AÍ ESTÃO ELAS, AS RUSGAS… OU MELHOR, AS MARCHAS DE SÃO JOÃO

Não se sabe desde quando se celebra entre nós o São João, santo que diversas cidades portuguesas (e não só!) festejam com imenso fervor, mas nenhuma com o mesmo empenho e entusiasmo das gentes das duas urbes que ladeiam o rio Douro junto à foz. A mais antiga referência que se conhece à festa de São João nestas paragens está expressa numa crónica de Fernão Lopes, do século XVI, durante o reinado de D. Fernando: “O cronista chegou ao Porto no dia em que estava a festejar-se determinado acontecimento com um entusiasmo desabrido”. Era o São João!… Contudo, a tradição de celebrá-lo deve ser bem muito mais antiga, pois existe uma canção popular que diz “… até os moiros da moirama / festejam o São João”. Mas mais do que uma festa, o São João foi em tempos um marco na prática da cidadania, elegendo-se nesse dia os representantes do povo para os órgãos autárquicos.

            Esta tradição da discussão sobre os problemas da urbe, com a consequente eleição de um membro da “plebe”, foi-se perdendo com o decorrer dos anos, como outras se perderam em favor de costumes importados da capital, que ainda hoje prevalecem. É o caso das sardinhas assadas, que só se juntaram às festividades na década de 1940, com a realização da primeira Feira Popular, no Palácio de Cristal, no Porto. Até aí, a tradição “culinária” era outra. Na véspera do São João comiam-se torradas e bebia-se café com leite por volta da meia-noite, para no dia seguinte o anho subir à mesa, assado com batatas em assadeira de barro. E mais: poucos saberão que havia um doce alusivo à época, desde o início do século XX, que se chama “Bolo de São João” e que nas últimas décadas vem ganhando força em alguns restaurantes locais. Outras tradições foram-se mantendo quase intocáveis. Tomar banho no rio Douro (ou no Mar) na manhã do dia de São João, antes do nascer do Sol, é um costume antigo que ainda hoje prevalece entre os mais afoitos, porque, como reza a lenda, “quem assim fizer, fica imune a doenças durante um ano”. Os velhos rituais construídos sobre os resquícios da festa pagã da celebração do solstício de Verão – símbolo de abundância das colheitas e da fertilidade – foram, aliás, sobrevivendo quase todos, sobretudo os que estão de alguma forma ligados ao culto do Sol e do Fogo: ervas aromáticas (manjericão, erva-cidreira, alho porro…), balões de ar quente, alcachofras e fogueiras, banhos e orvalhadas, cascatas sanjoaninas… e, claro, o fogo de artificio, que não teve origem na ribeira portuense, ao contrário do que se pensa, mas sim na Serra do Pilar, em Gaia.

A estas tradições juntam-se as Rusgas Sanjoaninas, que terão nascido em meados do século XIX, por altura das lutas entre liberais. miguelistas e republicanos, quando chegou a haver três festejos distintos do São João. Na Lapa reuniam-se os primeiros, na Cedofeita os segundos, e no Bonfim os republicanos, circulando o povo por entre os três lugares em grandes rusgas formadas espontaneamente, entoando cantigas carregadas de segundo sentido e de alguns recados a uns e outros contendores políticos. E, como sábio que é o povo, depois da vitória dos liberais, as Rusgas cantavam assim: “O São João de Cedofeita / Mandou dizer ao da Lapa / Que dissesse ao do Bonfim / Que a coisa não ficava assim”. Que é como quem diz: os miguelistas mandavam dizer que as coisas ainda podiam mudar!… Mudaram sim, mas para o lado dos que estes e os outros combatiam… O que também mudou com os tempos foi a natureza das Rusgas de São João, que foram contaminadas pelo espírito das marchas populares que o SNI – Secretariado Nacional da Informação, do Estado Novo, inventou na capital para amolecer as vozes mais críticas do povo. Ficou, no entanto, a animação e o colorido da festa, o seu lado lúdico e popular, as apaixonadas rivalidades entre freguesias, a saudável competição entre coletividades, a disputa pelos melhores lugares no desfile e na exibição, e, como agora se diz, o empreendedorismo associativo adjacente a esta realização que mantém o seu pendor popular. São meses de ensaios de cantigas e coreografias, semanas a fio de confeção de figurinos e de construção de arcos e demais elementos cenográficos, que muitas vezes, em Gaia, apenas têm por finalidade uma única noite de brilho entre o Largo Luís I, as Avenidas Diogo Leite e Ramos Pinto, e o Largo Aljubarrota, onde tudo se decide aos olhos de um júri que tem a tarefa de escolher os melhores entre os melhores.

Trata-se de uma experiência impressionante e inesquecível, que este ano acontece amanhã em Gaia, na noite de sábado, com o povo reunido em bancadas colocadas junto ao Convento Corpus Christi e ao Cais, e espalhado ao longo da Beira-Rio por falta de espaço no local da exibição das Marchas. Em cada desfile celebra-se uma manifestação cultural que importa proteger e apoiar de uma forma menos tímida. Não nos podemos escudar nas origens populares das Marchas sanjoaninas, na autonomia do associativismo e na liberdade criativa das suas gentes para “apertar os cordões à bolsa municipal”, como se não dependesse do executivo camarário a preservação e o desenvolvimento das nossas tradições culturais. A exemplo de que acontece noutros municípios do país, compete à Câmara de Gaia dispensar de forma atempada os meios financeiros adequados ao financiamento dos diversos trabalhos a desenvolver pelas associações envolvidas na realização das Marchas de São João, tendo em vista uma organização estável e com a necessária antecedência deste evento cultural. O que, como todos sabemos, não tem acontecido!… Será que isso muda com o próximo edil?!

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