O MILAGRE DO SUMO DA AZEITONA

Um leitor do Audiência-RG pediu-me para contar neste jornal esta história. Como nunca pensamos duas vezes, decidimos fazer-lhe a vontade. Por uma simples razão: ela retrata um pouco a geografia física do coração da Ribeira Grande num passado muito recente, à mistura de usos e costumes com a mentalidade juvenil do início da década de 80. A estória é verídica, e avisa-se que o texto contém linguagem sem regras de pipis nem fifis, sem ter intenções de ofender ninguém, e confessamos que não temos nem uma ponta de orgulho por ter feito parte desta estória. Este, e outros episódios como este, traçaram o nosso destino.

Somos mais do tempo da cervejinha fresca do que daquele dos copos, meios-copos e dezasseises. Mas na nossa infância a bebida alcoólica mais consumida na Ribeira Grande, como toda a gente sabe, era o Vinho de Cheiro, chegando mesmo a fazer parte das nossas vidas. Além de ser a bebida do dia-a-dia, era, também, nas mentalidades de então, um indispensável alimento. O camponês necessitava encharcar-se com ele, para ter forças no cavar das terras. Na Ribeira Grande não se brincava quando se bebia: um copo era um copo, ou um quartilho, um quarto de canada, ou seja meio litro; meio-copo era um quarto de litro, metade de meio litro, ou um oitavo de canada; o dezasseis, por sua vez, já se percebe que seria um quarto de copo, um oitavo de litro, vindo a ser, deste modo, um dezasseis avos de canada. As garrafinhas do vinho tinto de Continente, de preço acessível, só começaram a aparecer em massa por volta de 1980, e foram elas as responsáveis pela extinção da boa-pinga do nosso Vinho de Cheiro. Mas isso é outra estória. Vamos voltar à nossa, porque se teimava em conservar na Ribeira Grande uma boa pinga. É que, na terra dos fuseiros não se produzia, mas lá sempre se encontrava o melhor vinho que havia em São Miguel. Era a demanda do mercado, claro! Acabámos de recordar que aqui já falámos do vendedor ambulante do Continente, que tentou vender na Ribeira Grande uns copos de quartilho falsificados, e que faltou pouco para lhe partirem os cornos. Não vamos contar este episódio outra vez porque não somos como o relógio da câmara, que bate as horas duas vezes.

Enquanto o vinho tinto do Continente se ia introduzindo lentamente nos nossos hábitos de consumo, na Ribeira Grande havia um pequeno grupo de rapazes, do tempo da cerveja fresca, que fazia questão em preservar as tradições. A modo de falar, a Vila tinha cem tabernas. Nossos pais, em dias especiais percorriam a Irmandade de São Martinho, que era grande, para saber qual era a taberna que tinha o melhor vinho. Connosco, os rapazes da tal geração da cerveja fresca, achávamos graça a isso, que não passava de um passatempo a modo de brincadeira. Era a brincadeira dos meiozinhos. Vamos à estória, onde nos colocamos na primeira pessoa do singular, e ao segundo protagonista daremos o nome de Tony Silva. Não aquele que foi o grande criador de toda a música Rock, porque nunca esteve na Ribeira Grande; mas sim o outro, o que queria inventar a lamparina humana: enquanto as mulheres dão à luz por baixo, este queria dar à luz por cima. Vamos atar o fio à meada.

Era uma tarde normal, de uma sexta-feira de Março, que o calendário não assinalava nada que fosse diferente das outras. Por algum motivo, do qual agora não me recordo, naquele dia saí do trabalho mais cedo, e cheguei à Ribeira Grande por volta da uma da tarde. Ao descer da camioneta a primeira pessoa que vi foi o Tony Silva – um rapaz que seria mais novo do que eu uns dois anos. Conhecia-o muito bem porque éramos vizinhos, e sabia perfeitamente que ele invejava certos passos que eu dava nas aventuras do dia-a-dia, porque uma idade permitia e a outra não. Eu tinha dezanove e ele não teria mais do que dezassete. Vindo ao meu encontro, fez-me esta pergunta:

-Alfredo, queres brincar aos meiozinhos esta tarde?

Não pensando duas vezes respondi, perguntando se ele tinha dinheiro. Que sim, respondeu; e tirou do bolso uma mão cheia de notas que ultrapassaria dois mil escudos, dizendo que teria de ir a casa primeiro.

-Óptimo! Porque eu também tenho de ir a casa comer alguma coisa. A gente se encontra aqui, às duas horas.

Na hora marcada, sobre a ponte do Paraíso apareceram os dois. Muito bem dispostos. Ali decidiram começar a brincadeira. Meiozinho na loja do Manuel Flôr, pagou um; meiozinho na loja do Faial, pagou o outro. Seguiram para a Rua do Espírito Santo, e na Grota, na Loja do Cabrita, mais meio a cada um. Dali foram para os Fóros, para a taberna do Fernando Pereira: mais meio. Como não podia deixar de ser foram proibidas as paragens no Mestre António Fona, porque meu pai ali trabalhava, e no Manuel Borges (Balão) pelo mesmo motivo. Do Fernando Pereira descemos ao Pascoal. Bela pinga! E atravessando a rua, visitámos o senhor Ezequiel. Sempre meio-copo. Como não diminuímos o volume, a coisa já não estava boa comigo. Mas desistir ficava feio e perdia-se o jogo. O outro mantinha-se teso como uma vara, e ria-se do meu estado. Pensei comigo: “Estou quente como um asno, mas este porrinha continua sério!…”

Atravessámos a Rua Direita e fomos à Loja das favas, que agora é o Restaurante Farias. Mais meiozinho. Tony Silva sempre teso, e eu já praticamente aos tombos. Tendo a mínima noção de que o outro era menor de idade, resolvi despertar-me. O remédio que eu sempre usava em situações como esta era, como não podia deixar de ser, um banho de água salgada. Tomei rumo às Poças. Tony Silva sempre a rir, sempre teso, e até já dizia alto e a bom som, que eu era fraco na brincadeira dos meiozinhos. Isto, mexendo-me com as tripas, fez com que eu lhe desafiasse a dar um mergulho na água salgada, naquela tarde fria. Para meu espanto, Tony Silva aceitou o desafio!

Chegámos às Poças. Maré vazia. Ninguém nas redondezas. Comecei a cerimónia do tira-roupa, e obriguei Tony Silva a fazer o mesmo. Fez. Um espectáculo daqueles devia ter sido filmado. Mas se nem tínhamos uma máquina fotográfica, muito menos havíamos de ter uma máquina de filmar. Deixemos a imaginação ajudar este pobre texto para ver como, com as duas mãos à frente, cobrindo as poucas vergonhas e deixando o rabo destapado, lá foram aquelas duas almas do diabo a correr pelo chão cimentado até ao lugar da prancha de saltos. Desta vez não me atirei de lá porque já havia sofrido um acidente ali, com a maré vazia. Descemos ambos à poça menor (aquele espaço entre as duas correntes), e foi dali que eu dei o meu mergulho. Tony Silva mergulhou logo a seguir. Ambos os saltos foram de cabeça para baixo. Quem dava saltos de cabeça para cima eram os “femininos”, ou os “paneleirins”, na nossa linguagem. Enquanto nadava para aquecer os músculos reparei que o outro porrinha não se mexia. Se a bebedeira não passou com o choque da água fria, acabou por passar completamente com este susto. Tony Silva parecia estar em coma! Carreguei-o às costas e levei-o para o local onde nos havíamos despido. Ele respirava, estava vivo, mas nem os olhos podia manter abertos. Não se segurava em pé, e da maneira como a cabeça descansava nos ombros parecia ter partido o pescoço. Ninguém por perto para ajudar. Estou lixado! – pensei. Tive de o vestir. Voltei a carregá-lo às costas. Subi a escadaria e cheguei ao caminho. Estava com ideias de ir para a área da piscina e deixá-lo dentro da gruta, a dormir, como metiam o Menino Jesus quando ali se fazia o presépio. Mas o presidente da câmara, passando por ali, reconheceu o rapaz. Aliás, toda a gente na Vila o conhecia, bem como toda a sua  família. Parou o automóvel, e quem estava com ele encarregou-se de tirar o rapaz das minhas costas, e deitou-o dento do carro, no banco de trás. Questionário. Não sei de nada! Estava bêbedo, “despice incoure”, foi prá água e ficou lá estirado. Eu é que o salvei! Grande acto de heroísmo! Penso que merecia uma medalha por isso.

A minha presença nas Poças, naquele dia e naquela hora nunca levantou suspeitas. Porque ali sempre ia tomar banho todas as vezes que me apetecia, em qualquer altura do ano. Mas de dia, “in-couro”, foi só esta vez. Penso que ninguém viu. Por isso levaram Tony Silva, no carro de mister Martins, para o hospital; e deixaram-me a pé, livre como uma gaivota. Isto devia ser umas cinco da tarde. Passou das dez da noite e Tony Silva não havia despertado. Tomei conhecimento desta situação porque a irmã dele foi à minha casa, às dez e meia da noite, a perguntar se eu sabia do relógio do irmão. Não, eu não vi relógio nenhum, ele não tinha relógio. Como é que ele está? No hospital, está dormindo. Ainda não despertou. Dois dias depois vim a saber que naquele dia ele havia deixado o relógio em casa.

O pior de tudo foi ter que dar explicações a meu pai, porque não era normal alguém ir a casa de alguém àquela hora da noite, por causa de um relógio e de um hospital. Papá, eu salvei o rapaz! Ele estava praticamente morto, na água. Disse e tornei a dizer. Mas não era fácil convencer o senhor José da Ponte.

No domingo da manhã, indo para as Poças, vejo Tony Silva na praça, a caminho da igreja. Eh, afinal, o que foi que te aconteceu naquele dia? – perguntei.

-Eh, Alfredo, eu sabia que não te ganhava. Por isso eu bebi meio copo de azeite antes da gente começar a via sacra. Toda a gente diz que o azeite no estômago fica em cima e o álcool fica em baixo; e a gente, com azeite no estômago pode beber o que quiser e nunca se embriaga.

Neste momento foi desvendado o mistério daquela situação. Passei de asno para idiota, e contei a tanta gente como tudo aconteceu: Enquanto ele estava de pé o azeite nunca o deixou ficar embriagado. Mas no momento que ele deu o salto para a água, de cabeça para baixo, o azeite correu-lhe para o rabo, e o álcool foi à cabeça, todo de uma só vez! Sim, foi isso! Só podia ter sido isso. O pior de tudo é que todos, ou quase todos os idiotas que ouviram esta explicação concordaram comigo. Tanto que, apareceu na linguagem quotidiana entre amigos a expressão do “azeite correr o para o rabo”. Uma semana depois da estória ter acontecido surpreendeu-me um dos meus amigos, que veio com esta conversa na noite seguinte a outra, em que aos meios se brincou:

-Ontem, quando me fui deitar, tive a preocupação de dobrar o cabeçal, para a cabeça ficar mais alta do que o resto do corpo. É que eu tinha comido bacalhau com bastante azeite, antes de irmos aos meios-copos; e se queres que eu te diga: não fiquei bêbado. Por isso, quando me fui deitar, preveni-me para que o azeite não corresse para o cu…

Com esta nos despedimos. Haja saúde e alegria!

 

O fruto da oliveira

Esmagado à maneira

Dá sumo santificado.

Seja de noite ou de dia

Sua luz sempre alumia

O Senhor Sacramentado.

 

Delicia bons manjares

Em almoços e jantares,

Tratado com excelência.

Não foi uma ideia fina

Ser humana lamparina

Nesta pobre experiência.