“LEVO SEMPRE NA ALGIBEIRA DO CORAÇÃO ESTA QUESTÃO QUE VIVO NA PRIMEIRA PESSOA”

Com 41 anos de idade, Davide Matamá é padre há 15 anos e capelão prisional há 5 anos, no estabelecimento prisional de Custóias, Santa Cruz do Bispo. Em conversa com o AUDIÊNCIA, o Padre Davide falou sobre o trabalho realizado na prisão, a mudança na vida dele com esta experiência, a reação da sociedade à realidade das prisões, e uma possível atividade com as crianças.

 

 

Ao ser uma pessoa dinâmica e extrovertida no dia-a-dia, isso ajudou-o nesta experiência nas cadeias?
Sim, esse lado extrovertido e todos os talentos que possamos ter ajudam, mas são um meio, nunca uma finalidade. A finalidade máxima da ação pastoral é a proximidade com as pessoas, o lado humano da questão porque é muito fácil nós maquilharmos funcionalismos em coisas e depois nunca ou raramente chegamos àquilo que é a relação pessoal. Portanto, eu uso essas ferramentas humanas para conseguir chegar à pessoa na sua essência e para com ela estabelecer uma relação de intimidade de cura, e, obviamente, falar-lhe de Jesus, que é ele que nos cura, nos liberta e nos dá liberdade.

 

No fundo, é uma terapia que faz com as pessoas.
Sim, curiosamente, toda a ação pastoral passa por aí. O objetivo final é elas sentirem-se perdoadas e reconciliarem-se consigo próprias. Aliás, o perdão é uma das bandeiras formativas que nos tem acompanhado ao longo deste tempo todo. No fundo vemos esta perspectiva sempre do lado da vítima, isto é, nós alguma vez fomos vítimas de um agressor que nos fez mal e que de certa forma a partir daí ajudou a desencadear todo o ciclo de violência na qual, muitas vezes nos levou à prisão, neste caso. E, é todo esse lado da vítima, da cura, da libertação de todo o nosso passado, que nos ajuda a conquistar a liberdade que todos ansiamos. Quando nós vamos bem, todo o resto à nossa volta está mal, é a visão que temos das pessoas, do mundo, da vida, que é uma visão negra, afunilada e,enquanto, isso não for integrado na vida, dificilmente o resto virá. A liberdade é sempre nesta circunstância de nos cuidarmos de dentro para fora para depois avançarmos para os outros, para a sociedade, uma relação sempre com o coração aberto à novidade.

 

Quando está com elas na sua ação pastoral procura com que não sentiam que são prisioneiras?
Não, eu nunca maquilho a realidade, isso é enganá-las. O primeiro passo da liberdade deve acontecer no dia em que elas são presas, a reinserção começa aí, porque se elas não tomam consciência do que as levou lá é sinal de que não tomaram consciência do que fizeram, e o primeiro passo para nós nos reconciliarmos é admitirmos que temos alguma culpa e que fizemos alguma coisa em concreto algo de negativo, algo que tem várias perspetivas, a moral, a jurídica e a ética. É esta noção totalitária do problema que nos faz agarrar a liberdade, enquanto isso não acontecer, é como uma roda de um carro que está na lama e não sai do sítio e a alavanca é esta vontade que eu tenho de sair de o meu problema, tenho consciência dele e depois trabalhar sobre ele para tentar ultrapassá-lo sem nunca esquecer o que aconteceu. Isto é muito difícil porque há ali pessoas com muitas adições a droga, que é de facto a rainha de todos os crimes, e, portanto, há muita esta tendência de maquilhar a realidade e acaba por ser mais uma droga, e, às vezes, a religião aí funciona como uma anestesia da realidade e da consciência, mas nós nunca fazemos isso. Eu costumo dizer que aquela é a nossa casa enquanto lá estivemos, não é um parêntesis na nossa vida, faz parte integrante na nossa vida, e até acho que se formos lá parar, vamos usar aquilo para nos reencontramos e depois ser uma alavanca que nos vai catapultar para a liberdade. Cada momento é importante. É necessário tomar a consciência do problema porque a dor é inevitável, todos nós sentimos a dor, mas o sofrimento é opcional, e eu posso sofrer mais ou menos. Portanto, é um pouco nesta dinâmica que trabalhamos as emoções, as relações, mas sempre, em ordem à tomada de consciência do que nos levou para à prisão, e depois o que nós podemos fazer para voltarmos à liberdade, voltarmos à vida que nós sonhamos, que era a nossa zona de conforto, os nossos amigos, as nossas relações, mas que, entretanto, fomos retirados e que havemos de reconquistar.

 

Para si, enquanto, padre e capelão é mais difícil lidar com os homens ou com as mulheres, ou é simplesmente diferente?
É completamente diferente. A psicologia humana é simplesmente um campo muito estranho, nós somos muito estranhos. A psicologia da mulher é muito diferente da psicologia do homem, como é óbvio, os afetos, a sensibilidade da mulher é muito mais à flor da pele do que a dos homens, não quer dizer que os homens não tenham, mas gerem essa emoção de uma outra maneira, ou seja, interiorizam mais do que exteriorizam, e acabam por ser mais distantes, enquanto as mulheres não são mais próximas. É muito diferente como nos relacionamos e como celebramos o momento, é sempre mais tenso, há mais desequilíbrio, nota-se mais nisso nas mulheres, como para o bem como para o mal, elas são muito alegres muito eufóricas, ou estão muito em baixo, muito frustradas, já nos homens há mais equilíbrio, nota-se menos essa distância. É mais difícil lidar com as mulheres, completamente.

 

O AUDIÊNCIA soube que houve um feito único, um batizado realizado na noite de Natal, onde a Associação Rigor e Coragem foi uma parceira. Quer-nos falar um pouco do que aconteceu, sendo este, o primeiro batizado da associação?
Eu fui contactado pela Dr. Manuela Bulcão, que eu não conhecia, ela teve o conhecimento do trabalho feito nas cadeias e tomou a iniciativa de me contactar enviando o trabalho que realiza com a associação, que também fundou, e, a partir dali começamos de facto uma relação pastoral de aproximação. Numa das conversas, dissemos que na cadeia existiam crianças e muitas vezes por batizar, portanto, isto foi uma alavanca para chegarmos à conclusão que podiam ajudar na organização do batizado, e depois o acompanhamento futuro destas crianças, apesar de ali ser muito difícil porque muitas delas são estrangeiras e voltam ao seu país de origem, à sua terra natal. Mas,independentemente disso, há sempre este meio de ajuda, sempre na linha que eu falava, de curar, muitas vezes a ausência da família, dos amigos, dos mais próximos, e nós ajudamos a criar um ambiente mais caloroso, mais próximos e mais humano.Portanto, nesse sentido achei muita piada que haja um grupo na nossa diocese e que está atento a estes casos, e foi nessa dinâmica que vi com bons olhos essa ajuda, essa colaboração com a Associação Rigor e Coragem.

 

Acha que poderá haver alguma possibilidade de juntar alguns dos seus meninos à grande festividade de São João que vai haver no Porto e, em simultâneo, também nos Açores?
Isso é uma pergunta difícil. De acordo com o pouco conhecimento que eu tenho do sistema prisional, à priori ele veda-se a esse tipo de atividades no exterior, nem sempre vêem com bons olhos essas coisas, de qualquer maneira depois depende da situação jurídica. Não está excluído, eu até acho isso muito interessante porque para a sociedade isso funciona como alavanca para a reinserção que passa muito por aí. Claro que que nunca pressiono as senhoras para batizarem os seus filhos, isso tem que ser uma ato livre, responsável, esclarecido e com discernimento, por isso, sempre que elas fazem livremente, eu acolho e tento resolver a questão e,normalmente, tem resultado,já é o 4º batizado que eu faço na cadeia e outros haverá para fazer, com certeza. Mas, essa é uma possibilidade a pôr em cima da mesa e depois é dialogar o com o sistema, porque a casa não é minha, e havendo condições é uma proposta interessante.

 

Esta experiência fez-lo crescer enquanto homem e enquanto padre e permitiu-lhe começar a ver a vida com outros olhos?
Completamente. Eu não estava preparado, não fiz nenhum curso, ninguém me ensinou como se fazia, agora, com a minha maneira de ser e estar na vida fora como em entendo, acho que tenho ferramentas humanas que possibilitam ,de facto, criar condições para que a ação pastoral, que desenvolvemos na cadeia, seja efetiva com algum sucesso. E já lá vão 5 anos. De facto, correu muito bem, estou satisfeito e feliz, reconheço que não é um trabalho muito fácil, mas nós não podemos fazer pastoral penitenciária sem que cá fora acreditemos nestes valores de aproximação, de reinserção, isso não é um cliché que vestimos ao fim de semana, e,depois vamos às cadeias. Não. Eu cá fora também tenho que viver isso na minha vida quotidiana porque senão não faz sentido. Esta hipócrita que nos chamam a atenção que somos uma coisa no altar e cá fora somos outra. Eu tento dentro do possível, nas minhas relações ou no diálogo com a sociedade envolvente, acreditar aquilo que celebrou na cadeia, e eu vou celebrar a muitas paróquias e, não há vez nenhuma que eu não fale do tema porque está junto ao coração, junto da boca, portanto, está sempre pronto a sair. A pastoral penitenciária tem esta dimensão voltada para o exterior, e a sociedade tenta esquecer esta realidade, é tudo uma questão de mentalidades, se não falarmos da questão, se não partilharmos com as pessoas, elas nunca vão tê-la na sua agenda. E, eu tenho notado que há uma curiosidade do tema,  mas ainda há muito preconceito, há muita coisa errada, e à mesa de bons cristãos, mas à medida que vamos desmontado estes esquemas, de repente, as pessoas estão mais sensíveis e até passam do 8 ao 80, querem ir à cadeia, quer contactar querem atividades, querem falar da questão, e isso é muito positivo. Onde vou levo sempre na algibeira do coração esta questão que vivo na primeira pessoa, não é um apêndice, não é um fato que eu visto. Não. Eu vivo assim e estou sempre com o pensamento na malta. Não há um desfasamento entre a realidade e a ficção das cadeias, para mim, é uma realidade só, em que eu levo de dentro para fora aquilo que eu experimento com os meus colaboradores.

 

Que mensagem quer deixar à sociedade, principalmente à população dos Açores?
Eu conheço a Linda Evangelho que é uma das colaboradoras mais emblemáticas dos Açores, e eu sei que as coisas não são fáceis na cadeia lá. Eu conheci a Linda Evangelho nos encontros nacionais que temos. Ela é uma mulher fantástica, muito envolvida na ação pastoral prisional na sua ilha, e temos partilhado as dificuldades do que é ser colaborador no meio prisional. De facto, os colaboradores têm sido maltratados. Mas, para os habitantes dos Açores em todas as ilhas, que tenham esta consciência mais humana da vida toda, não podemos esquartejar mais a vida que nos é, dada rotulando-os, criando guetos, criando periferias, pois só não os atiram para a infelicidade e para a diminuição da humanidade. Tendo consciência das nossas debilidades quer seja no hospital quer seja na cadeia ou no centro social ou nos sem abrigo, devemos cuidar todos uns dos outros, porque estamos a cuidar de nós. Portanto, esta ideia do cuidar é fundamental porque se eu não cuidar do outro, ele também não vai cuidar de mim e nesta sociedade tão dura, tão rígida, tão desumanizada. Eu penso que é uma palavra de ordem hoje o cuidar, o aproximar, o acolher no seio da nossa vida aqueles que não têm a mesma marcha do que nós, não entendem a vida da mesma forma e que não tiveram as mesmas oportunidades que nós tivemos muitas vezes. Mas, nós podemos partilhar o que temos e isso torna-nos seres maiores, não para nos exibirmos, mas porque não fazemos mais do que a nossa obrigação, cuidarmos das criaturas que Deus colocou ao nosso cuidado também.