Paulo Calatré, o nosso convidado de hoje para mais uma reflexão sobre o teatro profissional em Gaia, iniciou a sua atividade como cenógrafo, aderecista, figurinista e caracterizador, enveredando depois pela representação. Atualmente é sobretudo ator, encenador e professor.
Nos domínios da formação, lecionou a disciplina de interpretação no Conservatório de Música da Jobra e colabora regularmente com a ACE-Escola de Artes do Porto e Famalicão e com a ESMAE – Escola Superior de Música, Arte e Espetáculos (onde frequentou o mestrado em Encenação). Enquanto encenador, destaca-se do seu currículo a direção de espetáculos como “Diário de um Condenado” a partir de Victor Hugo ou “Chat Room” de Enda Walsh.
Como ator, tem dividido o seu trabalho pelo teatro, televisão e cinema. Vimo-lo nos filmes “Uma Vida Sublime” de Luís Diogo e “Snu” de Patrícia Sequeira, entre outros. Na televisão, participou no telefilme “Videovigilância” de Francisco Fernandes Ferreira, nas séries “Dentro” de Henrique Oliveira e “Madre Paula” de Tiago Alvarez Marques e Rita Nunes, e nas telenovelas “A Única Mulher”, “Coração de Ouro” e “Amor Maior”, entre outras produções.
No teatro, o destaque vai para a sua participação, no TNSJ, em “O Fim das Possibilidades” de Jean-Pierre Sarrazac ou “A Promessa” de Bernardo Santareno. O público de Gaia teve oportunidade de o ver no Auditório Municipal no espetáculo “As Relações de Clara” de Dea Loher, produção do TEP, em 2013. Oiçamo-lo:
Que memórias guardas do público de Gaia e da programação do Auditório Municipal nos tempos em que estiveste ao serviço do Teatro Experimental do Porto?
Estive ao serviço do TEP em Gaia em dois momentos distintos, numa primeira fase ainda como cenógrafo e figurinista e mais tarde como ator. Nessas duas ocasiões, que têm cerca de 10 anos de distância, o que mais recordo é a presença assídua de um público heterogéneo que acorria ao teatro em grande número. Recordo as conversas no final dos espetáculos com um público ávido de ver e de falar sobre o que tinha visto, feliz por ter um equipamento cultural com uma atividade regular ao seu serviço. Lembro-me no final de um espetáculo de estar a falar com um casal com cerca de 70 anos e de me dizerem que estavam muito felizes por terem teatro no Auditório Municipal de Gaia, algo que os fazia sair de casa, pois tinham já grande dificuldade de irem ver teatro ao Porto, muito embora fosse tão perto, e que ali, como moravam perto, iam a pé e aproveitavam para dar um passeio. Ou uma avó que era sósia do TEP desde muito nova, e que levava agora a neta para partilhar a sua paixão pelo teatro. Nestas recordações o que me fica são as conversas entre os atores e os espectadores, comungar um mesmo tempo e espaço, e depois partilhar essas experiências numa conversa simples, franca e despretensiosa no final do espetáculo, ou quando saíamos do Auditório e o público estava a nossa espera para nos dar uma palavra, dar a sua opinião, fazer uma crítica ou apenas para nos acarinhar com um simples “Parabéns, gostei muito”.
Face a essa tua memória, que explicação encontras para o facto de o Auditório Municipal de Gaia não ter uma programação regular há cerca de meia dúzia de anos?
A única razão que encontro é um claro desinvestimento na cultura por parte da Câmara Municipal. Sei que esta resposta pode parecer simplista, mas quando uma cidade como Vila Nova de Gaia tem equipamentos culturais com condições técnicas para servirem a comunidade e os mantém fechados, não está de todo a prestar um serviço público. Investir na cultura é tão importante como investir na educação, na saúde, na habitação, no turismo etc. Mas esse investimento exige que se encontre alguém com capacidade para transformar esses equipamentos em locais de diversidade artística, um Diretor/Programador com experiência que consiga fazer uma programação eclética, que promova um diálogo com as escola e promova um bom serviço educativo, que consiga voltar a atrair as pessoas a habitar os espaços culturais da cidade e façam deles a sua casa, uma casa com música, com teatro, com dança, com novo circo, etc., que seja capaz de oferecer uma programação para todos. É um processo lento, que demorará alguns anos até trazer resultados visíveis, que exigirá investimento financeiro, mas fará de Gaia uma cidade mais completa, mais democrática.
Tendo Gaia grandes tradições a nível amador, de que forma se devia inscrever o movimento associativo local no desenho dessa programação cultural municipal?
Um teatro municipal [leia-se, no caso de Gaia: auditórios municipais] deve ser na minha opinião um espaço aberto à cidade, em constante diálogo com os seus agentes culturais, e deve promover sempre a participação de todos na sua programação. O associativismo é sem dúvida uma das primeiras portas de acesso à cultura, não só para futuros artistas mas também como público. Quantos de nós não começámos a praticar um instrumento, a ter aulas de dança ou a fazer teatro numa associação amadora? Quantos de nós não seguimos depois para o ensino profissional ou superior nas áreas artísticas justamente porque esse associação criou essa possibilidade, porque os professores de dança, de música ou os encenadores do grupo de teatro nos incentivaram a fazer essa viagem? Quantos de nós não encontramos ali um porto seguro e amizades que partilham música, dança, teatro, livros, discos, filmes, exposições? Mesmo os que não seguem a via profissional, tornam-se público, um público mais atento, mais informado e mais exigente, um público de atividades culturais amadoras, mas também das profissionais. Nesse sentido um teatro municipal pode e deve ser um parceiro ativo no diálogo com essas associações e criar condições para que possam trabalhar em conjunto. No entanto um teatro municipal não pode ser apenas um programador do que se faz na cidade a nível amador, não me parece que seja essa a sua função, ele deve promover também a possibilidade de fruirmos artistas nacionais e internacionais que dificilmente poderíamos ver na nossa cidade e a preços que o bolso do comum dos portugueses pode pagar. Esta programação que promove o contacto com diversas realidades da criação artística ajuda a promover o diálogo, a enriquecer não só o público, mas também os profissionais e amadores que têm acesso a estes espetáculos e nesse sentido crescemos juntos.
O Auditório de Gaia deve ter uma companhia residente ou a sua programação (e dos outros espaços municipais) deve resumir-se ao acolhimento de projetos externos?
Parece-me, antes de mais, que deve fazer-se um levantamento de todos os espaços culturais da cidade e perceber as suas características técnicas e a população que podem servir. Se se criar uma rede de espaços culturais em Gaia, muitos deles poderão ter uma companhia residente que realizará um trabalho de continuidade e proximidade, promovendo uma dinâmica muito interessante com o público desse equipamento. Isto não só poderá garantir apoios tripartidos entre o Ministério da Cultura, Câmara Municipal e Juntas de Freguesia, como garantir programação constante, evitando que esses espaços estejam na maior parte do tempo fechados por falta de dinheiro para programar, uma vez que essa programação ficaria a cargo de uma companhia residente. Não nos esqueçamos que um equipamento que albergue uma companhia promove não só condições dignas de trabalho às equipas que operam nestes espaços – técnicos, atores, criativos, assistentes de sala, equipa de produção, etc. – como são geradoras de outros empregos, como costureiras, carpinteiros, serralheiros, lojas de tecidos, restaurantes, cafés, etc. Relativamente ao Auditório Municipal, tudo depende desta rede. Se ela existir e tiver companhias residentes, a programação do Auditório pode ser mais vocacionada para o acolhimento de projetos externos, uma vez que os projetos internos teriam os seus espaços e as suas programações. No entanto isto não impediria que a receção de espetáculos de agentes locais pudesse ser feita no Auditório, uma vez que nem todos os espaços terão capacidades para acolher projetos, que pelas suas características, necessitem de um equipamento como o Auditório Municipal. Caso esta rede não exista, parece-me que um programador que seja ao mesmo tempo encenador, coreógrafo ou maestro, possa fazer uma programação que receba projetos externos e ao mesmo tempo uma programação residente, garantido assim um projeto consistente, que não abra apenas esporadicamente para receber projetos avulsos. Há cerca de cinco anos que resido em Gaia e custa-me muito não poder usufruir dos espaços culturais da cidade. Muitas vezes me questiono porque tenho que ir ao Porto ver cinema, teatro, bailado, ou assistir a um concerto. Entristece-me muito pensar que as autarquias investem enormes quantias de dinheiro dos contribuintes na construção de espaços culturais e depois os deixam ao abandono. Muitos [autarcas] justificam-se com a falta de dinheiro, no entanto parece-me que o maior problema de todos é a falta de diálogo que existe entre a autarquia e os agentes culturais da cidade; se houvesse vontade, ambas as partes encontrariam com certeza soluções surpreendentes para colocar estes espaços a funcionar ao serviço do público.
A terminar, fala-me de ti: quais são os projetos artísticos em que estás neste momento envolvido e quais são os teus sonhos ou desejos que ainda estão por realizar?
Neste momento estou lentamente a recomeçar a atividade depois de três meses parado por causa do Covid-19, e recomecei com uma pequena participação numa série coproduzida pela Marginal Filmes/RTP e no filme “Salgueiro Maia – O Implicado”, do realizador Sérgio Graciano. Vou começar as gravações de uma série para a RTP, mas que não posso falar porque está em fase de preparação; vou colaborar no próximo filme do realizador Edgar Pêra; e em teatro vou retomar os ensaios da peça “Lorenzaccio” de Alfred de Musset com encenação do enorme Rogério de Carvalho e coproduzida pelo Teatro do Bolhão e o Teatro Nacional São João que terá estreia em outubro no Palácio do Bolhão. Para o futuro, gostava de continuar a fazer mais cinema e mais séries. A ficção nacional está cada vez melhor e fascinam-me, não só as possibilidades e técnicas que estas áreas permitem ao trabalho do ator, mas toda azafama das equipas de trabalho, o ritmo acelerado com que as coisas são feitas, a comunicação entre equipas, o diálogo com o diretor de atores e com o realizador… pareço uma criança abismada, cheia de vontade de aprender, com todos aqueles aparatos que não vemos no ecrã mas que estão atrás das câmaras. Acho que me falta ainda fazer muita coisa, trabalhar com muitos outros encenadores, atores, realizadores, com artistas de outras áreas, sinto que já fiz muita coisa, mas o que me falta fazer é muito mais do que aquilo que já fiz. Para terminar, tenho vontade de voltar a criar a minha companhia de teatro e conciliar todas estas minhas atividades, sem prejuízo de nenhuma.