AS CASINHAS DO PRESÉPIO E AS MIJINHAS DO MENINO

O presépio, como toda a gente sabe, é um quadro do nascimento de Cristo. Pode ser tão simples e tão completo se nele estiver somente as figuras dos pais e do bebé. Fica mais bonito se lhe adicionarmos, pelo menos, um animal de estábulo. Ainda melhor, se inserirmos as personagens numa cabana, arribana, ou gruta, qualquer coisa do género de abrigo, com as figurinhas principais lá dentro. Isto embeleza muito mais a cena da natividade de Jesus.

São Francisco de Assis nunca pensou no impacto que a sua lembrança teria na história da humanidade, pelo facto de,
com o passar dos anos, um presépio, a partir de um estábulo poder expandir-se a uma vila, cidade ou país, dependendo de
gosto pessoal, habilidade artística, cultura e localização geográfica. Como exemplo, apontamos o Presépio do Senhor Prior, da Ribeira Grande, também conhecido por Presépio Movimentado, que nos faz estar a viver naquela localidade, e dela avistar, em grande plano a natividade de Jesus, em Belém. Tão longe e tão perto! Porque, afinal, Cristo nasceu para toda a gente. Sejam os Meninos pretos, vermelhos, brancos ou amarelos, respeitaremos e adoraremos todos e cada um, embora a nossa memória retenha um Deus Menino, bebé rechonchudo, de cabelos loiros e olhos azuis, igual àquele que nascia todos os anos na igreja Matriz da Ribeira Grande.

Os portugueses trouxeram consigo para as Américas o costume de armar presépios. Digamos, os seus. Porque alguns americanos criam os Christmas Villages, em que na esmagadora maioria nem se vê a cena da natividade. O presépio
português é diferente. Nele, para além da Sagrada Família, há vales, montes, ovelhas, pastores, mar, rios, ribeiras, casas, ruas, e uma mistura de cores que o torna único. Do mais simples ao mais sofisticado, com gotas de arte e um pingos de magia, são pretexto para se visitar familiares e amigos. As mijinhas do Menino Jesus sabem melhor quando os “calzins”, como se dizia na minha terra, estão próximos do presépio. A mijinha é mais fresca, ainda quentinha. Bendita seja a pombinha do Menino Jesus! – como dizia a Maria da Lomba, que na quadra festiva constumava visitar toda a gente que tinha presépios em casa, com o sentido de provar as variadas pinguinhas.

A pombinha do Menino
Mija, mija sem parar

Veio ao mundo com destino
De a todos perdoar.

Nos Christmas Villages raras vezes aparece a Sagrada família, ou, simplismente o bebé recém-nascido. Ali só há algodão, ou outra fibra branca, representando neve. Neve com fartura. Como é do conhecimento geral, os americanos enquanto esperam pelas festas, sonham com um natal branco, o que nem sempre acontece, dependendo da localização. O facto de ali não haver Menino leva-nos a pensar que não há mijas. Engano nosso, porque eles sempre aranjam maneiras de se encharcar.

Brampton (Ontário, Canadá), em 2013 perdeu um presépio altamente artístico, com o falecimento do sr. Luís Cabral, que durante vários anos, na sua garagem armou. Era movimentado, à semelhança daquele que ele montava na Ribeira Grande,  quando era o seu mestre principal. Nos últimos anos de vida, gozando da sua reforma, entretinha-se a construir miniaturas dos edifícios públicos da sua terra, e também criava bonecos de madeira e outros brinquedos, de forma a dar-lhes, pelo natal, animação mecânica. Também chegou a fazer casinhas, e réplicas de edifícios públicos da Ribeira Grande, para oferecer a familiares e amigos. A sua cunhada de New Bedford, Alda Pacheco, tem um presépio que enche um quarto inteiro, no qual cerca de setenta por cento das peças, fixas e móveis, foram feitas pelo próprio Luís Cabral.

Já muito rabiscámos sobre as memórias dos nossos natais da infância e da juventude. Hoje, novamente, o tempo e as condições do dia são propícias para estas agradáveis lembranças. Lá fóra faz vento, e um pequeno chuvisco refresca o ar seco, propício da estação. Deus queira que a neve se mantenha a norte, e a maiores altitudes.

Naquele tempo, por esta altura, a rapaziada ia ao mato, à procura dos musgos e verduras diversas para ornamentação dos presépios. Também se trazia para casa pedregulhos diversos para ajudar na decoração. Alguns com vida vegetal, graças à humidade da ilha. Recuamos em pensamento aos meus tempos de catequese. O presépio do Sr. Prior ainda funcionava no Passal dos Vigários da Matriz. Era o tal presépio que ocupava um mês de serões ao sr. Luís Cabral e seus ajudantes, na sua
montagem. No dia de natal o horário das missas era o mesmo dos domingos e, sendo assim, às nove e meia da manhã a missa era dedicada aos rapazes e raparigas que frequentavam a catequese. O presépio da igreja era grande e ocupava uma
capela inteira. O Menino Jesus tinha o tamanho real de um bebé recém nascido, e os pais eram de estatura normal de humanos adultos. Até a vaquinha e a burrinha pareciam reais. Este cenário era apresentado ao público pela primeira vez no decorrer da Missa do Galo, precisamente às zero horas do dia vinte e cinco, no momento do cântico da Glória, com o tilintar das campainhas, repiques de sinos, e lançamento de dois ou três bombãos, a partir da torre da igreja. Dizia-se que o sacristão Manuel da Costa tinha as mãos de ouro por tudo o que fazia, no enfeitamento da igreja.

Para além da cena da natividade, a rapaziada contemplava a árvore, quase sempre colocada no lado direito da capela de Nossa Senhora da Estrela. Era diferente daquelas que se via nas casas particulares. Não tinha balões (bexigas, como se dizia), nem laranjas, nem tangerinas. Tinha saquinhos de papel fino, encarnado. Era linda. Simples mas muito linda. À sua sombra estava quase uma centena dos mesmos saquinhos de papel encarnado, que a enfeitavam. Eram as “malinhas”. Umas bolsas recheadas de pedacinhos de biscoitos e carrilhos, um ou dois rebuçados, um figo passado e mais um pedaço de alfarroba. O embrulho era fechado com um cordel, cujo acabamento tinha forma de argola, de modo a servir num braço de criança. Depois da missa, ao beijar o Menino, o sacristão entregava uma destas bolsas a cada aluno da catequese. Assim, a rapaziada saía da igreja muito contente e, acompanhada pelas catequistas, tinha o privilégio de visitar, gratuitamente, o presépio do sr. Prior que, ainda nos anos sessenta funcionava através de uma manivela. Lá não havia mijinhas para os pequenos da catequese. Se havia para as catequistas, elas bebiam às escondidas. Graças a Deus, a nossa criação não pertenceu a uma geração de alcoólicos.

Voltando aos presépios dos nossos lares, lembramos que os bonecos ou figuras eram uns feitos em barro, outros em gesso, e ainda outros em cera (parafina). As casinhas eram, na sua maioria, fabricadas em papel, cartão ou cartolina, e coloridas por aguarelas. Algumas delas tinham formosas vidraças, que eram feitas com papel de rebuçado, não esquecendo os formosos telhados de papelão ondulado. Havia tempo para estas coisas, não é?… Sim. Não tínhamos o stress de que hoje tanto se fala, e que justifica quase todo o tipo de malandrice. O quotidiano da vida era mais lento e tudo era melhor apreciado. A goma arábica era a cola que se usava nas casinhas de papel. Na mercearia comprávamos os cristais da goma e, ao chegar a casa era só dissolvê-los em água, dentro de um franquinho ou outro qualquer recipiente, onde se mexia constantemente até criar
uma massa consistente com pouca fluidez. Era uma cola impecável, melhor do que as claras de ovos, e só desapareceu do mercado com a chegada da famosa Peligon.

Não havia pinceis para a pintura das casotas. Mas, qual era o problema? Era só cortar umas pontinhas do cabelo da avó, ou da pessoa mais chata na família, e amarrá-las a um palito e, já estava o pincel feito! Tudo tão simples, mas temos a certeza que se fossemos a fazer isto nos nossos dias, para muitos seria complicado demais, originando olhos negros e narizes partidos.

Na Ribeira Grande, alguns presépios ficam armados até ao dia de Nossa Senhora da Estrela (2 de fevereiro), mas de um
modo geral, o Dia de Reis (6 de janeiro) marca-lhes o fim. Também ainda lá se faz o famoso cortejo de Reis, onde desfilam várias figuras do Antigo e Novo Testamentos, sobressaíndo, como não podia deixar de ser, os Magos do Oriente, que foram adorar Jesus, e lhe deram presentes. No quadro tradicional dos Magos do Oriente estamos acostumados a ver camelos, o que é impossível utilizar para transporte na Ribeira Grande. Sim, não há camelos na Ribeira Grande, porque o camelo aguenta-se muito tempo sem beber. Com todas as mijinhas do Menino Jesus na Ribeira Grande o camelo não faria sentido nenhum.

Tantas flores em grinaldas,
Tantas luzes e bolinhas!
Tantos Meninos sem fraldas
Tantas e tantas mijinhas!

As “macieiras”, os “constantinos” e os “anizes”, nas ilhas, só vieram para as mesas da consoada da classe média em meados dos anos setenta. Os vinhos do Porto e da Madeira juntavam-se à lista dos licores caseiros, que eram preparados com muito amor. Compravam-se as essências e as cores na farmácia; o álcool na mercearia. Três medidas de água com uma de  álcool, essências e cores adicionadas, tudo bem mexido numa panela a lume brando, sem ferver. Assim se fabricavam as mijadelas coloridas do Menino Jesus. Eram os licores de baunilha, ananás, laranja, limão, tangerina, entre outros, conforme os gostos e desejos.

A expressão que ainda actualmente se usa de “correr as casinhas do presépio” está relacionada com as visitas aos lares de familiares e amigos, para ver os seus presépios, e provar as mijinhas que o Menino Jesus faz em suas casas. Reparando que estas lembraças já derramaram muita tinta, decidimos ficar por aqui, desejando a todos umas santas e felizes fastas, fazendo votos que o novo ano seja portador das maiores venturas.
Haja saúde!

Ó meu Menino Jesus,
Dai-nos as graças bastantes.
Sentai à mesa que eu pus
Com meus irmãos imigrantes.
Bem longe de Portugal,
Recordando o meu país.
Eu desejo um bom natal
E um ano novo feliz.