VISÕES ÚTEIS ABRE O III FESTIVAL DE TEATRO JOSÉ GUIMARÃES

O nosso convidado de hoje é o dramaturgo, encenador e ator Carlos Costa, “nascido” para o teatro em 1992 no CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra. Licenciado em Direito e pós-graduado em Estudos Europeus (vertente de Economia) pela Universidade de Coimbra, Mestre em Texto Dramático pela Universidade do Porto e Doutor em Estudos Teatrais e Performativos pela Universidade de Coimbra, Carlos Costa é Professor Auxiliar Convidado da Universidade de Coimbra, onde é responsável pelas disciplinas de História de Teatro e do Espetáculo II e Dramaturgia e Escrita Teatral, respetivamente na Licenciatura e Mestrado em Estudos Artísticos.

É também investigador Integrado do CEIS-20, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, mas é na qualidade de codiretor artístico do Visões Úteis, coletivo criador do espetáculo de abertura da III edição do Festival de Teatro José Guimarães, reagendada para dia 18 de setembro no auditório da Tuna Musical de Santa Marinha, que o temos connosco para mais uma entrevista sob o mote “o teatro profissional em Gaia”. Passemos-lhe a palavra:

 

 

Antes de mais, importas-te de fazer uma breve apresentação do Visões Úteis, antes de falarmos da criação de “Litlle B”, peça que abre o Festival de Teatro José Guimarães?

O Visões Úteis [VU] está em atividade há 25 anos, e terá sido, em meados dos anos noventa, o último exemplo de profissionalização gerado a partir de um contexto de teatro universitário, já que a partir dessa altura as escolas profissionais e os institutos politécnicos asseguraram predominantemente esse papel. O VU é um projeto que se desenvolveu em torno da criação artística e no terreno das artes performativas, portanto não se trata só de teatro mas também de formatos que equacionam outras possibilidades em termos de lugar e relação com o público. Hoje, o VU – sediado no Porto, na freguesia de Campanhã – alarga cada vez mais a sua atividade, alcançando domínios como a investigação académica, o desenvolvimento do território, a formação e ainda diversas parcerias eminentemente políticas na área da criação, aprendizagem e acolhimento.

 

Inspirado na biografia profissional do ator e produtor Mário Moutinho, “Litlle B” não é, porém, um espetáculo biográfico. Queres explicar esta aparente contradição? 

Pois. é engraçado, parece uma contradição, mas não é. “Little B” nasce de um encontro entre os diretores artísticos do VU – eu e a Ana Vitorino – com o Mário Moutinho, que em 2018 e 2019 foi nosso Artista Associado; no VU temos um programa de acolhimento em que, em ciclos de 2 anos, partilhamos recursos com outros artistas. A ideia inicial era ajudar o Mário a promover alguns projetos há muito adiados, sendo que um seria esse espetáculo inspirado pela sua biografia. Mas eu e a Ana ficámos tão apaixonados pela vida do Mário que o espetáculo passou a ser dos três; e depois dos quatro, com a chegada da Sara Barros Leitão. A Sara tinha sido minha aluna há muitos anos e acabava de criar um espetáculo maravilhoso a partir do arquivo do Teatro Experimental do Porto. Portanto, 3 gerações, entre os 29 e os 72 anos. E logo no início do processo criativo, foi unânime que este não seria um espetáculo biográfico daqueles em que a intenção principal é celebrar o biografado. Isso não seria “um espetáculo da vida do Mário”. Porque a vida do Mário foi sempre uma vida constantemente voltada para as infinitas possibilidades de futuro e para todos os outros à sua volta, nunca obcecada consigo ou com o passado. Por isso, este espetáculo, que de facto se inspira na vida do Mário, não é sobre a vida dele mas sobre o modo como os 4 autores, e as suas 3 gerações, se encontram na vida do Mário, sobre como todos nós nos encontramos na vida uns dos outros. Mas claro que se descobrem e recordam muitos episódios e histórias da vida do Mário Moutinho, contribuindo para aumentar ainda mais a admiração e respeito que a generalidade dos espectadores já lhe dedica.

 

A vida de Mário Moutinho confunde-se de alguma forma com a história do teatro no Porto das últimas décadas. Como está agora a cidade, em termos culturais?

Sim, a vida do Mário é um trajeto delicioso, pela forma como atravessa, num misto de alegria e sentido crítico, tantas décadas, gerações e modelos de produção cultural no Porto. Hoje, o estado das coisas ainda decorre da visão de Paulo Cunha e Silva, caucionada por Rui Moreira, e exponenciada quando se tornou mensurável que a ideia da cultura ser um motor da economia não era uma miragem mas uma possibilidade real. Atualmente, no Porto, a questão já não passa, como há 10 anos, pela legitimidade do setor e pelos recursos públicos (não) afetados, mas antes pelo oligopólio da capacidade de produção, agora maioritariamente entregue ao Estado, através das instituições que domina. Nesta situação, os artistas alienaram uma grande parte da sua capacidade de decisão, arriscando ver o seu trabalho instrumentalizado para a concretização de uma ideia de cidade que pode entrar em conflito com o sentido da criação artística de todos e de cada um.

 

Creio é a primeira vez que o Visões Úteis se apresenta em Gaia. Estando o Porto aqui tão perto, nunca pensaram atravessar a ponte? Nem nos tempos de Rui Rio? 

Pois, é curioso. Acho que Gaia sempre esteve demasiado longe para ser uma temporada no Porto e demasiado perto para entrar no roteiro da itinerância; recordo apenas, em 2016, as apresentações de “Romance da Última Cruzada” no Armazém 22, que assumimos como a “temporada no Porto”. E quanto aos tempos de Rui Rio, na altura, sair era a última coisa que nos passava pela cabeça. Aquele era o momento para ficar e resistir, continuando a trabalhar, reinventando modos de produção e ocupando o espaço público – teatros, praças, tribunais, imprensa – com uma visão alternativa da cidade. Porque para nós a arte nunca foi um dado à parte das restantes coisas do mundo. E já que falamos de modelos de cidade, é bom recordar que o desenvolvimento económico que a cidade hoje conhece só foi possível pela imaginação e risco dos artistas que – no início do século e após a primeira vitória eleitoral de Rui Rio – começaram a transformar a baixa da cidade, inaugurando espaços culturais informais.

 

Face à proximidade das duas cidades, de que forma é que Vila Nova de Gaia se pode constituir uma alternativa à crescente oferta cultural do Porto?

Apesar da proximidade, apontaria distâncias em termos de território, percurso e agentes. Por um lado, o concelho do Porto apresenta um território mais pequeno e (assim parece) socialmente mais homogéneo, mesmo considerando as assimetrias reconhecidas pela Câmara Municipal e que o programa Cultura em Expansão tenta corrigir. Por outro lado, a referida e crescente oferta cultural não deixou de ser espoletada, como disse acima, por dinâmicas – eminentemente urbanas e artísticas – que nunca estiveram presentes em Gaia. Assim, ainda hoje – sem deixar de esquecer as patologias que já apontei – a verdade é que as decisões, quanto ao papel da cultura no desenvolvimento da cidade, são participadas por agentes culturais cuja legitimidade, enquanto parte do setor, não é colocada em causa; aliás neste momento, uma das lutas do Visões Úteis – nomeadamente enquanto parceiros da autarquia para o pólo de Campanhã do Cultura em Expansão – é precisamente a de colocar os decisores culturais nas mesas em que se decide o futuro da cidade, ao lado dos já habituais representantes do Ambiente, Coesão Social e Urbanismo. Em Gaia, poderá ser falha minha, mas nunca me apercebi de uma dinâmica deste género, e a oferta cultural (digo a profissional) sempre me pareceu instrumentalizada, de modo direto e de curto prazo, ao desenvolvimento económico, através de processos pouco participados pelos próprios agentes do setor, já que estes estiveram sempre, sobretudo, na margem norte do Douro. Arriscando agora responder à pergunta, não me parece que Gaia se deva pensar como uma alternativa à oferta cultural do Porto. Talvez aqui o desafio seja o de transportar o investimento cultural, na zona ribeirinha da cidade, para as freguesias limítrofes; ou seja, pensar que o desenvolvimento do território municipal não se faz apenas com acesso à cultura na “sala de visitas” e que o acesso na “gigantesca periferia” requer um investimento de longo prazo em equipamentos, pessoas e mediação.

 

Dirias, portanto, que falta em Gaia um plano estratégico que vise a implementação da cultura em toda a sua diversidade e abrangendo a globalidade do concelho, envolvendo criadores e agentes culturais?

Eu não tenho um conhecimento das políticas municipais de Gaia que me permita fazer aqui um “estudo de caso”. Mas posso, isso sim, desenvolver um pouco a ideia anterior. O que digo é que a Cultura, e em particular a criação artística contemporânea, apesar de ser vista como bem público, não é encarada com a legitimidade de outros bens públicos, como a saúde, a educação, a defesa nacional e a ciência. Assim, é frequente que os decisores públicos a vejam sobretudo como instrumento para a prossecução de outros fins; e, por outro lado, insistam em medir o seu impacto considerando apenas o valor económico e não o seu valor intrínseco (imaterial, espiritual, simbólico, político). A consequência disto são decisões irrefletidas ou na melhor das hipóteses determinadas por táticas associadas ao curto prazo, aos ciclos eleitorais, às oportunidades de financiamento europeu. Um exemplo que pode ajudar a compreender isto é o da (re)construção de teatros, cineteatros e auditórios na última década do século passado. Na altura, qualquer autarquia, com um mínimo de criatividade contabilística, podia fazer obra sem gastar um tostão, o que de imediato foi visto como uma oportunidade para o setor da construção civil. E logo se construíram equipamentos sem que previamente existisse uma estratégia que os reclamasse ou uma ideia acerca do custo do seu posterior funcionamento. Atualmente, no mind-set dominante nas autarquias, arriscaria dizer que o turismo ocupa o lugar mítico que há 30 anos o país reservava à construção civil, enquanto alavanca dos sonhos e esperanças de desenvolvimento. Pelo que muitas decisões de investimento estarão a ser tomadas mais em função da previsão do encaixe financeiro associado ao turismo e menos em função de fatores como o acesso à cultura, a pluralidade e diversidade da criação artística, a independência dos artistas e demais agentes, a capacidade crítica, a democratização da(s) estética(s), a esfera da cidadania, a participação política. Não digo que deste modo o Produto Interno Bruto não cresça. Mas acho que a Felicidade Interna Bruta podia crescer mais de outro modo. Aliás, só esta Felicidade Bruta poderá obstar ao recrudescimento de uma extrema direita que ameaça o pacto social de Abril, o da república, da democracia, do parlamento e da liberdade; mas também do Serviço Nacional de Saúde e da educação pública até ao ensino superior. Sinceramente, neste nó em que vivemos, entre globalização, demografia e alterações climáticas, não será o PIB, e a sua quimera de um eterno crescimento económico, quem nos poderá salvar.