OS RAPAZES DA RUA (4) : O JOGO DO PATEIRO

O Aguinaldo era um rapaz fino, que viera da Ilha das Flores com os pais. Em São Miguel a família escolheu a Ribeira Grande para seu cantinho de residência.

O Aguinaldo falava de uma maneira diferente, tanto pela pronúncia como pelas pausas que usava entre as palavras, que se faziam ouvir da primeira à ultima sílaba. Bem educado. Tinha mais que ver!…  A mãe era professora na Escola dos Fóros e o pai trabalhava em Ponta Delgada num escritório qualquer.

Por onde andava provocava um pouco de inveja na rapaziada da sua idade, por ser diferente. Não era de se juntar com qualquer um nas brincadeiras de rua, nem de andar sozinho por onde quer que fosse. Gato escaldado tem medo de água fria, como diz o ditado. Mas aos poucos foi ganhando amigos, na sua nova terra, começando com alguns meninos do seu nível, tanto no modo de vestir como nas maneiras de agir. Os primeiros foram os filhos dos amigos dos pais. Formadas estas amizades os meninos começaram a andar juntos.

Quando passavam em Santo André, a caminho das Poças, os rapazes que ali brincavam sempre lhes atiravam piadinhas sem graça, afim de lhes provocar alguma reação negativa. Mas os meninos não faziam caso. Seguiam em frente. Nas Poças estavam seguros, porque o Ti Mariano não dava confiança a certos tipos de abusos. Uma vez ele ouviu um rapaz chamar ao grupo um “bando de paneleirins”, e logo o repreendeu, dizendo que lhe daria uma sova e, ainda por cima, iria contar ao seu pai. Se chegasse a esse ponto, o rapaz levaria pancadaria de meter medo. Seria um “ensaio de macaco”, como dizia a Maria da Lomba.

Santo André era um grande largo de concentração de rapaziada. Tanto na bola, como em outros tipos de brincadeira. Enquanto a polícia não chegava, claro! Mas o jogo que para além do futebol mais recordamos de ver naquele espaço era o do pateiro.

O Aguinaldo dava-lhe outro nome, e hoje não nos admiramos por isso. Porque há tantas e tantas coisas que variam de nome de freguesia para freguesia, e de lugar para lugar. No caso de jogos e brincadeiras de rapazes, variam os nomes e as regras também. Se isto é bom ou ruim, não nos interessa. Mas somos de opinião que estas diferenças nos enriquecem culturalmente, desde a aldeia, ou lugar, até à cidade, passando pelas freguesias. Quer nas Ilhas, quer no Continente. Mas deixemos isso para os peritos no assunto e vamos à razão desta crónica, que não pretende mais do que livrar do esquecimento alguns jogos, diversões e distrações da geração dos Rapazes da Rua.

Por curiosidade, há poucos dias nos lembrámos do Aguinaldo e tentámos saber mais sobre esta brincadeira de rapazes em território português. Logo vieram os nomes de pateiro e bilharda, para além de um conjunto de regras diversificadas, cujas razões associadas ao isolamento das ilhas açorianas, e o mesmo dividido pelas freguesias de São Miguel fizeram com que cada terra tivesse seu uso e cada porca um parafuso.

Consultámos o Dicionário da Língua Portuguesa (sexta edição) da Porto Editora, para variar dos significados que nos apareceram no mundo virtual. O nome de pateiro foi decifrado como: guardador ou criador de patos; frade leigo que cuidava da copa nos conventos; jogo de rapazes, o mesmo que bilharda; vagaroso no andar (adjetivo transmontano).

Quanto à bilharda, a referida consulta só nos disse que se tratava de um “jogo de rapazes praticado com um pau aguçado nas duas extremidades que se faz saltar com uma pancada desferida com outro pau mais comprido”, sem nos informar que também era o nome do pau curto e aguçado.

Se bem nos lembramos, o pai do Aguinaldo era oriundo de uma das províncias nortenhas de Portugal Continental, onde viveu até conhecer a florentina. De Trás-os-Montes, ou Alto Douro. Consta que naquela zona do país o jogo da bilharda era muito popular; e não muito longe dali, na Galiza (Espanha), até se organizavam campeonatos oficiais de Bilharda.

Voltando a território nacional, não deixa de ser curioso o facto de se encontrar diferenças nas regras e moldes. Por isso vamos tentar fazer uma breve comparação entre a bilharda do Continente, que também tem as suas variaç˜ões de lugar para lugar; e o pateiro de são Miguel, que adiantamos também ser possível ter outro nome, e algumas alterações, entre as freguesias micaelenses, onde o jogo se praticava.  É que, temos conhecimento que em muitos lugares da ilha nunca se ouviu falar em tais nomes. Pedimos desculpa por algum transtorno que isso possa causar, mas a nossa memória recorda apenas a “moda” da Ribeira Grande.

No Continente a bilharda é um pequeno pau, com medida variável entre 10 e 15 cm, aguçado nas extremidades. É colocada em cima de duas pedras, à laia de ponte; ou em cima de uma cova de berlinde. Com outro pau, parecido com um cassetete de polícia, a bilharda é elevada, e rapidamente batida pelo pau, a modo de a lançar o mais longe possível, ao mesmo tempo que se diz: “ó Pim”. Depois, a bilharda no chão é batida novamente pelo cassetete numa das extremidades para ela voltar a saltar e levar mais uma cacetada, ao mesmo tempo que se diz: “ó redor”. Mais duas vezes, dizendo em cada uma: “Bate três”, “Maria Inês”.

Depois o cassetete serve de instrumento de medida para verificar a distância entre o paradeiro da bilharda e o calhote que lhe serviu de ponto de partida. Cada três medidas dá um ponto. Por exemplo: 1,2,3 faz um; 1,2,3 faz dois; 1,2,3 faz três; e assim sucessivamente, até chegar ao “faz trinta”.

Não há dúvidas que é um jogo bem chato! Prefiro, de longe, o Pateiro da Ribeira Grande, que podia ser jogado por equipas de dois ou mais jogadores, ou apenas por um. Vamos pôr de parte a bilharda, porque o pateiro é, realmente, mais agressivo e divertido.

Para lembrar os esquecidos, ou informar aqueles que desconhecem esta brincadeira de rapazes, praticada sobretudo nos meses de inverno, vamos tentar descrever o seu funcionamento:

O pateiro, por si, é um pedaço de pau redondo, com um comprimento aproximado de quarenta centímetros. A biata[i] é outro pedaço de pau, que raramente excede 15 centímetros de comprimento, aguçado em ambos os extremos – a tal bilharda, em outras partes do país.

Dois rapazes a disputar um jogo destes, iniciavam-no colocando o pateiro em cima de duas pedras em posição paralela, de modo a que o pau formasse uma ponte, com uma altura raramente superior a dez centímetros. A estas duas pedras podemos chamar de calha, ou calhote, que é praticamente o epicentro do jogo. A uma distância pré-determinada, entre dez e vinte metros, cada jogador lançava com a mão a biata contra o pateiro, com o objetivo de o fazer cair de cima das pedras. O primeiro que o conseguisse seria aquele que ficava ao pé do calhote.

Iniciava-se então o jogo, desta forma: Detrás da linha das duas pedras colocadas no chão, o primeiro jogador soltava ao ar a biata, e com o pateiro pregava-lhe uma cacetada, fazendo-a ir para bem longe. Entretanto, o adversário, que estava em frente do lançador, tentava reduzir a força do lance, para obter menor distância entre o ponto de partida e aquele onde a beata iria cair. Se conseguisse apanhá-la e segurá-la sem a deixar cair, imediatamente tirava o lugar do outro. Se não, do ponto onde ela foi parar, atirava-a com força e pontaria ao pateiro, que o outro já havia colocado em cima das pedras. Se acertasse, o pateiro rolava e caía no chão. Nestas circunstâncias os jogadores rivais trocavam posições, e começava tudo de novo. Se o pateiro não fosse ao chão, aquele que estava em sua posse deixava cair a biata entre as duas pedras, e logo de seguida batia-lhe com o pateiro em um dos extremos, a modos de fazê-la saltar; e no salto, levava logo uma “pateirada” para ir bem longe. Onde ela parava fazia-a saltar outra vez, e mais outra “pateirada”. Uma terceira e última vez: salto, pancada; e do seu paradeiro se iniciava a medição da distância daquele ponto até ao calhote.

Era nesta altura que o pateiro se transformava em instrumento de medida. Cada vez que o seu tamanho se refletia no chão, perfazendo o caminho em linha recta até ao calhote significava um ponto. Menos as quatro primeiras vezes. Porque a cada uma delas se tinha de recitar um versículo de uma das ladainhas pateirais, que rezavam assim: (1) bate; (2) a biata; (3) segundo (4) a mestrada. Ou: (1) biata; (2) pateiro; (3) come carne; (4) de carneiro.

Atingindo o número de pontos pré-estabelecido para  se ganhar o jogo, que quase sempre era cinquenta, chegava à vez da muleixa, que era o prémio que consistia em o vencido transportar às costas o vencedor, à laia de cavaleiro triunfante. Para isso, o campeão, da linha do calhote soltava a biata ao ar e pregava-lhe uma cacetada com o pateiro. Onde ela fosse parar marcaria o ponto do destino da muleixa, cujo regresso ao ponto de partida era garantido. Portanto: viagem de ida e volta.

Entretanto, quando a biata era lançada para este efeito podia ser intercetada pelo perdedor, que tentaria apanhá-la, ou pelo menos reduzir a potência do lance. Se ele a apanhasse do ar sem a deixar cair livrava-se do carregamento.

Com muleixa ou sem ela, deste ponto o perdedor passava a ocupar o lugar do calhote, e começava tudo de novo, como já foi descrito. Justíssima oportunidade, com todas as regalias.

Esta coisa de bater com o pau no pauzinho solto ao ar, sem o ter feito saltar batendo-lhe nas pontas, parece-me que foi absorvida de influências americanas por causa do basebol, tal como o jogo do Queimado que já tivemos oportunidade de referir em crónicas anteriores.

Resta-nos acrescentar que os Rapazes da Rua que tinham pateiros e biatas cuidavam muito bem destes brinquedos, que eram por eles próprios fabricados. Até esmeravam na perfeição, sendo alguns acabados com uma mão de verniz.

Como acontecia com a bola, o dono do pateiro e da biata é que decidia com quem brincava.

Por hoje é tudo. Haja saúde!

 

O pateiro é um pau fino

Que faz biata saltar

E o jogo tem o destino

De uma muleixa ganhar.

 

Fui jogar a Santo André

Com biatas e pateiros.

Marquei cem pontos de pé

Com três porretes certeiros.

 

O meu pateiro quebrou,

Dele fiz duas biatas.

Tantas muleixas ganhou

Fazendo contas exactas.

 

Fall River, Massachusetts, 5 de Junho de 2022

Alfredo da Ponte

[i]Por não termos achado nenhuma alusão à bilharda açoriana, decidimos escrever biata em vez de beata, pelo fato de ser um pequeno pau com duas pontas (bi).