“Se os companheiros de Rômulo raptaram mulheres, foi porque quiseram assegurar a Roma uma duração maior do que a sua própria vida: a violência pode fundar cidades, a energia e a coragem guerreira tornam-nas prósperas, mas só o amor pode torná-las imortais.” (Pierre Grimal, O amor em Roma)
O ano de 2018 foi recebido no Teatro Nacional São João com a mais recente produção de ópera do Teatro Nacional de São Carlos: The Rape of Lucretia, de Benjamin Britten (1913-1976), compositor que no pós-guerra ousou renovar os cânones operáticos e entre cujos feitos se conta a reabilitação da tradição da ópera de câmara que havia sido uma das glórias do Barroco britânico.
Escrita após o retumbante êxito de Peter Grimes, The Rape of Lucretia (1946) é a primeira dessas óperas de câmara de Britten, cujo libreto de Ronald Duncan se inspira no texto dramático do dramaturgo francês contemporâneo André Obey, mas também no célebre poema narrativo de Shakespeare.
Duas personagens – um coro feminino, outro masculino – comentam a ação numa perspetiva cristã, introduzindo-nos na narrativa sobre a castidade de Lucrécia, violada por Tarquínio, o filho do tirano que governa a Roma pagã. Ao suicídio de Lucrécia segue-se a vingança de Colatino, um dos artífices da revolta popular que culminaria no fim do poder etrusco e no estabelecimento da res publica romana.
Com direção musical de João Paulo Santos e encenação de Luís Miguel Cintra, este espetáculo traz de volta não apenas a ópera ao TNSJ, mas também um compositor que dialoga com as mais altas tradições operáticas, introduzindo-lhes sinais de uma profunda originalidade.” (do programa do TNSJ).
Tito Lívio, historiador romano, relata que Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio, o Soberbo, “encontrava-se no acampamento militar com outros jovens nobres e discutiam sobre as virtudes das esposas que tinham deixado em casa . Decidiram voltar à cidade e espioná-las para saber qual era a mais virtuosa então. A esposa do príncipe se encontrava em casa dando uma festa com as amigas.
Somente a esposa de Lúcio Tarquínio Colatino, Lucrécia, encontrava-se sozinha em casa fiando a lã entre suas servas. Na visão dos romanos dos primeiros tempos, muito conservadores, a esposa ideal era a dona de casa e mãe exemplar. Sexto Tarquínio, invejoso e vingativo, decide então violar a jovem Lucrécia à força. Ela envia mensagens ao pai e ao marido depois do ocorrido e conta-lhes a história de sua desonra.
Desesperada, ela suicida-se enfiando uma faca no próprio coração. O povo romano, indignado com esta violência, depôs o rei ,criando a República. A violação de Lucrécia não foi a causa acidental para a expulsão dos reis, mas esta ocorreu na verdade por causa de um poder monárquico sem limites, que fazia com que os reis se sentissem acima das leis , e o que cada um tem mais de sagrado, o amor da sua mulher e a santidade do lar. Mas a história de Lucrécia tem um significado.
A jovem, símbolo da fidelidade conjugal, recusa a ouvir a voz do pai e do marido, que desculpam o que ela chama de “sua falta”. O seu corpo fora desonrado, o seu sangue, manchado .Para a visão dos romanos, este corpo deveria perecer, ainda que a alma fosse pura. Lucrécia se torna a partir de então, pela honra de sua pudicícia, o ideal máximo de virtude feminina em Roma.”
O Poema de Shakespeare, (1594) nos lembra, Rafael António Blanco, “ detém o efeito desejado de aumentar a reputação de Shakespeare na poesia elegante; ele foi reimpresso cinco vezes durante sua vida e frequentemente foi admirado por seus contemporâneos.
Vênus e Adônis foi, de fato, mais popular ainda (chegou a ser reimpresso nove vezes durante a vida de Shakespeare), mas ninguém nos dias de Shakespeare parecia ter considerado Lucrécia como qualquer outra coisa do que uma obra nobre.”