 15 anos em bares, com uma banda, sobretudo era divertido, mas tudo tem um fim. Um grande amigo açoriano ensinou-me que “o açoriano sai de casa e fecha a porta por dentro” e esta é uma metáfora que eu acho deliciosa, porque demonstra que nunca saímos, na verdade, daqui e este é um belíssimo ponto de ancoragem, de paragem, para começar daqui a fazer uma coisa nova. Eu vivo aqui com a Susana, a minha mulher, que é natural daqui, da Ilha Terceira, e nós, às vezes, falamos sobre isto, porque é bom estar aqui, assim como poder sair daqui e viajar pelo mundo, mas rapidamente temos vontade de regressar, pois há um certo magnetismo que me atraiu à ilha, que eu não sei explicar.
Como mencionou, o vídeo já faz parte da sua vida há muitos anos. O que despertou o seu interesse na fotografia?
Os Açores são magníficos, mas não foi a fotografia que me trouxe aqui. Se calhar, os Açores são um pouco responsáveis pelo meu começo, também, na fotografia. Eu não sou um fotógrafo de paisagem, porque não tenho a paciência que é necessária para esperar pela luz e pelo momento certo, mas também gosto de ir e de esperar por isso, porque acho que faz tudo parte. Tudo o que eu posso ver, eu posso fotografar, é este o meu mantra, por isso eu não acredito em géneros fotográficos, como desporto, moda, guerra ou como forma de arte. Eu não acho muito que a fotografia seja arte, mas a fotografia tem esta polissemia que dá para tantas coisas, abarca tantas características, mitos e ideologias, que é muito difícil eu falar disto de uma forma completamente percetível, porque a fotografia é um conjunto de coisas e a maior parte delas agrada-me.
Foi correspondente da TVI e é, desde 2006, correspondente da SIC nos Açores, para além disso trabalha como fotojornalista com a imprensa nacional e internacional. Diria que a captação de momentos e histórias através da lente é a sua paixão?
Eu já não tenho idade para paixões, digo eu. Eu nunca gosto de me apaixonar por coisas que não se possam apaixonar por mim. Há pessoas que amam comida e objetos, eu acho que prefiro amar pessoas e animais, porque podem amar-nos também. Eu acho que tem de ser recíproco. Esta reciprocidade, para mim, é importante e como a fotografia não se pode apaixonar por mim, eu decidi não me apaixonar por ela. Porém, há uma necessidade que eu tenho de ver. Eu acho que a fotografia é sobretudo isso, ver e poder retratar aquilo, para outros verem, é o storytelling, o contar histórias. Há milhões de anos que nós somos contadores de histórias, nós contamos histórias aos nossos filhos para eles adormecerem, fomos programados para ouvir histórias e isso é fascinante, porque é o motor da imaginação e a fotografia, aqui, tem um bocado essa função, porque nós pegamos no mundo tridimensional, ou até com quatro dimensões se colocarmos o tempo como dimensão também, porque está tudo lá plasmado, mas se pegarmos numa dimensão tridimensional e plasmarmo-la no papel, numa impressão fotográfica, ela deixa de ser tridimensional para ser plana, eu diria bidimensional, apesar de eu achar que continua a ser tridimensional no papel, porque a profundidade conta também e nas fotografias percebe-se a profundidade. O mundo é extrudido e nós achatámo-lo no papel, para depois a nossa imaginação voltar a trazer o mundo, outra vez, para a realidade tridimensional, através da imaginação, o que é fantástico. Portanto, a fotografia faz também de motor da imaginação e é isso o que me atrai. Se me pergunta se é paixão? Eu não sei, mas há uma necessidade de eu imaginar em fotografia. Eu quase que não preciso de uma máquina fotográfica, porque eu ando sempre a olhar para as coisas e a tentar conectar pontos no espaço e isso é quase doentio e cansa, é esgotante, não fisicamente, mas mentalmente. Quando saio para um trabalho qualquer aquilo que eu mostro e faço desse trabalho é um milésimo daquilo que eu não consigo explicar desse próprio trabalho, ou seja, fica tanta coisa por dizer, porque a história da fotografia valer mais do que mil palavras, eu acho que é perfeitamente um mito, porque as palavras valem e as fotografias também valem e não se pode sequer comparar palavras com outras sensações. A sinestesia é gira, mas é em teoria, porque nós olhamos para a fotografia de alguém que nos desapareceu e nós não temos aquela pessoa, não lhe podemos tocar, mas apesar de tudo podemos vê-la ali, nem que seja estática, cristalizada, então as fotografias servem para quê? Para nos criar presença ou para nos lembrar da ausência de alguém ou de alguma coisa? São estas questões que me agradam sempre na fotografia. Por exemplo, o cinema está mais perto destas emoções, mas o vídeo é mais realista e imediatista, é mais representativo de uma realidade, ou mais verosímil pelo menos, enquanto a fotografia dá espaço à criação mental. Portanto, não é bem paixão, é mais a necessidade de fazer coisas.
Recentemente foi desafiado pela Xiaomi para documentar um tema à sua escolha, apenas com um telemóvel. Como surgiu esta oportunidade?
O telefone tocou, como toca tantas vezes, e quando me falam em desafios fotográficos eu não pergunto muita coisa e aceito normalmente e foi assim, também, com a Xiaomi. É sempre curioso, porque é uma marca de telemóveis, e não só, mas interessava-lhes perceber se o telemóvel servia para trabalhar e eu aceitei o desafio, não houve qualquer imposição, eu escolheria o que queria fazer, de que forma e onde e é claro que eu escolhi os Açores. Foi uma experiência muito interessante para mim, por trabalhar com um equipamento pequenino, que dá possibilidades novas, em vez de banalizar, porque há muito medo, relativamente à banalização da fotografia, por causa dos telemóveis e eu acho que é uma oportunidade para muita gente, para a democratização da fotografia, porque a fotografia já está banalizada há anos, mas agora sabemos que ela está banalizada, porque conseguimos ver, é factual. Mas, eu acho que há sempre lugar para a criatividade e para se tentar fazer melhor e eu não quero aqui dizer que faço melhor, quero só dizer que tento fazer melhor, sempre, e eu acho que estes equipamentos permitem isso, explorar novos mundos, dentro do mundo da fotografia, assim como novas abordagens a temas. Por exemplo, estou a lembrar-me das duas reportagens fotográficas que fiz, em que, a dada altura, as pessoas estavam a conversar e já não se lembravam que nós estávamos ali, porque é um telemóvel, está no bolso delas, digamos assim, por isso é um objeto que todos conhecemos e que faz parte, também, da nossa vida. Saber que as marcas de telemóveis estão a chegar aos repórteres e, se calhar, aos fotojornalistas e aos documentaristas de uma forma muito mais a fim de trabalhar e de criar trabalho com aqueles objetos, é muito positivo, porque há uma grande resistência dos profissionais de fotografia em relação aos telefones, pois, naturalmente, não permitem um conjunto de coisas que as câmaras ainda permitem, pois não é possível, em termos práticos, termos uma teleobjetiva incorporada num telemóvel, cada coisa faz o seu trabalho, mas esta busca é interessante e este interesse por parte das marcas, sobretudo dos equipamentos móveis, andarem a perceber junto, também, dos profissionais o que é que eles acham de um determinado equipamento, eu acho que ajuda a desenvolver o produto e não custa nada, penso eu, também contribuirmos com a nossa experiência e com a nossa boa vontade.
Porquê “Redescoberta na Terceira”? O que o levou a documentar o quotidiano de João Rocha, um guardador de cabras, e António Costa, o último chocalheiro dos Açores?
Eu já conhecia as duas pessoas, pois já tinha feito, talvez há 15 anos, um trabalho para a televisão com o senhor António Costa, o último chocalheiro dos Açores, e nunca mais o tinha visto. Relativamente aos guardadores de cabras, ou também se pode dizer guardadores do fato, eu aprendi isso quando há uns anos quando fiz um trabalho fotográfico não com o senhor João Rocha, mas com um funcionário dele, pois era ele que estava a passear as cabras e faltou-se sempre alguma coisa naquele trabalho, que está publicado no site da SIC, nas “Histórias de 28mm” que eu produzi durante alguns anos, mas faltou-me a parte da ordenha e eu fiquei sempre com isso na cabeça e queria acabar o trabalho. Então, eu fui atrás destas duas profissões porque, para mim, são metáforas do tempo, pois as cabras precisam do seu tempo para caminhar nas estradas, a ordenha tem o seu tempo, fazer um chocalho tem o seu tempo, a solda do chocalho derrete ao lume ao sabor do seu tempo e se nós quisermos pôr isto na nossa vida tudo tem o seu tempo, nós é que, às vezes, atropelamos o tempo das coisas. Neste desafio da Xiaomi, o tema é a “redescoberta” e o que de melhor para redescobrir do que profissões muito antigas que, eventualmente, desaparecerão em alguns anos, porque quando falamos do último chocalheiro dos Açores, neste momento é só o senhor António, com 88 anos, que faz chocalhos e há muito pouca gente a comprar chocalhos para o fim que eles têm, que é para pendurar no pescoço do gado, mas há imensos turistas à procura deste objeto como adorno para terem em casa e como objeto de viagem e isso mudou um bocadinho o paradigma desta coisa toda. Como tal, são profissões que terminarão alguma vez, quer dizer, muitas profissões vão desaparecer, porque as pessoas mais novas não querem, de facto, pegar neste tipo de trabalhos, não faz talvez sentido para elas. O mundo está a mudar e temos também de aceitar isso e eu fui um bocado atrás destas histórias, para criar um acervo com isto, com poucas fotos, porque são muito poucas fotografias, eu acho que selecionei, na altura, para cada uma destas histórias, porque há limitações de tudo e mais alguma coisa e isto foi para a Xiaomi Master Class especificamente, não foi para publicar em sítio nenhum, nem sequer criei um texto muito grande alusivo ao trabalho, é só uma breve apresentação a falar sobre o que é que fiz e para dar um pouco de carácter arqueológico, que eu acho que a fotografia pode ter também, que é deixar coisas para trás, para alguém ver e daí eu acreditar que a impressão da fotografia é importante. É muito relevante imprimir fotografias para poder enterrá-las na areia e se algum dia alguém desligar o botão da tecnologia ou houver uma explosão ou tempestade solar que apague a eletrónica toda no planeta, vai sobrar o papel com fotografias. Portanto, imprimir as fotografias é uma das coisas que eu gosto de dizer às pessoas para fazerem.
Como tal, podemos depreender que tem um interesse especial por contar histórias de pessoas e documentar usos, profissões e tradições, que tendem a extinguir-se, como fez em “As Mulheres da Terra”?
Eu não tenho interesse, até ter interesse. Eu faço tudo. Eu estive na Ucrânia, por exemplo, na guerra, posso ir a outra guerra, entretanto. Também estive no Mediterrâneo Central, num navio da Marinha com os refugiados, durante mais de um mês. Estive no Canadá, também num navio da Marinha em missões de fiscalização de pescas. Portanto, tudo é contável. O que eu gosto menos de fazer, hoje em dia, porque estou muito cansado disso tudo é aquilo de que chamamos de hard news, as notícias do dia e aquela lógica de “if it bleeds it leads”, sangrar é notícia. Isso já me chateia. Muitas vezes eu questiono-me se o que transmitem é jornalismo e penso: eu já não sei o que é uma notícia. Por isso, eu prefiro contar histórias de pessoas, documentar coisas, transmitir o que elas dizem e sentem, se calhar até eu dizer o que senti a fazer aquilo, eu acho que é o que as pessoas querem saber cada vez mais. É isto o que eu gosto cada vez mais de fazer. Como tal, passa um bocado por aí, por escolhermos o que é que queremos para o nosso rumo, onde é que queremos caminhar. Portanto, eu faço tudo o que aparece, tudo o que me possa lembrar de fazer. As minhas fotografias nunca têm um objetivo de megafone, ou de fazer gritar alguma ideia, ou alguma mensagem assim muito subliminar sobre alguma coisa, porque eu nunca sei muito bem o que é que aquilo vai dar, em termos de perceção do público, porque dependendo das suas vivências vai olhar para as coisas com olhares diferentes e temos de aceitar isso também, por isso o objetivo do trabalho nunca me incomoda ou importa muito, importa-me fazê-lo, como eu acho que deve ser feito e mostrá-lo, nos canais que eu acho que devo mostrar e, depois, cada um vê à luz daquilo que é. Eu posso ir no carro e ver uma coisa e essa coisa vai ficar a povoar-me na cabeça durante uma semana, um mês, um ano e eu daqui um ano pego numa câmara e vou atrás daquela pessoa que vi e foi isso o que aconteceu com “As Mulheres da Terra”, uma exposição que eu tenho a decorrer por aí sobre as mulheres da lavoura. Eu, há muitos anos, vi alguém a trabalhar na lavoura, na ocasião não sabia que era uma mulher, claro que aí o preconceito veio logo ao de cima, por estar uma mulher a fazer aquilo, admito isso, mas já estou melhor, porque eu aprendo imenso com os meus trabalhos, pois são educativos para mim. Na ocasião, eu vi aquela mulher, mas depois nunca mais a encontrei e, passados uns anos, a Leica também me pediu para realizar uma exposição na galeria deles e imediatamente veio-me à cabeça a imagem daquelas mulheres e é assim que funciona, é quase por ímpetos, instintivos.
Ao longo de uma longa carreira, foram inúmeros os trabalhos relevantes realizados, mas qual diria que foi o mais marcante para si?
Eu não faço a menor ideia, porque dependendo das emoções que eu tenho a fazer alguma coisa, isso altera a minha perceção do objeto. Eu posso fotografar uma coisa hoje e olhar para as fotografias tristemente e pensar: “fui eu que fotografei isto?” Mas, daqui a um ano, posso voltar a olhar para elas e pensar: “como é que eu nunca vi estas fotos?” Às vezes temos de ver ao longe e temos de nos distanciar das emoções. Eu não faço a ideia de qual foi o trabalho que me marcou mais, nem arrisco. Já fiz trabalhos de violência doméstica, por exemplo, já fotografei pessoas com dificuldades na vida, já fotografei situações de acidentes, fome e carência, como tal não consigo responder a esta pergunta.
Qual é a sua visão acerca do presente e do futuro do jornalismo e do fotojornalismo?
Eu acho que o jornalismo tem de mudar muito brevemente, para não desaparecer. Eu acredito que as questões das redes sociais, da ética aplicada ao jornalismo e até da moral, mas sobretudo a ética aplicada ao jornalismo vai ter de ser revista, porque cada vez mais os jornalistas estão a ser editores de si próprios, porque há mais pessoas a consultarem as redes sociais de algum jornalista para verem notícias, do que as páginas dos órgãos onde eles trabalham. A isenção é cada vez mais um conceito moribundo, porque, hoje, a isenção está a lutar contra objetos e quotidianos que não permitem que ela exista como a conhecemos, ou seja, a ética já não é algo externo ao sujeito, é algo do sujeito e eu acho que os órgãos de comunicação social, neste momento, devem dar atenção aos seus jornalistas, no sentido da confiança. Por exemplo, se alguém vir uma fotografia que parece demasiado espantosa para ser verdade, para perceber se a notícia é uma representação da verdade vai ver a fonte, se for de um órgão credível, à partida vamos acreditar que é verdade, a seguir, como também já os jornais ditos credíveis poderão estar contaminados, consulta-se a fonte para perceber quem é que fez aquela notícia e esse jornalista vai responder à pessoa que estava a ver aquela fotografia e que desconfiava. Porém, as pessoas sabem que se é do Rui Caria, é verdade, porque o Rui Caria nunca fez nada que prejudicasse o seu trabalho, em termos de, por exemplo, retirar elementos das fotografias, utilizar uma coisa que as pessoas gostam de chamar de Photoshop, mas existem inúmeras aplicações a fazer a mesma coisa, usar manipulação fotográfica digital, eu não faço. As minhas fotografias tratam-se com cor, luz e sombras e isso é o princípio da câmara escura da fotografia de película e é isso o que eu mantenho nas minhas fotografias, por isso também raramente faço cortes nas fotografias ou se faço são pequenos cortes de ajuste de alguma coisa estava no cantinho e eu não reparei, 2 ou 3 mm, não faço reajustamentos. Chamem-me antigo ou velho, eu não faço, é uma disciplina minha e temos de ser nós a disciplinar-nos, porque é fácil enganarmos os outros, mas é difícil é enganarmo-nos a nós próprios e como não faço isso, vai passando como um trabalho credível e é isso o que eu estou a dar e é por isso que as pessoas, quando olham para o meu trabalho, não torcem o nariz a pensar o que é que eu fiz ali. Posso dizer-lhe que este é um gosto que eu tenho e dá-me prazer as pessoas dizerem-me isto: “quando eu vi aquilo e vi que era seu entendi que aquilo existiu e foi assim”. Isto dá-me um prazer imenso no meu trabalho diário e cada vez mais vai ser preciso que a questão da ética parta de nós e que não sejamos nós a enganar as pessoas. Todos os dias aparecem artigos de fotojornalistas que inventaram os seus trabalhos e viram as suas carreiras serem canceladas por causa de um pincel, ou de uma aplicação para tirar um objeto de uma fotografia. Todos os dias vamos ver isso e não vamos falar de inteligência artificial, porque eu acho que vai dar ainda mais valor à pessoa e vai ser uma oportunidade para muita gente, em termos de continuação da sua existência neste trabalho na área do fotojornalismo, sobretudo, e do jornalismo.
Podemos então depreender que foi também o seu rigor que contribuiu para que fosse finalista e vencedor de diversos concursos de fotografia como o Sony World Photography Awards e o National Awards?
Eu quero acreditar que alguém olhou para a fotografia e gostou dela e do rigor, eventualmente. Mas, dá-me muito gozo e tenho um certo prazer em enviar o negativo digital, que não foi mais do que tratado em cor e luz e aí também acontecem desastres, de pessoas que fazem coisas mirabolantes nas fotos e elas ganham prémios e depois são retirados. Eu acho que já não tenho idade para essas coisas, não é a minha forma também de estar, porque prefiro dizer que não a um prémio. Como eu costumo dizer, se eu quisesse ganhava prémios todos os dias, mas difícil é ganhar prémios por uma fotografia ou um conjunto de fotografias que precisaram apenas de uma câmara, de um sujeito e da boa vontade das pessoas que a fizeram e isso dá-me muito mais prazer, por isso tem muito mais valor para mim cada coisa dessas, porque eu sei como é que a fiz.
Acredita que é importante participar neste tipo de concursos?
Eu acho que é importante, se não nos deixarmos levar por essa importância. É relevante e perigoso ao mesmo tempo, porque se eu começo a ganhar alguns prémios em concursos de fotojornalismo mais sérios, eu a seguir posso ir fazer um trabalho somente a pensar no concurso e isso poderá influenciar a questão editorial do trabalho. É difícil, às vezes, não pensar nisso de uma forma mais leve, temática, até. Todos os concursos têm um aspeto megafónico e uma característica de transmissão mundial muito grande e de quase agenda mediática, se quisermos. Está, mais ou menos, provado que alguns prémios de fotojornalismo influenciaram algumas agendas mediáticas de órgãos de comunicação social. Por exemplo, uma fotografia tirada no Sudão, ou na Serra Leoa, ou, agora, em Israel, num sítio onde ainda nenhum órgão de comunicação social foi, se ganhar um concurso daqui a um ano, os órgãos de comunicação porque viram a fotografia vão mandar equipas para abordar os temas que foram retratados por essa mesma foto ou série de fotografias, ou seja, tem um efeito na agenda mediática muito forte e muito vincado, mas é também influenciado por essa agenda. Portanto, estas forças de influências são muito interessantes, dão muito que pensar e são muito curiosas, por isso é que eu digo que é perigoso, mas é também importante participar em concursos. Claro que o reconhecimento, naturalmente, nos dias de hoje, tem algum valor e é uma espécie de moeda de troca para trabalharmos mais.
Quais são os seus maiores sonhos? Tem projetos em carteira?
Não faço a menor ideia. Andando e vendo, é sempre a minha forma de estar nisto, porque eu tanto olho para uma coisa e apetece-me falar daquilo e mostrar aquilo a alguém, como apetece-me esquecer imediatamente, noutras situações. Eu acho que as coisas existem à nossa volta, nos nossos mundos e nós temos de estar disponíveis para elas, se isto é sonhar, então eu sonho assim, é olhar para histórias, objetos e coisas e perceber a disponibilidade e se agora aquilo é para mim ou não. Eu nunca penso muito no que é que vai acontecer a seguir e eu acho que isso é que é sonhar, eu não sonho com prémios, nem com trabalhos que vou fazer. Para já, há uma coisa fantástica quando não sonhamos é que dá muito mais prazer quando acontece alguma coisa. Eu nunca sonhei ganhar prémio nenhum de fotografia, nem sequer fotografar. Eu filmava e fiz a minha vida em televisão durante estes anos todos e fotografar era, para mim, uma coisa de recurso como para tanta gente, mas, aqui, nos Açores, comecei a olhar para a fotografia de outra forma e de uma forma mais séria, mas eu nunca tinha sonhado com isso. Eu não sonho muito na verdade, eu deixo que as coisas aconteçam. Mesmo as fotografias de que eu vou à procura, eu posso nunca as encontrar se procurar muito, basta às vezes estar aberto e disponível, pois aquilo está à nossa frente, é-nos dado. Eu gosto de sentir e de pensar, é o tal serendipismo, uma epifania que não é nossa, é externa a nós e que nós temos de saber aproveitar. Isto é o que eu acho, por isso não tenho grandes sonhos.
Qual é a mensagem que gostaria de transmitir aos nossos leitores?
Falando da fotografia, eu posso dizer olhem e, porém, vejam. A fotografia é ver. Os fotógrafos vivem de ver, porque, de resto, a parte mecânica da fotografia qualquer pessoa aprende num vídeo do YouTube em dez minutos. Agora, parar, ver e abrandar é o conselho que eu dou a toda a gente. A síntese é olhar, abrandar, procurar, mostrar o velho de forma nova, mostrar o fantástico do ordinário, é isso o que é a fotografia.