A TRÁGICA COLISÃO DA “BADALHOCA” COM UMA LINGUETA

O mês de abril parece não ser favorável à navegação quer marítima, quer fluvial. Quem já não ouviu falar da colisão com um iceberg do famoso transatlântico da companhia White Star Line, o RMS Titanic, às 23h40 do dia 14 de abril de 1912? Colisão que, na madrugada do dia 15, fez com que o navio naufragasse levando consigo mais de 1500 almas para o fundo do Oceano Atlântico. Mas sabia que, há precisamente 70 anos atrás, na freguesia gaiense de Oliveira do Douro aconteceu uma outra tragédia fluvial que, ainda hoje, é recordada com comoção?

A lancha a motor “Foz do Sousa” era, na década de 40 do século passado, uma embarcação bem conhecida dos habitantes das freguesias ribeirinhas de Vila Nova de Gaia e do Porto, a par de outras como a “Espinhaço”, por exemplo; pois transportava(m) diariamente, pelo rio Douro, trabalhadores de Crestuma, Avintes, Oliveira do Douro, Atães e Foz do Sousa para o Cais das Padeiras, próximo da ponte Luiz I. Às 08h00 em ponto atracava(m) neste lugar e os trabalhadores, entre eles as padeiras d’Avintes, faziam-se à vida. No final do dia, faziam a travessia contrária, num frenético “corre, corre que se faz tarde”. Popularmente, a “Foz do Sousa” era conhecida por “Badalhoca”, já que o contacto da hélice com o motor (situado no centro da embarcação) produzia um som muito embrulhado (bra-bra-bra…), de acordo com Francisco Rodrigues.

No dia 5 de abril de 1950, na viagem de regresso dos trabalhadores às suas casas a partir do Cais das Padeiras, quem ia ao leme da “Badalhoca” era o senhor Franklim, como nos confirmou José Candoso, o qual contava já com uma longa experiência como timoneiro e, por volta das 18h30, esta embarcação navegava junto à margem esquerda do rio Douro, nomeadamente em frente à Quinta da Fonte da Vinha ou Quinta do Sebastião (um dos presidentes do Futebol Clube do Porto) na freguesia de Oliveira do Douro, devido a um banco de nevoeiro que entretanto se adensara nesse final de tarde e que, inevitavelmente, reduziu a visibilidade do horizonte.

O senhor Franklim foi posto à prova quando a embarcação colidiu violentamente com a lingueta – pequena rampa pétrea de um cais – da Quinta do Sebastião que, nessa altura, estava parcialmente submersa devido à subida da maré do rio Douro. Os estragos imediatos provocados na proa da “Foz do Sousa”, um rasgão de cerca de 3 metros de extensão que fez com que o motor rapidamente fosse abaixo e a água começasse a tomar posse da embarcação, quando foram sentidos pelo timoneiro, que a todo o custo tentou controlar a situação; já não havia nada a fazer… A lancha acabaria por naufragar. Neste curto espaço temporal, e aliado aos danos estruturais, o pânico entre os trabalhadores a bordo instalou-se, uma vez que a maior parte não sabia nadar e, apesar de estarem muito próximos da margem, “a forte corrente do rio que ali se fazia sentir”, como nos explicou Jorge Ferreira, não ajudou. Foram momentos terríveis os que se seguiram à colisão, com gritos e pedidos de socorro, aos quais alguns transeuntes e pescadores que se encontravam na margem do rio tentaram acudir e há mesmo histórias de heróis!

Fernando Ribeiro recorda que o Dr. Gaspar da Costa Leite, então proprietário da Quinta dos Frades situada mais a montante da Quinta da Fonte da Vinha, também em Oliveira do Douro; “montado no seu cavalo, mandava as senhoras e filhos para casa”, tentando, talvez, evitar que as imagens daquela tragédia perdurassem nas suas memórias. Rui Moreira e Francisco Rodrigues, lembram a nobre atitude de um senhor que, apesar de não saber nadar e para ajudar os náufragos, “atirou-se ao rio cinco vezes”, conseguindo mesmo salvar duas mulheres e duas crianças, mas à quinta vez, também ele, acabou por sucumbir nas águas do Douro. Domingos, filho de um outro herói desse dia, refere orgulhoso que o seu pai, já falecido, “recordava essa tragédia com os olhos em lágrimas, devido à aflição das pessoas e, sem pensar na sua própria vida, salvou! E não foram tão poucas quanto isso!”. No entanto, prefere que o nome do seu pai seja mantido no anonimato, porque era esse o seu desejo em vida. O próprio caseiro da Quinta das Carvalheiras, situada entre a Quinta da Fonte da Vinha e da Torre Bella, acionou rapidamente quer os Bombeiros Voluntários de Avintes, quer os municipais, mas quando estes chegaram ao local do desastre o cenário foi desolador…

À chegada das corporações só houve tempo para montar as macas e transportar 1, 2, 3, … 16 cadáveres, entre eles mulheres e crianças, procurar mais de uma dezena de desaparecidos que, apesar dos esforços encetados, nunca foram encontrados e trazer à superfície a carcaça da “Badalhoca”. Pelo estreito “Caminho dos Afogados” em terra batida que, aliás, já tinha esta mórbida designação outrora – aludindo às manhas do rio Douro que muitas vidas ceifou ao longo do tempo –, os corpos eram entregues às famílias e, ainda hoje, volvidos 70 anos, os gaienses e portuenses perpetuam na memória este fatídico dia. O elevado número de mortes ocorrido explica-se pelo facto de, naquele tempo, a lotação definida pela Capitania (80 lugares) não ser cumprida, nem tampouco existir uma fiscalização eficaz, já que “havia sempre espaço para mais um ou dois”, desde que os passageiros pagassem o bilhete e conseguissem acomodar-se da melhor forma. Foi o que aconteceu neste dia, pois quer o proprietário da “Foz do Sousa”, quer os tripulantes, após o desastre e quando interrogados, não tinham ideia do número de pessoas que transportavam…

 

* Fábio Soares é natural da freguesia de Mafamude, em Vila Nova de Gaia, e residente na freguesia de Oliveira do Douro, também no mesmo concelho. É licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado na mesma área pela Universidade do Minho. Participou em diversos projetos de investigação em Arqueologia e foi o responsável pela organização e inauguração da Sala Museu Silva Leal, no Instituto Profissional do Terço, no Porto. Hoje, além de trabalhar na área do ensino, onde leciona a disciplina de História, é Sócio-Gerente da empresa Fábio Soares – Serviços de Arqueologia que, entre outros serviços, se dedica à divulgação do património cultural.