MÁRIO MOUTINHO NO III FESTIVAL DE TEATRO JOSÉ GUIMARÃES

O nosso convidado de hoje é um dos nomes incontornáveis da história do teatro no Porto das últimas décadas. Com formação na área do cinema, onde tem prestado igualmente atividade de relevo, é sobretudo no teatro que Mário Moutinho tem desenvolvido grande parte da sua carreira, como ator, produtor e programador, ao serviço de quase todas as companhias da cidade Invicta e do FITEI-Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, que dirigiu entre 2005 e 2013.

A televisão tem sido também o seu território de criação, com destaque nos anos 1980 e 1990 nas icónicas séries “A Árvore dos Patafúrdios”, “Os Amigos de Gaspar” e “Os Andrades”, enquanto foi produzindo paralelamente os mais diversos “documentos-vídeo” relacionados com as artes de palco.

Recentemente, escreveu o livro “O teatro semiprofissional do Porto”, em parceria com Luísa Marinho, e criou com o grupo Visões Úteis o espetáculo “Little B”, inspirado na sua biografia. É, aliás, esta produção que abre a 3ª. edição do Festival de Teatro José Guimarães. Mas não se fica por aqui a sua participação na programação do certame organizado pela Tuna Musical de Santa Marinha.

 

 

Como descreveria “Little B”, o espetáculo que criou em parceria com Ana Vitorino, Carlos Costa e Sara Barros Leitão, e que terá honras de abertura da terceira edição do Festival de Teatro José Guimarães?

A ideia do espetáculo surgiu na sequência de uma conversa com o Carlos Costa, do Visões Úteis, em meados de 2017. A propósito dos nossos projetos, lembrei um trabalho que tinha começado no ano anterior e que interrompi pouco tempo depois, para me dedicar ao meu regresso aos palcos, primeiro a convite do Roberto Merino e do Júlio Cardoso e depois noutras peças: a publicação de um trabalho sobre o teatro semiprofissional que se fez na cidade do Porto depois do 25 de Abril. Na altura, o Carlos sugeriu que, para além da publicação do livro e de uma exposição sobre o mesmo tema, se montasse também um espetáculo a partir das experiências e dos textos criados pelos grupos daquela época. Mas acabamos por achar a proposta de difícil concretização e a ideia caiu.  Também nessa conversa, ou noutra, já não me recordo, falei-lhe de umas apresentações esporádicas que fiz contando histórias que vivi no teatro, na televisão e não só, que comecei por fazer num encontro de contadores de histórias e que acabei por fazer em diversos locais, principalmente no Porto: no Pinguim, no Contrabando e no Café Ceuta. E lembro-me – disso sim, lembro-me – de ter dito que um dia gostaria de, a partir dessas histórias, fazer algo mais a sério. Algum tempo depois, recebi um telefonema do Carlos dizendo-me que o Visões Úteis, para além do programa de artistas associados dedicado a artistas emergentes, tinha criado um novo programa para artistas sénior e convidavam-me a ser o primeiro artista associado desse programa, propondo um apoio logístico e à produção do tal espetáculo que eu gostaria de fazer. Aceitei imediatamente, mas numa reunião preparatória que fizemos no início de 2018, já com os pés na terra, propus que a colaboração do Visões Úteis fosse não só na área da produção, mas também na dramaturgia e que juntássemos ao projeto um criador da nova geração, para um olhar mais distanciado do material que iríamos utilizar. Foi assim que chegamos à Sara Barros Leitão. O processo criativo foi fascinante e assustador: primeiro, eu não queria que o espetáculo fosse biográfico, laudatório ou, pior, um mero anedotário; isso assustava-me. Mas depois, quando se iniciaram as sessões de trabalho, começou a ficar claro que as histórias do Mário se cruzavam com as da Sara, da Ana e do Carlos, que todos queríamos contar essas vivências. Aí, o Visões Úteis propõe que o espetáculo deixe de ser uma produção de um artista associado e passasse para a programação regular da companhia, o que foi muito significativo para mim. Portanto, passei por diversas fases neste projeto. Satisfação pelo convite, medo do que pudesse resultar no espetáculo e, depois, satisfação pelo resultado obtido. Mas devo confessar que os receios que tinha só desapareceram completamente depois da apresentação em Coimbra, onde obtivemos também um extraordinário acolhimento.  O espetáculo é, portanto, o resultado destes quatro olhares, de facto inspirado na minha biografia profissional mas recusando uma perspetiva documentarista, pelo contrário, usando as histórias das nossas vidas para se falar de outras coisas.

 

Soubemos que a programação da próxima edição do Festival de Teatro José Guimarães integra um outro espetáculo em que também participa. De que se trata?

Trata-se de “À Espera de Beckett ou Quaquaquaqua”, estreado em Lisboa no Teatro da Trindade. Foi uma proposta feita ao Jorge Louraço Figueira pela Inês de Medeiros, então diretora do Trindade, para integrar a comemoração do 150.º aniversário do Teatro. É também uma homenagem a Ribeirinho, que estreou naquela sala a primeira encenação de “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett, em Abril de 1959. A peça do Jorge Louraço foi escrita no decorrer dos ensaios, teve uma participação muito ativa dos quatro atores. Está dividida em três partes que correspondem às três encenações que o Ribeirinho fez da peça do Beckett com os acontecimentos da época em pano de fundo: a primeira em 59 em plena ditadura, quando Humberto Delgado desafiou Salazar, em 69 quando o dramaturgo irlandês recebeu o Prémio Nobel da Literatura e se refugiou no hotel Cidadela, em Cascais, e em 73, em Angola, quando já se avizinhavam ventos de mudança e o fim da ditadura. Por isso, as duas primeiras partes decorrem como se de um ensaio se tratasse e a terceira é já uma desmontagem. Estes três momentos da peça – não lhes podemos chamar atos – são divididos por ensaios das cenas do Pozzo e do Lucky de “À Espera de Godot” feitos pelos atores que na peça não fazem de atores: o ponto e o contra-regra. O Jorge procurou em “À Espera de Beckett ou Quaquaquaqua” uma intersecção entre o aspeto popular e o erudito do teatro, por isso aparecem também referências aos filmes interpretados pelo Ribeirinho, como “O Pátio das Cantigas” ou “O Pai Tirano”. Eu faço um personagem muito interessante e central: o ponto, que entra em conflito consigo próprio, estranhando tudo que de novo está a acontecer e cria uma relação tensa entre os atores e lhes sussurra ao ouvido, numa espécie de metáfora para o tempo presente, em que devemos ser politicamente corretos e dizer só o que nos sussurram aos ouvidos.

 

Mas não se fica por aqui a sua participação no Festival de Teatro José Guimarães, pois não? O que mais podemos esperar com a sua participação direta no âmbito do certame?

É verdade e sinto-me muito honrado por isso. De facto, fui também convidado para fazer uma apresentação do trabalho que publiquei recentemente nas Edições Afrontamento, “O Teatro Semiprofissional no Porto – Arte, Ativismo e Experimentalismo nos Anos 70 e 80”. É um livro que escrevi em conjunto com a Luísa Marinho que regista o teatro que se fez no Porto depois do 25 de Abril. Centra-se nos grupos semiprofissionais surgidos no chamado Grande Porto, isto é, Porto, Vila Nova de Gaia e Matosinhos, que tiveram uma grande importância na renovação do teatro nesta região. O convite para escrever sobre o assunto foi-me dirigido pela Maria Helena Serôdio para a revista “Sinais de Cena”, depois de uma intervenção que fiz em Lisboa, no Teatro São Luiz, a propósito de um ciclo de teatro do Porto lá realizado. Na altura, eu estava no FITEI e, portanto, não tinha grande possibilidade de investigar e escrever o texto. Depois de sair da direção do festival, resolvi pegar no tema. Iniciei a investigação e convidei a Luísa Marinho, que já tinha trabalhado comigo, e logo nos apercebemos da importância que o livro poderia ter, dado não haver qualquer entidade com documentação arquivada sobre o assunto e estar tudo muito disperso ou mesmo desaparecido. Então, decidimos abandonar a ideia do artigo/dossier para a revista e avançar com a publicação de um livro. E fizemos perto de trinta entrevistas a elementos que tinham passado por esses grupos, atores, atrizes e outros intervenientes. Mas mesmo os elementos de alguns desses grupos não guardaram, nem deram para arquivo, qualquer documento, com exceção do Art’Imagem, que é a única companhia desse período que se mantém em atividade, do Victor Valente e do Armando Dourado, ambos de O Realejo, que têm muita documentação do grupo, e do José Queiroga, do Teatro d’Água Acesa que também conservou o acervo documental do grupo. Eu tenho muito material do TAI, que era a companhia a que estava ligado, mas das restantes companhias foi mais difícil reunir documentação. Curiosamente, foi na Biblioteca do Museu do Teatro, em Lisboa, onde a minha investigação foi mais profícua. O livro resulta, portanto, na história do “movimento dos grupos semiprofissionais” e de alguns dos grupos que o constituíam: o Roda Viva, o Teatro 5, o Faúlha, o Caixa de Pandora, o Teatro Ensaio de Gaia e o Banzé, para além dos que eu já referi. Escolhemos dez, uns pela importância que tiveram, outros pela inovação ou pelos elementos que formaram e que ainda hoje fazem parte do tecido profissional do teatro no Porto. Há também duas outras referências que, embora não pertencendo a este movimento, foram muito importantes naquela altura, um ano antes do 25 de Abril e imediatamente a seguir: O Grupo de Teatro Independente António Pedro e a Companhia Teatro-Laboratório do Porto.

 

Tendo Gaia integrado o movimento que revolucionou as artes de palco no Grande Porto, o que explica que o teatro profissional não tenha hoje uma maior expressão na margem esquerda do Douro?

O facto de estar junto a uma cidade onde estão os grandes equipamentos culturais e alguns eventos de importância nacional e internacional pode não ajudar. Mas penso que se deve principalmente a erradas decisões de política cultural. Repare, depois do movimento referido, Gaia já não teve qualquer companhia das chamadas “independentes” que surgiram um pouco por todo o país em finais dos anos 70 e início dos anos 80 – no Porto surgiram o Tear, o Pé de Vento, o Cena, Os Comediantes e, mais tarde, o ContraCena. Mesmo quando são criadas as novas companhias nos anos 90, algumas por alunos recém-formados pelas escolas artísticas do Porto, com destaque para Teatro Bruto, Teatro Plástico, Teatro de Marionetas do Porto e As Boas Raparigas, nenhuma se sedia ou trabalha em Gaia, apesar de alguns dos seus elementos serem daí naturais e aí viverem. Mais recentemente, esteve sediada em Gaia uma companhia portuguesa de grande prestígio internacional, que tem corrido toda a Europa com os seus espetáculos, o Teatro de Ferro, e teve um espaço de acolhimento de propostas contemporâneas e alternativas, o Espaço La Marmita. Só que o Teatro de Ferro rumou à cidade do Porto e o La Marmita encerrou por falta de apoios. Ora isto, numa cidade com profundas tradições de teatro amador, é um pouco estranho. Falei muitas vezes sobre este assunto com colegas e até com responsáveis políticos que, também muitas vezes, me disseram que precisamente por haver muitos grupos de teatro amador, apoiando-os de uma ou de outra forma, já não havia necessidade de pensar em mais nada sobre teatro. Ora este, parece-me, é um argumento que nada colhe. Porque são coisas distintas no que diz respeito ao que é a política cultural para este setor. As coletividades amadoras desenvolvem um meritório trabalho e devem ter um maior apoio para as suas atividades artísticas e de ligação às comunidades. Mas não distinguir o que é atividade amadora do que é criação artística seria o mesmo que o Ministério da Cultura desistir da Orquestra Sinfónica porque existe uma fanfarra de bombeiros, ainda que esta seja uma imagem exagerada. Devo reconhecer que este não é um problema que se coloque apenas em Gaia; infelizmente há muitos outros exemplos de confusão entre o que é apoio aos criadores artísticos que definem a nossa identidade e o mero entretenimento, entre a programação cultural regular e a realização de eventos pontuais e festivos.