A cada janeiro que passará na nossa vida se há-de recordar a Viagem às Estrelas de 2019. Momentos únicos e glorificantes no nosso currículo de emigrante. Como tudo tem a sua história, achamos que esta merece ser contada a quem tiver “aço” para percorrer visualmente estas linhas.
Em 1988, durante os dias ligados ao sexto convívio ribeiragrandense da Nova Inglaterra, no meio de conversas entre alguns organizadores do evento e dois autarcas da Região Autónoma dos Açores foi abordado o tema dos cantares às estrelas. Artur Martins, que fora o presidente da câmara municipal da Ribeira Grande quando a vila a cidade foi elevada, estava aqui representando a junta de freguesia de Rabo de Peixe, como seu presidente. Foi ele quem tentou convencer Fernando Raposo e Alfredo da Ponte para se formar um grupo de emigrantes radicados nestas paragens para ir à Ribeira Grande cantar às estrelas, ao passo que Monsieur Antoine Pierre de la Côte du Nord, que era o actual presidente da câmara, só acenava a cabeça, todas as vezes que Martins falava. Até que, se alguns apoios fossem prometidos, a iniciativa soava bem aos nossos ouvidos. Não estamos a falar de pagamentos de passagens nem de alojamento porque, graças a Deus, não precisávamos de esmolas. Precisávamos sim era de um digno acolhimento na terra-natal e uma certa orientação nas actividades a desenvolver em terras micaelenses.
A ideia agradou, e como tudo, era uma questão de tempo para fazermos uma decisão. A resposta aos nossos visitantes foi nisso baseada, com promessa de lhes informar antecipadamente a nossa participação, no caso dela vir a concretizar-se. Mais uma vez insistiu Artur Martins: “Sei que o nosso amigo Alfredo não terá problema nenhum de escrever a letra de uma canção, e não tenho dúvidas que nesta vasta terra não faltará gente capaz de compôr uma música, e se preferirem usar uma das músicas tradicionais com a vossa letra, também servirá…” Monsieur Antoine Pierre só escutava e movimentava a cabeça, acenando positivamente. Ficámos assim. Daríamos a saber se a nossa presença seria uma realidade.
Regressados os convidados a São Miguel, e antes de outubro chegar ao seu termo, os Amigos da Ribeira Grande tiveram a sua reunião, para prestação de contas e actualizar a sua direção. Nela foi apresentada a proposta da digressão à terra de origem com o objectivo de se cantar às estrelas. De um grupo de vinte e poucas pessoas o entusiasmo só foi demonstrado por duas ou três, por várias razões bastante justificativas: passagens caras, época do ano ruim para tirar férias, filhos na escola, etc. Caso arrumado não necessita confirmação. Não querem crer que na última semana de janeiro de 1999 Monsieur Antoine Pierre pediu à sua secretária para telefonar a Fernando Raposo para perguntar quantas pessoas da América estariam nos cantares às estrelas? Contando a gente com juízo ninguém acredita!
Alguns anos depois, graças aos tardios efeitos da democracia, Monsieur Antoine Pierre deu lugar ao nosso amigo de infância, Ricardo José Moniz da Silva. Como não olhamos muito a partidos políticos, mas sim às pessoas e seus carácteres, ficámos muito satisfeitos com a vitória do Ricardo. Mas para nossa surpresa ele criou dentro dos paços do concelho uma gaiola de vidro à prova de bala, e não tinha tempo para ninguém nas horas de expediente. Veio a alguns dos nossos convívios. Pelo menos a dois, se a memória não nos falha. Não vou agora vasculhar os meus arquivos para precisar vezes e datas. Só acrescento que o Ricardo também veio com a mesma sugestão, e lhe dissemos que se havia tentado sem sucesso. Demos alguns exemplos e por ali ficámos.
Por fim, Alexandre Gaudêncio toma as rédeas do município e torna-se o presidente do povo. Nos paços destruiu o gabinete à prova de bala e abriu as portas a todas as classes sociais. É laranja, tal como Monsieur Antoine Pierre, mas laranja doce. A outra era azeda. Parecia limão galego. Ei-lo, o Gaudêncio, que vem ao convívio ribeiragrandense da Nova Inglaterra, e traz consigo um plano de promoção turístico enquadrando os cantares às estrelas. Estávamos em 2014, no decorrer do vigésimo segundo convívio, que se realizou a 4 de outubro. Já se tinha posto a par dos obstáculos e apresentou-nos um pacote que incluía as viagens, estadia e carro de aluguer, pelo preço de mil dólares por pessoa. Divulgámos, como pudemos, nos meios de comunicação social. Resultado negativo. A letra miudinha (fine print) era confusa e estava em campo armadilhado, segundo várias opiniões.
Gaudêncio não desistindo da sua teimosia voltou a mencionar este assunto a Salvador Couto, Alfredo da Ponte, e a João Luís Pacheco. As suas palavras levou-as o vento, mas o ar da sorte soprou-lhe em fevereiro de 2018, quando apanhou na Ribeira Grande o casal Irene e Mário Alves, assistindo à festa das estrelas. Irene, que no ano seguinte seria a presidente dos Amigos da Ribeira Grande foi de certo modo desafiada pelo presidente da câmara, mas ao mesmo tempo amparada com o apoio que ali lhe fora prometido. Por exemplo, José António Garcia prontificou-se a compôr a música e Imaculada Gaudêncio a letra, e a Banda Triunfo acompanharia o grupo. Voltando aos Estados Unidos, em uma reunião dos Amigos da Ribeira Grande Irene colocou o assunto em cima da mesa. Outra vez um pé atrás, outro à frente, por parte da organização. Mas Irene estava determinhada. Disse que ela própria arranjaria um grupo de amigos pessoais que a poderiam acompanhar. Pois, aí está! Basta aparecer dois ou três para se arranjar cinco ou seis. Começou a surgir ânimo, e num instante apareceu um grupo de vinte e tal interessados. Alguns membros da organização, outros amigos e familiares. Ao grupo foi dado o nome de Estrelas da Diáspora. Alfredo da Ponte prontificou-se a escrever a letra da canção, sem ofender a boa-vontade da senhora Imaculada Gaudêncio, e na Ribeira Grande José António Garcia tomaria conta da música. Graças à tecnologia disponível em nossos meios as dificuldades estiveram longe de existir. No primeiro dia do ano de 2019 chegou-nos por correio electrónico um vídeo, através do qual se podia ver alguns elementos da família Garcia cantando a nossa canção para a gente se familiarizar com ela. O ensaio geral seria na Ribeira Grande, com a Banda Triunfo.
Convém recordar que estávamos já em tempo de viagens diárias de e para as ilhas. Por isso os elementos do grupo foram por si, em datas e horários de suas conviniências. Na Ribeira Grande o grupo juntou-se no restaurante Esgalha, pelas sete e meia da noite em 31 de janeiro. Depois de um magnífico jantar-convívio com elementos da Banda Triunfo e outras entidades da terra realizou-se o ensaio em três actos. O primeiro foi um desastre, o segundo foi bom, e o terceiro saiu afinadíssimo! Antes da despedida a banda tocou o hino de Nossa Senhora da Estrela, e um côro de todos os presentes se fez ouvir. Mexeu com os corações de alguns, e fez alguém chorar de saudades. Recordações dos tempos de infância e juventude.
Chegou o grande dia, e com ele a grande noite. A Noite das Estrelas. Pelas dezanove horas iniciou-se a concentração dos grupos em frente ao Museu do Franciscanismo, antiga Igreja dos Frades, ou do Hospital, ou de Nossa Senhora do Guadalupe. Agora dizem que é da Misericórdia, mas para nós será sempre dos Frades. Ao aproximarmo-nos do local reparámos que ali já estava estacionado o grupo de tambores, que depois veio a iniciar o desfile. Pelas dezanove e trinta começou a parada com um lindíssimo carro alegórico contendo um retrato vivo da Sagrada família: Menino Jesus brincando, São José madeira trabalhando e Nossa Senhora fiando. Veio mesmo a calhar. Nossa Senhora fiando, usando um fuso, tal qual cantaria o grupo dos Estados Unidos a sua canção intitulada Nossa Senhora Fuseira. Seguiram os tambores, e atrás deles os grupos de cantares, em ordem pré-determinada. Foram ao todo cerca de trinta grupos a desfilar pela Rua Direita. Uns maiores, outros menores. O Grupo de Cantares da Junta de Freguesia da Conceição era composto por 105 elementos.
A caminhada da Igreja dos Frades à Matriz foi sensacional. A nossa terra, a nossa rua Direita, a cantiga a Nossa Senhora, tudo estava excelente! A música sempre a tocar, o pessoal sempre a cantar. Depois de tantos anos sentíamo-nos outra vez em casa, fazendo-se ouvir a nossa voz. Paragem em frente à Casa Tomás, para saudar Dona Maria Antónia e seu marido José Maria Tomás. Dali seguimos para a loja dos Licores Mulher de Capote, onde fizemos a segunda paragem, para saudar Idália e Eduardo Ferreira. A terceira, a mais importante, em frente á Câmara Municipal – o lugar das apresentações e da actuação principal. Dali para a Igreja Matriz, para destroçar à saída. Ao subir os degraus da Matriz o grupo se foi desformando por causa do cansaço de alguns elementos. Mas antes da entrada triunfal naquele majestoso templo as fileiras já estavam alinhadas e as vozes afinadas. As Estrelas da Diáspora cantaram a Nossa Senhora com voz, alma e coração. À maneira que o grupo avançava em direcção ao altar as vozes se tornavam mais fortes e sentidas, e os olhos fitavam com amor a Rainha do Céu. Momentos únicos que nunca serão esquecidos! A Senhora não nos aplaudiu, nem nos disse palavra nenhuma. Mas o Seu olhar tanto nos falou.
A saída da igreja efectuou-se pelo lado do Santíssimo Sacramento, e ao destroçar foi-nos servido um refresco no salão paroquial. Dali alguns elementos foram até aos Paços do Concelho, e depois juntaram-se aos outros na loja dos Licores Mulher de Capote, aonde foi oferecido ao grupo um convívio de comes-e-bebes. Delícias de uma noite de festa, ainda ligada ao Natal.
A noite das estrelas estava, de facto, bem estrelada. Muito fria para os residentes e um pouco fresquinha para nós, que aqui, na América, estamos habituados no inverno às temperaturas abaixo do ponto de congelamento.
Depois da meia-noite quatro pessoas a caminho das Furnas pasmaram-se a olhar para o céu, observando a infinita quantidade dos corpos celestes. Na Ribeira Grande não se via toda aquela massa brilhante por causa da iluminação da cidade. Mas o negrume da estrada confirmou que, realmente, as estrelas estavam atentas à sua festa e aos cantares da Ribeira Grande.
As opiniões são respeitadas e, graças a Deus, vivemos em democracia. Mas uma ponta de orgulho nos furou o peito com o sucesso alcançado. A canção Nossa Senhora Fuseira foi entre as outras escolhida para o vídeo de propaganda dos cantares da câmara municipal. Além disso, tivemos os mais diversos elogios e parabéns por toda a parte. A melhor frase de todas que ouvímos sobre a nossa participação nos cantares às estrelas veio de Dona Lúcia Garcia, dizendo que os emigrantes “cantaram e encantaram”. Dona Irene Alves, que há dois anos (2019) era a presidente dos Amigos da Ribeira Grande-USA, em declarações à imprensa local disse: “Não sei se haverá ou não continuação. Só sei que este ano temos a missão cumprida”. Sim, de facto, estamos todos de parabéns. A missão foi cumprida e bem cumprida.
Lamentar os inexistentes cantares deste ano não vale a pena. O que devemos fazer é pedir à Senhora da Estrela que interceda por nós aos pés de Deus, para que esta pandemia tenha fim. Haja saúde!
Nossa Senhora da Estrela,
Que brilhais de noite e dia,
Somos felizes por tê-la
Sempre em nossa companhia.
Livrai-nos de todo o mal,
Senhora Virgem Maria.
Dai-nos a vida normal,
Afastai a pandemia.