Rui Leite, natural da freguesia da Ribeirinha, mas a viver atualmente na Matriz tem um dom que alguns estão agora a conhecer e reconhecer. Além de ter como profissão principal fiel de armazém, é há 26 anos voluntário nos Bombeiros Voluntários da Ribeira Grande. Frequentou a escola da Ribeirinha, até ao 4º ano, transitando depois para a Escola Secundária da Ribeira Grande onde esteve até ao 6º ano. Depois, já nos bombeiros, acabou por concluir o 9º ano num programa dos próprios bombeiros. Mas há cerca de quatro anos, descobriu a sua paixão, recriar monumentos, mais concretamente religiosos, em madeira, aproveitando tudo o que é lixo, madeiras, plásticos e comprando apenas detalhes que vai precisando. Esta sua paixão já passou para a filha mais nova, de sete anos, que está a seguir as pisadas do pai e o deixa bastante orgulhoso. Contudo, ainda não fez nenhuma exposição dos seus trabalhos, não por falta de vontade, mas por falta de convite, segundo o próprio.
Tem um hobby que tem surpreendido não só os ribeiragrandenses mas todos os que contactam com o que tem a apresentar…
É verdade, faço maquetes em madeira. Aproveito tudo o que é de lixo, madeiras, plásticos, tintas, tudo o que vai para o lixo eu aproveito. No fim, as pessoas não imaginam que o que está ali é lixo, mas como costumo dizer o lixo dos outros é o meu ouro. Aproveito tudo, gasto muito pouco, só quando faço as Igrejas é que os sinos não consigo fazer e uma coisita ou outra que compro, de resto é tudo feito com material reciclado.
Esta é uma atividade que começou há pouco tempo. Porque?
Sim, há quatro anos. Comecei a fazer casinhas pequeninas para o presépio, uma janela, uma porta e pouco mais. Depois incentivaram-me para fazer três igrejas, a Igreja dos Frades, da Conceição, a Igreja da Ribeira Seca e o Santuário do Santo Cristo, para fazer o trio da Madre Teresa. Fiz, a pessoa gostou muito, está na sua coleção particular, e tenho feito mais algumas para esta mesma pessoa.
O que sente quando está a fazer uma obra dessas?
É difícil explicar, ver nascer algo de um pedaço de madeira ou de algo sem valor nenhum, e isto é feito por olho, não tenho medidas, não há escalas, faço a frente olho para a fotografia e vejo, e a partir daí faço o resto. Nunca tenho medidas precisas, uma peça nunca é igual à outra. No fim, olho e vejo um trabalho daqueles é um grande motivo de orgulho porque eu nunca pensei que fosse capaz.
A última que fez foi a Igreja da Nossa Senhora da Estrela que estava exposta nos Bombeiros Voluntários. O que quer dizer que além daquele trio que citou, nestes quatro anos já fez muitas mais peças.
Sim, ainda na semana passada entreguei a Igreja da Senhora da Graça, de Porto Formoso, que tem uns ornamentos muito difíceis, a frente tem umas flores bordadas em pedra e em madeira é difícil fazer isso, tive que me tornar Picasso e muito devagarinho pintar. É preciso ter um bocadinho de jeito e vou aprendendo com o tempo, tenho aprendido muito e sempre que posso vou ter com mais velhos para aprender mais ainda. Não há melhor professor que o tempo, e as pessoas mais velhas ensinam muito. Dão dicas, por exemplo, já pintei com espetos de churrasco em que o pincel não dá porque sempre que faz o risco borra, mas o espeto do churrasco tem aquela ponta afiada e faz aquele risco bem feito.
Há então mais pessoas aqui na localidade que fazem o mesmo tipo de trabalho?
Que eu conheça, só existe mais um.
Mas há aqui a tradição de fazer aqueles bonecos pequenos em barro…
Já fiz isso, mas dá muito trabalho.
E fazer uma igreja não dá muito trabalho?
Dá. Se for a Igreja Matriz são 120 horas. É feito aos serões, mas é feito com amor. Estou a fazer, neste momento, a Igreja e ermida da Mãe de Deus, que fica na Ribeira Seca, para o mesmo senhor. E ele ainda quer do Senhor das Dores, e logo de seguida tenho a Igreja da Conceição para oferecer para um aniversário.
E como não faz cópias, vai ser diferente da que já fez, correto?
Sempre diferente, nunca nenhuma igual. Não há hipótese de haver cópias.
Ao longo destes quatro anos, há momentos que o marcam positivamente?
Sim, sim. Fiz uma peça para oferecer ao Santuário da Esperança, sem interesse nenhum ofereci, para quem acredita e o reitor mandou-me uma mensagem com a imagem a perguntar se eu gostava, e era uma imagem do meu trabalho em frente ao Santo Cristo. E não há dinheiro que pague isso, ele deu-me o privilégio de estar junto à imagem e é um orgulho enorme, sempre que vou lá sou muito bem recebido.
Este dom, de conseguir construir estas peças, já vem de criança ou nessa altura não ligava nada a trabalhos manuais?
Sempre gostei de monumentos, igrejas adoro, sempre que vou ao continente adoro aquela zona em frente à Câmara do Porto, Gaia igualmente, tudo o que é monumentos eu vejo.
Então qualquer dia temos o Mosteiro da Serra do Pilar feito pelas suas mãos?
Não digo que não, já me provocaram para fazer o meu quartel, mas primeiro tenho muito trabalho pela frente, depois, quem sabe. Mas isto não para por aqui. Enquanto eu puder e tiver saúde e enquanto puder fazer mais e melhor… não há melhor professor que o tempo, à medida que vou fazendo mais vou aprendendo, vou sempre aperfeiçoando. Porque a primeira peça que fiz, hoje olho para ela e penso que não é minha. Pego numa de há quatro anos e pego numa de agora e é diferente.
Já pensou em realizar uma exposição?
Não. Nunca tive propostas. Ofereci uma ao nosso presidente, Alexandre Gaudêncio, ofereci mesmo aos Paços do Concelho, e está lá na Câmara Municipal. Ele viu a Igreja da Nossa Senhora da Estrela lá no quartel, e convidou-me a fazer os Paços do Concelho e pouco depois entreguei-lhe. No entanto, magoei-me, quase que amputei um dedo, mas cerca de dois meses depois ele já o tinha nas mãos.
Como prevê o futuro nesta arte de bem recriar monumentos históricos da ilha de São Miguel e não só? O que sonha para o futuro, dedicar-se a tempo inteiro?
Os bombeiros não largo, é muito amor à camisola. Comecei já tarde, porque o meu pai não me deixava vir da Ribeirinha para a Ribeira Grande a pé, só me deixava vir quando ele vinha. Por isso, enquanto puder estar nos bombeiros vou estar.
Vi um comentário seu, numa rede social, numa imagem sobre os santeiros do Coronado, da Trofa, em que dizia que gostava de um dia poder aprender a fazer imagens semelhantes. Porquê?
Porque eu na escola aprendi a moldar o barro, mas depois a vida mudou e fez com que não enredasse por aquele caminho. Mas eu gosto de trabalhar a madeira, fazer rostos, eu estive a trabalhar na Igreja dos Frades e tive o prazer de ver os pormenores que eles têm nas pinturas das imagens, nos frescos, e o carinho que transmitem às peças. Não é chegar lá, duas pancadas e ir embora. O minucioso, o carinho de estar ali e a preocupação em que fique tudo perfeito, as vezes que for preciso. Porque para mim, a opinião do outro, se for má, fico desmotivado com o trabalho.
Sendo um autodidata, se o desafiassem hoje para uma exposição, sentia-se preparado?
Teria que ir pedir às pessoas que me emprestassem os trabalhos, mas sim, tenho confiança no meu trabalho. Se o entrego, tem de estar bom. Se não tiver bom, peço desculpa, mas leva sempre mais tempo até ficar como eu acho bem.
Começou por peças que faria, provavelmente, apenas por amor, hoje também já busca alguma recompensa financeira?
Sim, porque dá muito trabalho e sempre ajuda a pagar alguns materiais que no lixo não encontro. Também não vou revirar contentores do lixo à procura de sinos para fazer a Igreja, há coisas que tenho de comprar, com as dimensões certas, com a cor certa, com o formato certo, para bater tudo certo.
Tem algum monumento que gostasse de reproduzir e que possa vir a ser o seu próximo trabalho?
Tenho dois, mas não digo que seja impossível, mas é muito difícil, que é a Igreja do Senhor dos Passos, que tem muitos bordados, e para fazer aquela pedra saída fora não é fácil. E o segundo é o Mosteiro dos Jerónimos, mas é uma dimensão… para já, não tenho posses de ir lá, posso tirar fotografias na internet, mas é sempre diferente estar a olhar diretamente até porque as medidas do trabalho já vêm na cabeça, enquanto pelas fotografias não é tão fácil.
Está disponível para ser desafiado, então?
Sim. Já tive alguns desafios, e graças a deus, até agora, tem corrido bem. O Santuário da Esperança, aquela torre, tem dois tipos de janelas, por dentro tem umas persianas fechadas e por fora tem uma rede em que as irmãs, por dentro, olhavam cá para fora, mas de fora para dentro não conseguíamos ver as irmãs. E eu fui tão teimoso que tive de fazer as duas janelas, cortei as 52 janelas, fiz a janela por trás, com risco a meio, para fazer as duas persianas e por fora fiz a rede com a madeira à volta. E deu-me muito orgulho fazer aquilo, e esta semana, chegou ao Canadá, Toronto, um trabalho meu da Igreja da Matriz.
Como é que a família vê esta atividade?
Apoiam-me. Sempre que têm algo que veem que consigo aproveitar, entregam-me. Por exemplo, aqueles escorredores, eu aproveito os quadrados para fazer as janelas, dependendo das dimensões do trabalho e do tipo de trabalho. Tenho um colega meu que sempre que vai a uma loja que tem este tipo de material, traz-me. Por isso, todos me apoiam, só tenho é de, antes de entregar as peças, lhes mostrar a ver se gostam.
Qual a obra que está a fazer neste momento?
A Igreja da Conceição, que é para oferecer até ao Natal.
Quer deixar alguma mensagem aos ribeiragrandenses?
Gostaria de dizer para darem mais valor ao artesanato, que não dão valor.
Nem agora com os turistas, não há procura por este tipo de artesanato?
São mais os emigrantes, porque pedimos um valor e as pessoas não têm noção que são 120 horas de trabalho duro. A Igreja da Matiz, que fiz recentemente, foi 100 euros. A Solange Vieira, da RTP Açores, chamou-me maluco, mas eu prefiro vender mais alto, mas que a pessoa fique com um trabalho meu decente. Não me importa muito o dinheiro, é mais para pagar tintas, coisas básicas. Porque há alturas boas, menos boas e péssimas, a minha empresa tem passado por alturas péssimas e não tenho tido meios para comprar o que preciso. E aquele valor não é pelo valor da peça, é para pagar os custos.