UM NOVO CONTO DO CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”

No momento em que se assinala o 4º. Aniversário da nossa secção (nascida a 1 de julho de 2016), publicamos o segundo conto do concurso “Um Caso Policial em Gaia”, de Inspetor Boavida. O pseudónimo “esconde” uma personalidade ligada à atividade cultural, com fortes raízes afetivas ao concelho de Vila Nova de Gaia, mais especificamente à freguesia de São Pedro da Afurada, local de nascimento do “herói” da história revisitada no original que hoje se publica. A ação desenrola-se no último quartel do século passado, gloriosos tempos de muitos sonhos germinados pela esperança nascida com a Revolução de Abril. Só que uns baseavam os seus desejos na “lei do menor esforço”, buscando nos mais diversos atos ilícitos ou em miríficos golpes de sorte a fuga ao negro destino de uma vida marcada pelo infortúnio e pelo crime. É este o retrato da principal personagem do conto em apreciação nesta edição da nossa secção, cujo desfecho é verdadeiramente surpreendente. Ora vejam lá como se construiu a história de vida deste homem:

 

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 2    

“O Negro Manto da Vida ou As Cinco Cores da Sorte”, de Inspetor Boavida

Esta história aconteceu no último quartel do século passado, mas ainda hoje, em pleno século XXI, é contada pelos mais velhos que se movimentam pelo mundo do crime na cidade de Gaia, entre os quais se destaca um homem de muitos músculos e poucos miolos que dá pelo nome de Seca Pipas, alcunha que ganhou depois uma noite em que ficou fechado numa das Caves de Vinho do Porto, sem conseguir pregar olho. É ele que tem por hábito contar o que se passou com um dos filhos da terra, entretanto falecido, seu comparsa em muitos dos crimes por si cometidos nos idos de 1980, de quem era um verdadeiro amigo do peito. A história passou-se mais ou menos assim:

Segismundo Moleza, o mãozinhas de veludo da Afurada, nem queria acreditar no que os seus olhos viam. Estava em jogo um triplo jackpot do totoloto, um prémio de mais de cinco milhões de euros, e as seis bolinhas coloridas foram saindo de acordo com a sua aposta habitual de todas as semanas. Primeiro veio a “azulinha” número cinco (dia do seu aniversário), depois caiu a “roxinha” número quarenta (exatamente os dias de prisão que o tribunal decretou pelo seu primeiro crime), de seguida apareceu a “laranjinha” quinze (a idade que tinha quando foi expulso do colégio onde o internaram, ainda criança, após a condenação de seu pai por crime de homicídio na pessoa da própria mulher), de imediato surgiu na boca da grande esfera da sorte a “verdinha” com o vinte e três (número da cama do hospital onde foi parar quando o pai da sua primeira e única namorada “à séria” lhe deu uma valente sova de “caixão à cova”), algumas décimas de segundo depois saltou a “vermelhinha” trinta e seis (precisamente os dias que viveu de cama e mesa com a Micas, uma jovem moçoila transmontana que ele conheceu na grande cidade e que o abandonou sem qualquer explicação de um dia para o outro) e para terminar saiu mais uma redondinha “laranja”, precisamente aquela que tem o número de Nossa Senhora de Fátima, a quem ele reza todas as noites antes de adormecer pedindo sorte e proteção.

A sua fé inabalável na Santa dos três pastorinhos dera “frutos”. Ele podia definitivamente cumprir os mais íntimos e insondáveis desejos de sempre e realizar os seus mais secretos e libidinosos sonhos: percorrer meio mundo sem pressas de regressar, sempre acompanhado das mais jovens e sedutoras mulheres – namorar com uma bela e sensual italiana numa gôndola em Veneza, banhar-se nas trópicas águas de Havana com uma escultural nativa, sambar nas ruas de Copacabana ao lado de uma provocante morena carioca, adormecer nos braços de uma bem despida loira nórdica num luxuoso hotel das “Américas” e acordar a meio da manhã no leito quente e perfumado de uma ruiva mulher vinda de nenhures, sem lugar nem destino certo, depois de uma noite de bebidas, fumo e jogo num qualquer Casino de Las Vegas – e viver, enfim, viver finalmente um vida digna desse nome, sem ter que passar os dias abandonado e só, absolutamente só, a contar os trocos e a fugir do que parecia ser o seu destino de permanente suspeito aos “olhos” da justiça sempre que acontecia um crime e não se sabia a identidade do seu autor, tudo isto graças a seis numeradas bolas coloridas e… à proteção de Nossa Senhora de Fátima.

O negro manto que cobre toda a sua vida, em alto contraste com as cinco cores da sorte que ora o bafejavam e com o branco véu da Santa de sua devoção em que ele sempre acreditara, desaparecera do seu horizonte e tudo à sua volta parecia luzir de um brilho incandescente. Ele, que nascera de uma relação sem futuro, parido numa noite gélida de novembro num velho barracão abandonado em terras serranas vestidas de neve, e que nunca conhecera o calor do afeto, a dádiva do amor, a beleza da partilha dos sentimentos mais nobres e íntimos sem contrapartidas ou permutas pré-negociadas numa esquina ou em vão de escada, tinha ali na palma da mão uma grande fortuna à mercê dos seus dedos e um sol dourado ao alcance de um futuro que pretendia desenhar sobre um imenso azul claro e sem nuvens.

A partir de agora tudo seria diferente. O crime não seria mais o mote dos seus dias ou o pesadelo das suas noites mal dormidas em camas de insónias insistentes e vencidas a custo de muita imaginação e de sonhos coloridos sem guarida na verdade do seu quotidiano. Tudo isto se a voz grave, rouca e profunda do guarda Vicente e o barulho que fazia, com um molho imenso de chaves roçando pelas grades da sua cela, o não tivessem subitamente acordado para a dura realidade. Ali estava ele, abandonado em cima da enxerga da prisão para onde o atiraram na véspera, depois de ter sido apanhado em Lisboa em flagrante delito, acompanhado de uma velha e desconchavada prostituta, a viciar o peso de seis bolas que na noite seguinte entrariam na grande esfera da sorte para mais uma sessão multimilionária do concurso do Totoloto…

 

CONVITE AO LEITOR

E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, renovamos o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em função da sua qualidade e a originalidade, do segundo conto do nosso concurso, da autoria de Inspetor Boavida, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).

A competição prossegue na próxima edição com a publicação do terceiro conto, desta vez com assinatura de Inspetor Mokada, repetindo-se o processo de avaliação crítica dos nossos leitores durante o mesmo espaço temporal de 30 dias. A sua colaboração é fundamental, caro leitor!