Na pista de um grupo de criminosos responsável por um lucrativo negócio de contrafação de vinho, que tardava a ser desmantelado, o inspetor Carreira foi confrontado com uma passagem secreta na Capela do Senhor da Pedra, que levá-lo-ia a um fétido regato infestado de ratazanas onde existe uma plataforma que comunica com uma ponte aparentemente suspensa, de onde surgiu um corpo de grande dimensão.
Instintivamente, levou a mão à coronha da sua arma, pronto para qualquer eventualidade… E, pronto, é aqui que continua a nossa leitura do conto vencedor do concurso “Um Caso Policial em Gaia”, de que publicamos agora a quarta parte:
Sol de Inverno, de Luís Pessoa
IV – Parte
Do fundo do leito começou a vislumbrar um brilho estranho, uma luz difusa, de cor indefinida, que se tornava cada vez mais clara, mostrando um corpo ondulante a erguer-se das profundezas, na sua direção. Sem ação, Carreira estava apavorado, nunca vira coisa assim, tão horrenda e improvável, mas conseguiu reagir, atirando-se ao solo e puxando da arma, que pôs em posição de fogo. Um cheiro intenso a enxofre envolveu-o e sentiu-se desfalecer, não sem antes disparar dois ou três tiros contra a amálgama disforme que o atacava…
ooooo /// ooooo
A sensação de quem regressa de uma viagem ao infinito, com um despertar doloroso e assustador era o que Carreira sentia naquele momento. Não sabia o que fazia ali, fosse esse ali o que fosse. Não fazia a mínima ideia onde estava, nem que dia ou horas eram. A escuridão era total e constatou que estava amarrado. Ouvia vozes longínquas, indistintas… Apetecia-lhe gritar, dizer que estava vivo, mas a mordaça não lho permitia.
As vozes aproximaram-se. Cada vez mais perto, ouviu distintamente o ruido do arrastar da pesada porta, que lhe permitiu entrever uma luz, ainda ao longe, onde apareceram recortados dois vultos, em contraluz, caminhando na sua direção.
– Vai espreitar o “chui”…
– Ora, o “gajo” levou no “bule”, vai tardar a acordar…
Carreira estava sozinho, amarrado e amordaçado, mais que isso, fatigado e exausto e tinha pela frente dois homens, aparentemente, experientes. Não tinha nada de boa a sua situação. Só de surpresa poderia obter algo, pelo que simulou continuar desmaiado. Sentiu a aproximação de um deles, que começou a desatá-lo, certamente para melhor o transportar. Carreira via aí a sua oportunidade, mas um turbilhão de dúvidas assaltavam-lhe o cérebro: Teria a pistola no bolso? As pernas iriam obedecer-lhe? Teria forças para se erguer? Iriam matá-lo? Quantos tipos seriam?
Saltou para a frente, cabeça baixa, com a rapidez possível, atingindo com violência o que se encontrava na sua frente que, apanhado de surpresa, rugiu de dor, vacilou e caiu de costas, imóvel. Virou-se e encarou o segundo adversário, ainda confuso e sem reação, a quem vibrou um forte pontapé, que o fez dobrar-se e, lentamente, escorregar para o soalho…
Ofegante, Carreira dobrou-se pelos joelhos, tentando recuperar o fôlego. Apelando às derradeiras forças, prendeu os dois meliantes com as cordas que antes o atavam. Não fugiriam.
Resumiu mentalmente a situação. Estava sozinho, num local que desconhecia; tinham-no despojado da sua arma; não sabia quantos opositores tinha pela frente nem as suas intenções…
Como único fator positivo, a surpresa! Os outros não sabiam que ele estava liberto e pronto para a ação…
Revistou os dois prisioneiros e num deles encontrou um Lawman MKIII, carregado! Dispunha de seis tiros…
– Melhor que nada, pensou.
Abriu a porta, lentamente, evitando barulho e saiu para o corredor húmido. Estava novamente livre e armado.
Com esforço, percorreu a distância que o separava da fonte de luz que vislumbrava para além de uma porta com aparência de espessa e forte, mas que estava apenas no trinco, permitindo-lhe que a afastasse ligeiramente e espreitasse… Cerrou os olhos perante tamanha luminosidade e aguardou breves momentos antes de ajustar a visão.
O que viu causou-lhe espanto: uma espécie de gruta enorme, com vários setores, como que em socalcos, onde repousavam centenas, talvez milhares de barris e cubas… Ao fundo, uma plataforma entrava pelo rio, numa cúpula de vidro que se ajustava completamente ao casco de um barco…
– Raios, estes tipos têm coisas que só visto! – espantou-se ao perceber o método usado: O barco acostava e abria uma porta abaixo do nível da água onde ajustava a cúpula de vidro. Visto de cima o barco era normalíssimo e insuspeito, transportando a carga normal destes barcos, mas mais abaixo, em outro nível, vinha a carga clandestina que era descarregada por baixo de água, diretamente para a plataforma escondida. – Porra! Por isso o gajo estava a orientar a manobra lá de cima! O barco era mais pesado que o normal e tinha de ajustar a parte submersa! Bem podíamos andar lá em cima à procura…
Olhou em volta e contou pelo menos oito indivíduos a trabalhar por ali. Não sabia se eram todos criminosos, podiam ser apenas trabalhadores que nem soubessem bem em que trabalhavam ou o que faziam, mas para si tinham de ser considerados como ameaças, até prova em contrário.
Notou, então, num plano um pouco superior, um envidraçado onde estavam mais três indivíduos, em quem logo reconheceu o Plotomeu e o Pancrácio, a quem chamavam os PPs e que não eram mais do que os dois mafiosos que ele perseguia há tanto tempo e quase lhe fizeram a folha no caso de Lisboa. Carreira sempre tivera a certeza que estavam por detrás deste negócio, mas não tinha qualquer prova, só suspeitas. Agora o caso mudava de figura e ganhava novos contornos, a que teria de retirar o desejo de vingança, que começava a tomá-lo!
– Acalma-te, Carreira, a vingança é má conselheira… – esforçou-se para se convencer, embora sem grande sucesso.
Sentia-se enjaulado, mas não era a primeira vez que tal acontecia. Estava armado, é certo, mas os inimigos eram muitos, provavelmente muito mais bem armados do que ele, não tinha possibilidade de pedir auxilio nem de retirar porque desconhecia como chegara ali, quem o transportara e por onde.
– Resumindo, pá, estás tramado! – acabou por concluir em surdina.
Conferiu o revólver: Carregado. Destravado. Pronto.
Encostado à parede, para não ser surpreendido pela retaguarda, numa zona de penumbra, ergueu a arma com as duas mãos e gritou a plenos pulmões:
– POLÍCIA! QUE NINGUÉM SE MEXA! ESTÃO CERCADOS! RENDAM-SE!
O eco ribombou na imensa caverna, com alguns dos homens a atirarem-se para o chão, mas todos completamente desorientados sem saberem a origem daqueles gritos.
Carreira disparou logo de seguida, para reforçar o aviso, atingindo um dos homens, o que estava mais desprotegido. Logo se deslocou alguns metros, antes do segundo disparo, este sem atingir o alvo. Tinha de dar a impressão de que eram vários os polícias a disparar…
Depois da surpresa inicial, uma chuva de projeteis varreu a parede que lhe servia de apoio, obrigando-o a atirar-se para o chão. As pernas também já cediam ao cansaço.
– Estou perdido, pensou.
(Continua na próxima edição)