AS POÇAS DO TI MARIANO

Não se termina uma época balnear sem que se recorde o encanto e a magia das “minhas” Poças. Local que frequentei assiduamente por vinte anos. Dos dois aos vinte e dois. A memória mais longínqua vai buscar um nome de Ti Jacinto como seu guardião, na década de sessenta. Mas a mais fresca e mais vivida traz sempre a presença do Ti Mariano Frade.

Todas as vezes que vou a São Miguel o primeiro lugar que visito, por imposição da saudade, é a estância balnear das Poças. Em 2017 desloquei-me à minha terra do coração, a Ribeira Grande, na companhia de José Salvador Couto, afim de participarmos nas cerimónias do trigésimo sexto aniversário da cidade. Sendo uma viagem relâmpago, de quatro dias, claro está que tive de aproveitar as Poças no máximo que permitiu o tempo. Assim, chegando à ilha dois dias antes de São Pedro, depois de tomar o café com a família, enfiei-me nas Poças, e por lá deixei-me ficar o dia todo. A certa altura, tomei nas mãos o telemóvel, pus-me a escrever. De lá mesmo, aproveitando o wifi das Poças, enviei o texto para os três jornais diários de São Miguel, cujas publicações tiveram lugar no dia seguinte, a 28 de junho. Falavam que, ali estando, apanhando uns raios de sol, naquelas Poças, que não eram as mesmas de há quase  quarenta anos, a água e o sol tinham o mesmo sabor; e que, enquanto gozava aquela água e aquele sol, sentia-me feliz, entre duas épocas distintas, no mesmo lugar, com tantas diferenças.

Seria injusto não enaltecer a beleza daquele cantinho no tempo presente, com todas as mudanças ali efetuadas, durante vários anos, para se chegar ao ponto atual. Antigamente era mesmo poças, criadas pela natureza entre rochedos, e mantidas pela vontade humana. Agora é um complexo balnear moderno, com tudo o que as regras pedem, ou exigem. Depois de construído um quebra-mar, e feitas algumas alterações em betão, as ondas se encarregaram de lhe dar outro aspeto. Fizeram a areia cobrir a maioria dos rochedos circundantes da antiga poça maior, formando uma pequena e graciosa praia. As piscinas de cimento armado também merecem elogios, mas eu contento-me com aquele bocadinho de mar que se espreguiça no areal que soterrou as minhas poças, aonde vivi muitas horas de alegria, na meninice e na juventude. As memórias que naquelas horas vivi mostraram-me as duas correntes de ferro, para a segurança dos banhistas: uma na poça menor, para a maré-vazia; e outra na poça maior, para a maré-cheia. Porque quando uma onda mais forte vinha pelas poças adentro, quem não se segurava nas correntes estava ao risco de se aleijar; e quando aquela porção de água que entrara retomava ao mar aberto, havia riscos maiores. Em dias de mansidão de mar, o que não é muito frequente acontecer ali, a rapaziada nadava à vontade. Fazia-se o que se chamava “saída”. Em grupo ou individualmente quase sempre os destinos seriam a baixa-pequena, ou a baixa-grande. Nadar até à baixa-grande era qualquer coisa de espetacular, sempre debaixo dos olhares atentos do Ti Mariano, antes de ser imposta a vigilância dos nadadores-salvadores. Em dias de mar meio revolto estas saídas eram proibidas, e só se nadava nas poças. Os saltos, de cima dos rochedos, eram frequentes. O lugar para a prancha de madeira estava quase sempre vago, porque todos os anos se instalava uma prancha nova, que pouco tempo durava. Era uma questão de dias, mas não afetava os famosos “pulos de cabeça para baixo”. Porque os rapazes que davam pulos na posição vertical eram alcunhados de maricas, femininos ou “paneleirins”.

A autoridade das Poças era o ti Mariano. Um homem de respeito, que respeitava todos, e todos o respeitavam. Uma figura típica da Ribeira Grande e única nas Poças. Aquele velho lobo-do-mar conhecia as marés e toda a zona circundante do seu meio. Era alto, elegante, e usava um chapéu de pequena aba, tipo “gringo” o tempo inteiro. Comia tigelada de chicharros quase todos os dias e tinha cerca de uma dezena de filhos (perdi a conta). Todos eles, se não tivessem aparência humana seriam peixes porque nadavam como eles. Mas eu nunca vi o ti Mariano nadar. Sempre o conheci agasalhado do sol, e protegido da brisa marítima. Morava mesmo em frente das Poças.

Na América não se fala em “congestões”. Toda a gente vai para a água quando apetece, tanto com a barriga cheia como vazia. Com cerca de quarenta anos a viver nos Estados Unidos nunca me apercebi de nenhuma notícia sobre a morte de alguém por congestão a tomar banho. Em Portugal respeita-se a regra de esperar três horas depois das refeições. Mas nas Poças, o ti Mariano absolvia esta regra. A rapaziada que não queria esperar pelo tempo da digestão recorria a ele, a perguntar se podia ou não tomar banho. A resposta era sempre a mesma: “Não comeste nada quente, podes ir para a água.” Já se sabe que era isto que se queria ouvir. O ti Mariano disse que sim, e nas Poças ele é quem manda!…

Fora da época balnear, até mesmo na força do inverno, todos os domingos, sem falha, por volta das nove da manhã, eu batia à porta do ti Mariano. Não era preciso dizer nada, porque quem a porta abria já trazia consigo a chave das Poças. Era com ela que se abria as barracas da mudança de roupa e dos chuveiros. Muitas vezes, de sobretudo e guarda-chuva se ia às Poças ao domingo de manhã. Depois de tirada a roupa de inverno, em calção de banho e de sapatilhas nos pés, fazia-se uma corrida ao Palheiro para aquecer o corpo, e em seguida dava-se a entrada triunfal, de uma só vez, na água do mar. Seguia-se o duche, com água muito mais fria, com lavagem de corpo e cabelo a sabão branco e azul. Depois, a entrega da chave em casa do ti Mariano, com uma pequena gorjeta. Era a garantia da chave no próximo domingo, à mesma hora. Recordo o dia em que me tornei emigrante, com pormenores que aqui já mencionei, e não vou repetir, a não ser os abraços (únicos) ao ti Mariano e à sua esposa. Até um dia, se Deus quiser. Parece que Deus não quis, porque aquela foi a última vez que os vi.

Muita gente gostou da crónica publicada nos diários micaelenses na véspera de São Pedro. No dia seguinte, quando a Ribeira Grande comemorava os trinta e seis anos de cidade, ao entrar nas Poças fui mais ou menos confrontado pelo meu amigo Jorge Tarraxa, atual guardião daquela estância balnear, esclarecendo-me que ali já tinha mais anos de serviço do que o próprio Ti Mariano; e que não, não estava ofendido, confessando ter gostado muito da minha homenagem ao Ti Mariano. É mais ou menos da minha idade e sabe muito bem que no meu tempo existiu nas Poças um outro Jorge. Aquele que cobrava os bilhetes de entrada, para além do senhor Mariano Frade, que era a autoridade das Poças. Amigo Jorge, daqui a alguns anos serás também lembrado, pela geração nova que agora as Poças frequenta. E digo-te mais: as Poças não poderiam estar em melhores mãos do que nas tuas. Obrigado por toda a tua dedicação e por todos os teus serviços. Seja pelo amor das Poças!

Naquele dia tive de regressar a casa da minha irmã, onde estava hospedado, por volta do meio-dia, para vestir-me “decentemente”, a modos de ver a chegada das cavalhadas nos Paços do Concelho. Já neste local, em momento de conversa com Alexandre Gaudêncio e José António Garcia, um deles me perguntou por onde andava, porque na Ribeira Grande ninguém me via. Dada a resposta, veio da parte deles esta piada: “Ele não veio para a Ribeira Grande, mas sim para as Poças. Só aparece na Ribeira Grande nas horas vagas…” Dito isto, tive de levar das mãos à algibeira, e de entre uns papéis que dela tirei sobressaiu aos nossos olhos o bilhete de entrada para as Poças daquele dia. Mais uma piada: “Já viste, ele guardou o bilhete das Poças! Ele está à espera que isto acabe para voltar às Poças!…” Vira-se o outro: “A gente vai ter de lhe arranjar um passe para as Poças. Assim ele não precisará guardar os bilhetes…” Eu até que aceitaria, em ato simbólico, esta coisa do passe, porque, graças a Deus, ainda não preciso de esmolas. Mais tarde, em brincadeira, por ele  perguntei. Um disse que é da competência da Câmara; o outro, da Assembleia. Se a promessa tivesse sido feita este ano, com eleições à porta, já teria nas mãos o “bendito” passe para as Poças.

Ao encerrar estas notas de saudade, desejo deixar claro que as “minhas” (“nossas” para todos os indivíduos da minha geração) Poças estão ali. As mesmas de há quarenta anos. As coisas mudam, as pessoas também. Quarenta anos é muito tempo. Mas uma vida de cem, para quem a eles consegue chegar, ainda é muito pouco! Haja saúde!