O RETIRO DO QUEBRA BILHAS – UM CONTO EM SEIS EPISÓDIOS

Enquanto aguardamos pelo final do prazo para a receção das pontuações dos nossos leitores-jurados ao último conto do concurso “Um Caso Policial em Gaia”, prosseguimos a publicação do original “O Retiro do Quebra Bilhas”, uma micronarrativa em seis episódios da autoria de A. Raposo, um saudoso amigo das “lides” policiárias que homenagearemos ao longo deste ano com a realização de um torneio de decifração destinado prioritariamente a principiantes, mas aberto a todos, que arrancará logo após o anúncio do vencedor do nosso concurso de contos.

 

“O Retiro do Quebra Bilhas”, de A.Raposo

2º. Episódio – Do Martim Moniz ao Campo Grande

Sesinando acordou com a boca a saber a papéis de música. Dormiu mal até às três da manhã. Os quartos da pensão “Bons Sonhos” eram baratos – 15 escudos uma dormida, mas o quarto era minúsculo onde mal cabia o divã de molas e as paredes eram tabiques de madeira, o que dava para se ouvir tudo o que se passava aos lados.

Estava convencido que a pensão mal dava tempo para sonhar pois se as cabo-verdianas que faziam o Largo Martim Moniz entravam e saiam várias vezes e o cabo-verdiano é assim, é expansivo na cama…

Sesinando não exigia mais pelos 15 paus.

Lá pela madrugada adormeceu profundamente e agora já estava pronto para sair. Banho nem vê-lo. A pensão não tinha! Nem tampouco águas correntes – nem quentes nem frias. Era pegar ou largar. Pelo preço não se podia pedir mais.

(Divertiu-se a fumar e a beber Sagres até às duas da manhã e a ouvir mornas e boleros tocados pelos ceguinhos-músicos do Bar Bolero. Não foi em engates. Ainda era cedo. Havia muito tempo para a esbórnia)

Vestiu-se e petiscou um copinho de leite na leitaria da esquina e seguiu o seu objetivo: ir ver o lago dos barcos do Campo Grande e espreitar – e eventualmente almoçar no retiro do Quebra Bilhas.

Alguém lhe falara da casa. Com mesas de correr e um caramanchão a sombrear e refrescar o ambiente. Comida caseira e bom vinho da pipa.

Estava danadinho para comer umas iscas com elas, um prato do seu agrado e que não o via há mais de dois anos.

E lá foi o nosso alferes Sesinando a pé – agora já à civil, pela Almirante Reis acima até ao Areeiro e depois Avenida de Roma até ao Campo Grande.

 

3º. Episódio – Fado do Cacilheiro

Um banco de jardim pode ser o começo de uma bela relação. O alferes Sesinando esparramado no banco de tiras de madeira olhava embevecido Milú e seu canito Lanudo.

Pelo canto do olho fazia-lhe o retrato. Media a cena e com voz melosa para boi dormir tentou uma aproximação já mais que vista, mas de resultados certos e garantidos.

– Desculpe o meu atrevimento mas a menina Milú por acaso não mora no Bairro de Alvalade? É que a sua cara não me é estranha…

– Não, enganou-se. Moro na Avenida de Roma, ali ao pé do Hospital dos malucos, o Júlio de Matos. Conhece?

– Mesmo agora passei por lá, vim a pé desde o Martim Moniz, para ver como Lisboa já mudou nestes 3 anos que estive fora na guerra, em Angola. É uma zona muito chique!

– Lá isso é verdade! Só mora ali gente boa e simpática. Eu vivo com um construtor civil, um homem já de uma certa idade e que anda sempre por fora. Agora está em Cabo Verde a construir um “resort” de luxo. Só cá vem de dois em dois meses. Eu tenho a companhia do Lanudo.Vivo muito só!

– Tal como eu. Não se queixe. A vida é assim. Mas agora me lembrei… eu ainda não me apresentei. Sou o alferes Sesinando. Cheguei ontem no navio Niassa. Ando a ver se localizo o Retiro Quebra Bilhas. Disseram-me que fazem lá umas iscas como não há noutro restaurante em Lisboa. A menina conhece?

– Se conheço o Quebra Bilhas? Conheço eu lá outra coisa! Até já lá cantei…

– Não me diga. Então está já convidada para lá irmos almoçar. Mas ainda é tão cedo, a menina já andou aqui no lago nos barquinhos? É aqui tão perto. Mesmo ao lado. Podíamos dar ali um passeio. Eu remava e a menina pegava no Lanudo.

– Nem pensar. Tenho um medo do mar e depois nem sei nadar…

– Lá por isso não seja obstáculo. Acontece que o lago tem água mas dá-lhe pelos joelhos, ninguém lá morreu afogada.

– Ah, julgava que fosse mais fundo. Nem lá fui. Barco para mim só o cacilheiro. Lisboa-Cova do Vapor. Praia. Sol. Calor.Verão.

– Bem então vamos dar uma voltinha e eu canto-lhe o Fado do Cacilheiro enquanto remo. Era romântico, não acha?

Milú pensou um pouco e depois cedeu. Estava danadinha para dar uma voltinha acompanhada do simpático alferes. Depois, ele cheirava tão bem. Ou seriam as flores do jardim? Ali ao lado havia um roseiral.

O encarregado dos botes indicou um azul celeste e lá entrou o alferes, que deu a mão à Milú que apertava assustada o Lanudo contra o peito.

Com duas remadas fortes do alferes o bote seguiu o seu caminho e Milú sorriu encantada. Nunca for no bote. Era a primeira vez! E estava a gostar.

Sesinando começou a trautear o Fado do Cacilheiro. Um êxito revisteiro.

(na próxima edição serão publicados mais dois episódios)