Desde cedo que Rúben Pacheco Correia demonstrou querer fazer mais e melhor por si e pela sua terra. Aos 14 anos lançava o seu primeiro livro, aos 18 abria o primeiro restaurante, em Rabo de Peixe, onde a sua mãe é a aclamada ‘chef’. Recentemente lançou o seu quinto livro, descrito por ele como uma “carta de amor” aos Açores, numa forma de divulgar a gastronomia açoriana, mas também de a preservar.
O Rúben já tem cinco livros editados. Como surgiu a ideia de escrever este “Comer à moda dos Açores”, que tem um tema tão diferente dos demais?
Como sabe, nasci no meio de uma cozinha e esta minha paixão pela gastronomia é, de certa forma, inata. Sou publicado desde os 14 anos, mas a verdade é que a gastronomia, enquanto objeto crítico e até literário, só se despertou em mim aos 18 anos, quando abri o meu primeiro restaurante. Só a partir desta altura, deixei de ser passivo para ser ativo no mundo da restauração e da gastronomia. Comecei, pois, a olhar para as coisas de uma forma diferente, mas sobretudo a valorizar ainda mais quem trabalha na área e a compreender melhor a minha família.
Debrucei-me sobre os produtos da minha terra, numa pesquisa que iniciei há cerca de dois anos, e senti falta de uma obra de referência que homenageasse os saberes e sabores dos Açores. Foi aí que surgiu a ideia de escrever este livro. Não digo que esta é a obra de referência da gastronomia açoriana, porque não me cabe a mim fazer
tais considerações, apenas posso dizer que esta é a minha carta de amor à minha terra e, neste sentido, o que pelo menos posso garantir é que aquilo que faço com e por amor faço-o bem.
Como foi a seleção das receitas que aqui apresenta? Há alguma que lamente ter ficado fora?
Certamente ficaram imensas fora do livro. Não consegui fazer a compilação toda que desejava, sobretudo porque os Açores são nove ilhas e naturalmente há ilhas com mais receitas do que outras e o meu objetivo foi, de facto, garantir a representatividade de todas as ilhas.
Não obstante, creio ter conseguido fazer uma recolha significativa daquilo que somos em termos gastronómicos. Coloquei, pelo menos, as que mais gosto e as que melhor identificam a cultura açoriana. Pode ser que, no futuro, haja um novo volume com o que ficou em falta.
Há ideia de que comer bem é comer muito. Afinal o que é comer bem e como saber que estamos a comer o que é bom?
Creio que seja muito difícil conseguir responder com clareza à sua questão. Felizmente, os gostos das pessoas variam e, talvez, comer bem para mim, ou pelo menos comer algo que me saiba bem a mim, pode não ter o mesmo resultado em si. É, também, uma questão cultural.
Dizia Brillat-Savarin “diz-me o que comes, dir-te-ei quem és”. Na cultura de
alguns povos, é intolerável comer algumas coisas que nós, na nossa cultura, apreciamos e vice-versa. Seja como for, creio que é transcendente a todas as culturas que comer bem não significa comer em quantidade. Estamos a melhorar neste aspeto. Há uns anos, uma vez que a comida não era tão abundante como é hoje, comer bem significava comer em quantidade. Um bom restaurante era o que servia as quantidades significativas. Hoje em dia as coisas mudaram.
Os Açores são também muito conhecidos pela sua religiosidade e pela fé do seu povo, o que também influenciou a gastronomia açoriana.
A gastronomia está intimamente ligada à religião. Basta recordarmos alguns dos adágios alimentares mais conhecidos em Portugal: “comer como um padre”, por exemplo. Sobretudo na doçaria encontramos esta ligação. Os Açores não fugiram à regra. Muitos dos nossos doces nasceram em conventos. As Esperanças, por exemplo, do Convento da Esperança, onde repousa a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, as Queijadas de Vila Franca do Campo, que nasceram no Convento de Santo André, entre outros doces, são significativos disso mesmo. Mas também nas festividades religiosas, e falo disto no meu livro, encontramos sempre uma razão para se comer e beber.
As Festas do Espírito Santo, com as famosas Sopas, os bolos de massas, os alfenins, as carnes guisadas e assadas, as alcatras, entre outros petiscos, são elementos que não podem faltar à mesa e que fazem já parte deste ritual.
A sua relação com a gastronomia vem de família, composta por bons e boas cozinheiras, desde os pais aos avós. Qual a ‘lição’ mais importante que lhe ensinaram sobre gastronomia?
Correto. Sou neto e filho de cozinheiras e desde muito cedo fui ensinado a respeitar o produto e a valorizar quem dedica a sua vida à cozinha. A minha avó materna ensinou-me as bases da gastronomia dos Açores, enquanto a minha avó paterna e a minha mãe despertaram em mim o interesse em conhecer outros tipos de gastronomia, culturas e povos.
Ultimamente o Rúben tem apostado muito na gastronomia, inclusive como crítico gastronómico. Há quem não saiba bem o que é um crítico gastronómico. Pode explicar?
Eu não gosto de me autointitular como crítico gastronómico. Escrevo sobre gastronomia em geral e restaurantes em particular para uma revista com alguma assiduidade. A verdade é que, de forma natural, quer a revista quer as pessoas, começaram a denominar-me como crítico gastronómico. Contudo, para mim um crítico gastronómico é, no fundo, um gastrónomo, ou seja, um apaixonado por gastronomia. E como apreciador, crítico, no meu caso de forma construtiva, no sentido de apurar e desejar, com a sua opinião e com o seu gosto, uma gastronomia cada vez melhor, cada vez mais rica.
O Rúben continua a frequentar a faculdade. Entre tantas atividades, como a escrita, a apresentação e divulgação do “Comer à moda dos Açores”, as participações na televisão… Como é que consegue conciliar tudo?
Diz o nosso povo que “quem corre por gosto não cansa”. Na verdade, cansa, mas não dói. Faço aquilo que gosto e tudo o que realizo deixa-me muito feliz. Portanto, é muito fácil ocupar o meu dia, que começa muito cedo e termina tarde, com coisas que me completam.
O Direito, a Escrita, a Gastronomia… Se apenas pudesse escolher uma paixão, qual seria?
Escolheria a escrita, uma vez que está interligada com as outras áreas. A escrita dá-me a possibilidade de poder emitir a minha opinião, na construção, diria eu, de um mundo mais justo que o Direito vem tentar construir; por outro, dá-me também a possibilidade de transformar em palavras o que o meu gosto, o que o meu paladar e o que os meus sentidos definem.
Além das áreas atrás referidas, tem estado presente nos últimos meses na televisão, na SIC, como o novo membro do Programa da Cristina. Como já é conhecido, Cristina Ferreira descreveu-o como sendo “todo televisão”. Já se considera uma estrela da televisão?
Eu não sou estrela nenhuma, apesar de viver, em Rabo de Peixe, na Rua da Estrela. A Cristina é uma querida. Eu não sei se sou todo televisão, como disse a Cristina, até porque dada a minha dimensão é muito difícil caber todo no ecrã, mas por enquanto sinto-me muito bem e feliz por poder dar um humilde contributo a este extraordinário projeto televisivo, com a minha participação semanal. Tem sido gratificante sentir o carinho das pessoas.
O Rúben, também graças ao Botequim Açoriano, costuma conviver com vários chefes. Alguns deles internacionais, com estrelas Michelin, escreveram sobre si. José Avillez descreveu-o como “trabalhador” e “apaixonado”. Este livro é a junção destas duas características?
Certo. Mas é, também, uma homenagem às gentes trabalhadoras dos Açores. E, desta forma, tal como diz o Avillez ao definir-me como “apaixonado”, é uma carta de amor à minha terra.
Qual a marca de cada uma das ilhas na sua gastronomia local? Ou seja, o que distingue a gastronomia das diferentes ilhas?
Ao ler o livro perceberá que é uma pergunta muito complexa. A gastronomia dos Açores é muito diversa na plenitude das suas nove ilhas. Contudo, é muito difícil dizermos “esta receita é desta ou daquela ilha”, porque há variações de uma só receita dentro da própria ilha. Ou o nome é diferente ou apenas difere de um ramo de hortelã para um ramo de salsa. As Sopas do Espírito Santo são um exemplo disto mesmo.
Se apenas pudesses escolher um único prato, dos que estão no livro, qual seria e por que motivo?
Chicharros fritos com molho de vilão e bolo da sertã. É um prato que me faz viajar no tempo. A minha bisavó, já falecida, fazia este prato imensas vezes e sempre que desfruto deste momento recordo-me dela.
Leva-me de volta às minhas raízes, à minha infância, à inocência, mas também à sabedoria que me foi transmitida pela minha bisavó em termos de gastronomia simples, mas típica açoriana.
Como já aqui dissemos anteriormente, vários consagrados, na área da gastronomia, deixaram mensagens neste livro. Qual a importância deste reconhecimento?
Este reconhecimento é, sobretudo, importante para a afirmação da gastronomia dos Açores no panorama internacional. Fico muito feliz por nomes como Eneko Atxa, três estrelas Michelin, segundo melhor restaurante do mundo em 2016, ter dedicado umas linhas a esta minha obra. Reflete, claro, a qualidade do livro, mas sobretudo o estatuto que os Açores começam a ganhar a nível internacional.
Comemora-se a 25 de Abril a elevação da sua terra, Rabo de Peixe, a Vila. O Rúben tem contribuído para, de certa forma, elevar o nome de Rabo de Peixe. Pedia que deixasse uma mensagem nesta data comemorativa para os seus conterrâneos.
Ter nascido em Rabo de Peixe, na família onde cresci, foi a maior dádiva que recebi. Levo sempre a minha terra por onde passo e nunca, em circunstância alguma, escondi as minhas raízes. Aliás, quando me perguntam de onde sou, mais rapidamente digo “sou de Rabo de Peixe” do que propriamente “sou dos Açores”.
A nossa terra, muitas vezes injustamente, tem sido alvo de estigmas falaciosos que tentam destruir a nossa unidade enquanto povo e genuinidade que tanto nos caracteriza.
Temos que ser fortes e trabalhar diariamente para que o nome de Rabo de Peixe seja ouvido pelos melhores motivos. Comemora-se agora a liberdade em geral e, em particular na nossa Vila, a nossa elevação. Contudo, esta não pode apenas ser uma data simbólica. A elevação a Vila não se fez. A nossa elevação é ainda feita diariamente. É uma pedra bruta que todos os dias temos que lapidar. O trabalho tem que
continuar.
Bem sei que certos políticos da nossa terra tentam usar a pobreza, ou mesmo instituir a cultura da pobreza e da mediocridade, para vencer eleições. No século em que vivemos isto já não se admite. Não podemos deixar que isto aconteça. Na Farsa de Inês Pereira, recordo muitas vezes uma passagem “mais quero asno que me leve que cavalo me derrube”. Temos que continuar o nosso caminho com perseverança e humildade, sem deixar que nos derrubem. O nosso futuro e a nossa credibilidade exterior depende disso e está, somente, nas mãos dos rabopeixenses. Temos que deixar de nos conformar com o que nos dão impondo quem somos e exigindo o que nos é devido.