A última vez que na igreja entrei foi em Dezembro de 2019, porque logo no início de 2020 soou o alarme de várias epidemias no globo terrestre, avisando que delas nasceria uma pandemia difícil de controlar. Mas ainda me lembro que, na missa, não era qualquer coisa que me faria olhar para trás. Vem isto a propósito de me terem dito ao ouvido, uns segundos antes do começo das cerimónias do Domingo de Ramos daquele ano, que minha filha estava entrando na igreja, acompanhada pelo marido e pelas suas duas meninas, e que, a mais velha quis uma palma, a outra também, e por isso começou a chorar, não tendo a mãe outro remédio senão fazer a vontade às duas. Graças a Deus, aqui ninguém faz um bicho de sete cabeças por se dar um ramo a uma criança.
Sem olhar para trás, por conhecer muito bem os quatro indivíduos, presenciei toda esta cena, recordando ao mesmo tempo uma outra, distânciada em pouco mais de meio século. Eis o resumo da “estória” que marcou a idade dos meus cinco anos:
Era aquele domingo da celebração da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém; e na Ribeira Grande fazia-se a Procissão dos Ramos da igreja da Misericórdia para a Matriz, à tardinha. Minha avó, aquela chata que foi casada com um polícia, entendeu que me havia de levar consigo para lhe fazer companhia. Porque mulher de respeito nunca andava sozinha pelas ruas, ou por onde quer que fosse. Assim foi. Não tive outro remédio. Aliás, era um privilégio poder sair de casa, e se refilasse os adultos podiam mudar de ideias.
A Igreja da Misericórdia, também conhecida por do Espírito Santo e dos Passos estava inundada de gente, que ali se concentrou para se incorporar na procissão. Dentro do templo, passando o guarda-vento, no chão havia sido deitado um molhe de ramos de palmeira. Mas por termos chegado em cima da hora os ramos inteiros já escasseavam, e o sacristão controlava a quantidade, dizendo que ramos inteiros eram só para os adultos e pessoas com tarelo, e que dessem às crianças os galhos partidos ou as folhas. Eu não quis saber de “estórias” porque tinha acabado de ver uma rapariga da minha idade com um lindo ramo na mão. Minha avó pegou num lindo ramo para si, e do chão apanhou três ou quatro folhas para colocar-me nas mãos. Eu disse-lhe que não queria aquilo, mas sim o ramo, sugerindo-lhe que ela levasse as folhas e me deixasse transportar o seu. Repreendeu-me, e teimou para que eu pegasse nas folhas. Peguei nelas, atirei-as ao chão e pulei em cima delas, aos gritos, manifestando o meu descontentamento contra aquele acto de discriminação. Imagino, aqora, o pensar daquela gente que presenciou a minha fúria: rapaz mal-criado; se fosse meu filho…; etc, etc. Sabe-se dizer que, com o vexame que a avó passou com esta cena apercebeu-se que tinha perdido a batalha. Colocou-me o ramo na mão, com um sorriso fingido, e com tanta raiva por detrás dele, e contentou-se com as folhas. Incorporámo-nos na procissão e nela andámos para a Matriz, entre cânticos de Glória e Louvor ao Senhor, nosso Deus. Recolhida a procissão na Matriz seguiu-se a longa missa, com as leituras da Paixão e sermão especial, pelo que nos demorámos a chegar a casa, fazendo-me pensar que aquela cena da Misericórdia estaria esquecida. Enganei-me! A velha não se esqueceu. Chegando a casa foi pancadaria por todos os lados!… Levei um grande “ensaio”, como se dizia. Afinal, o que foi a velha fazer para a igreja? Eu, que era criança, ouvi muito bem o sr. Padre dizer que devemos perdoar e esquecer todo o mal que nos fazem. Ainda por cima: o mandamento novo de Jesus: “amai-vos uns aos outros”. Credo, meu Deus, isto não entrou na cabeça da velha?!…
Agora penso: Se este caso se tivesse passado comigo, e eu sendo o avô nesta história, nem pensava duas vezes. As minhas netas teriam os ramos e eu levaria as folhas, sem problema nenhum. Se só houvesse um ramo, no caso de ter comigo as duas netas, daquele faria dois. Ou então, nós todos três levaríamos folhas. Um caso simples, humilde e carinhoso.
Dos vivos eu era o terceiro neto mais velho, e aquele de quem ela não gostava; ou, pelo menos, nunca demonstrou uma pinga de gosto. Derretia-se pelos outros dois. Por eu lhe pagar com a mesma moeda era classificado como a ovelha negra da família. Pior do que isso: uma vez, indo ela se sentar à mesa, cansada de fazer não sei o quê, puchei-lhe a cadeira por um fio de barbante, que antes lhe havia atado a uma das pernas; a velha caiu, batendo com a cebeça no chão e ganhando um galo para a festa. Outra vez, tanta porrada; e foi aconselhar minha mãe a levar-me ao curandeiro, ou a procurar um exorcista, porque eu tinha o diabo comigo.
Estas são algumas das muitas memórias que tenho da mãe do meu pai. Destas e das dezenas que aqui não cabem não tenho uma que seja digna de louvor. Mas cedo reconheci que Dona Rosa Hermínia era uma mulher culta. Muito culta para a sua época: Sabia ler e escrever muito bem, bem melhor do que gente classificada; tinha o dom de palavra para se meter com quem quer que fosse; e possuia pouco mais de uma dezena de livros, que de entre os quais destaco um exemplar da primeira edição (1746) de “A Vida do Padre António Vieira”, obra do padre jesuita André de Barros (1675-1754), dedicada ao Infante Dom António Francisco de Bragança (1695-1757). Para as suas leituras usava uns óculos de oiro, muito finos, que vieram da América no decorrer da década de 1920, dentro de uma saca de roupa, oferta de familiares emigrados. Ficavam-lhe muito bem, tanto que, quando os punha em cima do nariz, para ler, ou distinguir coisas ao perto, parecia uma filósofa, ou gente de alto nível. Com eles na cara o seu rosto impunha mais respeito do que o habitual.
Morreu a velha sem atingir os setenta, uns dois anos depois da história dos ramos, da igreja da Misericórdia. Das suas pertenças mais íntimas foram conservados os livros num canto especial da nossa casa, e guardados os óculos numa gaveta da cómoda do quarto dos meus pais, com outros objectos dignos de conservação. Uns anos mais tarde, enquanto frequentava a escola secundária, acabei por descobrir o seu paradeiro, e não achei mal nenhum tirá-los de lá, sem ninguém saber, claro! Levei-os para a escola, e fui para as aulas com eles em cima do nariz, desnivelados dos olhos, de maneira que se pudesse ver sem os usar. A rapaziada achava graça e não parava de rir. Ainda por cima, de vez em quando se fazia alguma careta cómica, que dobrava as gargalhadas do pessoal. Os professores ao pedirem para parar a brincadeira, fazia-lhes a vontade e tirava-os da cara. Só não fiz a vontade ao professor de Francês porque eu conhecia a língua melhor do que ele, e naquela matéria toda a gente me respeitava. Por isso, monsieur José Manuel Carvalho irritou-se, e enchendo-se de violência dirigiu-se a mim e me arrancou os óculos da cara, jogando-os pela janela fóra. Dois ou três palavrões, já tinha idade para isso, e tão bem sabia dizê-los, e lá saí correndo daquela sala do segundo andar para a Rua Sousa e Silva, a apanhar os óculos, antes que alguém pegasse neles. Mesmo da porta, no momento em que os avistei no meio da rua, passou por cima deles um camião. Ficaram escangalhados ou torcidos, mas ainda assim uma lente escapou. Mais tarde, em casa, endireitei-os o mais que pude, mas nunca mais foram os mesmos. Não voltaram à tal gaveta da cómoda dos meus pais, e foram dados como desaparecidos. Porém, passaram a ficar mais seguros do que antes, porque foram escondidos na gaveta da mesa que me servia de secretária, no meu quarto, entre livros, cadernos e papéis à solta. Num certo dia, necessitando de uns escassos centímetros de verga doirada, fui buscá-los e cortei-lhe um pedacinho da haste direita. Voltei a colocá-los no mesmo sítio e nunca mais fiz caso deles.
Chegou o tempo de vir para a América. Quando se vai para a América não se precisa de nada, porque a América tem tudo. É assim que se pensa quando não se conhece as realidades. Ao escolher das minhas pertenças aquilo que deveria ou não trazer, mirei novamente os óculos, e olhei para o livro de 1746, que eu também desvalorizei ao tentar reencardená-lo, naquelas alturas em que a gente não pensava direito. Decidi que as duas coisas ficariam atrás, e fui entregá-las à minha irmã mais velha, com quem eu tinha a certeza de que elas bem cuidadas seriam. Vinte anos mais tarde, estando de férias em São Miguel, contemplei a estante de minha irmã, em sua casa, e dela tirei o livro do Padre António Vieira. Ao reparar neste movimento, ela desprega-se com esta: “É teu. Leva-o contigo.” Não pensei duas vezes.
Em 2010 minha irmã me veio visitar e, num belo dia, sentados à mesa, em conversa sobre os nossos antepassados ela falou que tinha, com muita estimação, os óculos da nossa avó, que para ela era um anjo e para mim um demónio. Contei-lhe, então, a história inédita dos óculos. Ficou-lhe o bichinho na cabeça. Dois meses depois de ter regressado à Ribeira Grande, aproveitando a passagem pelos Açores de um dos meus cunhados, como portador, mandou-me por lembrança os óculos da minha avó. Sim, eles vieram parar à sua terra de origem quase cem anos depois. Uma relíquia familiar guardada em lugar seguro, na minha casa. Mais dez passaram, e a meados do primeiro ano da pandemia eu resolvi dar-lhes vida. Consultei um ourives, ajustámos preço, e mandei-os restaurar. Em Março do ano seguinte, o segundo da pandemia, decidi colocar-lhe duas lentes com a graduação apropriada para as minhas leituras e escrituras. Agora uso-os frequentemente, e estão muito bem cuidados. Em minha posse mas não são meus. Nunca serão meus. Hão-de ser sempre, toda a vida e mais seis meses, os óculos da minha avó!
A senhora minha avó
Do milho já fez farinha
Mas nunca limpou o pó
À ruindade que tinha
Os seus óculos dourados
Dão vista aos olhos cansados,
Trazem luz à escuridão.
Quando os uso para ler
Sinto mais forte bater
O ritmo do coração.