Faria mais sentido publicar esta crónica no dia 25 de Abril, quando se festeja os cornos dos outros em algumas localidades do território português. Por falar nisso, devo dizer que me deixa intrigado o facto de o mesmo dia ser dedicado a São Marcos, o evangelista. É que, deve haver uma relação qualquer entre ambos os festejos. Mas vou deixar este assunto para as proximidades do dia da liberdade em Portugal, para que os cornudos se sintam livres de usar seus cornos na festa dos cravos, e os fascistas proibidos de exibir seus cravos na festa dos cornos. O tema de hoje apareceu-me nas mãos quando procurava alguns papéis, e deparei com uma velha crónica por mim escrita para o jornal Portuguese Times há quase duas décadas, através da qual a senhora Saudade voltou a ligar-me às origens.
Tenho pena de não ter conhecido pessoalmente o poeta ribeiragrandense Albano Cordeiro (1914-1964), mas os seus versos já me mostraram muitas vezes o seu perfil. Porém, fui grande amigo e companheiro de carteira do seu filho Rui, actual proprietário do restaurante “Ala-Bote”, na Escola Secundária. O meu preferido soneto de Albano Cordeiro é aquele em que ele glorifica o Cavador, plublicado nos livros “Mercê da Saudade” e “Regresso”. Até sei suas estrofes de cor, e salteadas! Admiro o carinho à sua gente e o amor à sua terra. Além disso, todos os versos de Albano Cordeiro foram criados com rimas e métricas, escritos para o povo da sua Ilha, com a linguagem mais clara do que as águas cristalinas da Lagoa do Fogo – poesia açoriana com todo o rigor.
Há cerca de dez anos, ou pouco mais, lendo o livro do meu conterrâneo Flávio Paiva, intitulado “História de vida de um emigrante açoriano”, deparei com uma batalha de versos e uma ligeira explicação. Dizia Flávio que Albano Cordeiro, empregado no Grémio da Lavoura da Ribeira Grande, havia recebido uma mensagem de um colega do Grémio de Ponta Delgada, juntamente com uma remessa de “cápsulas metálicas”, daquelas de cor dourada que os homens do campo costumavam adornar os chifres do gado bovino, protegendo-lhes as pontas. Ao que parece, Albano não gostou da mensagem e mandou ao colega uma resposta.
Uns dias depois comentei as duas quadras populares que havia lido, com a nossa amiga Filomena Morais Sarmento Machado Matos, residente em Alqueidão da Serra, Portugal Continental. Filomena é filha única do Sr. José Tibúrcio Machado, que foi o braço direito da saudosa Dona Maria Mota, na ressurreição e organização das Cavalhadas de S. Pedro. O que eu não sabia era que este senhor também trabalhara (gerente, como confirmou Filomena) no Grémio da Ribeira Grande, sendo um grande amigo de Albano Cordeiro, pelo que a filha me logo disse que já tinha lido aquelas quadras em qualquer parte. No dia seguinte informou-me que as tinha encontrado entre os papéis que eram do seu pai, dizendo-me que não se tratava simplesmente de duas quadras, mas sim de doze. Portanto, aquelas duas foram as armas da primeira batalha de uma guerra poética travada em São Miguel, onde os guerreiros sempre foram amigos, mas fiéis ao bairrismo!
Os Grémios nasceram nos finais da década de 1930 e foram extintos em 1974 pelo Decreto-Lei nº 482/74 de 25 de Setembro. Pertenciam à Organização Corporativa da Lavoura. Em S. Miguel, o Grémio da Lavoura estava sediado em Ponta Delgada, tendo na mesma Ilha representações ou dependências em outras localidades, como por exemplo na Ribeira Grande.
Por aquilo que entendi face aos papéis originais que a amiga Filomena me enviou, fiquei sabendo que o colega de Albano a que Flávio se referia era o poeta Virgílio de Oliveira. Segundo o que o Dr. Manuel Barbosa escreveu no seu livro “Figuras e Perfis Literários” (1983), Virgílio Oliveira nasceu na Achada do Nordeste em 10 de Abril de 1901, foi para Vila Franca do Campo em 1914, onde trabalhou no comércio, e daí para Ponta Delgada, seguindo o mesmo ramo de actividade profissional. Em 1938 passou a cobrador do Grémio da Lavoura de Ponta Delgada, onde se manteve empregado até ir para os Estados Unidos da América em 1966, mais precisamente para New Bedford, onde faleceu no ano seguinte.
Para Ruy Galvão de Carvalho, registado na sua “Antologia Poética dos Açores” (1979, p.475), pelo convívio com literatos e poetas adquiriu cultura literária e social que se reflecte na sua poesia em que consta obras como “Ecos na
Planície” e “Vinha do Senhor”.
Mas, vamos à guerra que começou quando Virgílio de Oliveira envia a Albano uma remessa de pontas douradas com esta quadra:
Albano dos meus pecados
Põe isso na montra em fila,
Porque são os embolados
Para os cornos dessa Vila.
E Albano responde:
Das tais bolas recebidas
Cá não há necessidade.
Vão ser todas devolvidas
Aos cornudos da Cidade.
Outra vez Virgílio:
Não vieram devolvidas
As bolas encomendadas.
Há já pessoas servidas,
Que andam na Vila às marradas.
Albano:
Não servem os embolados,
Acreditem que é verdade.
Chegaram já amassados
Pelos cornos da Cidade.
Provavelmente deve ter havido uma outra estrofe de Virgílio de Oliveira que não foi anotada. Porque na ordem dos papéis que tenho em meu poder, acabados os manuscritos segue-se um dactilografado por Albano, com as seguintes quadras:
Meu Virgílio de Oliveira
O tempo não me sobeja
P’ra andar na brincadeira
Com qualquer, qualquer que seja.
As bolas que tu mandaste
Com cuidado e com carinho,
Quem mas pediu foi um traste
Que as perdera p’lo caminho.
Um gajo destes da Alta
Que não entra em qualquer porta
Daqueles que não faz falta,
Do gado que não se importa.
As bolas servem a esses,
A esses cornos supremos,
Que com os seus interesses
Têm coisas que não temos.
E Virgílio assina o tratado de paz, também em papel dactilografado, aos 6 de
Setembro de 1960 com estes versos:
Não é isso falar novo,
Amigo Albano Cordeiro.
Sempre ouvi dizer o povo
Que “eles não trazem letreiro”.
Nestas cantigas a nu,
Em tom menos delicado,
No “digo eu… e dizes tu”,
Já é um tema estafado.
Lisura nos acompanhe,
Sem ofendermos ninguém…
Cada um lá que se amanhe
Com os chavelhos que tem.
Dou-te todos os poderes
No negócio de “embolados”…
Quanto mais bolas venderes
Mais cornos serão contados.
E agora para terminar com estes cornos todos, só falta a famosa quadra do Cancioneiro Geral dos Açores, que meu padrinho Ferreira Moreno nos lembrou em um dos seus “Repiques da Saudade”, cerca de meia dúzia de anos, antes de falecer. Ei-la:
Ó corno que estás pr’aí,
Nem os bons-dias te dão…
Quantos estão c’ma ti
E pensam que não estão!…