MISTER LEO – MONSIEUR L’HOMME

A 21 de Fevereiro fui fazer contas com o Tio Samuel. Este ano foi mais cedo por ter dado conta que tinha toda a papelada necessária. Nos últimos anos não tenho pressas com isso porque não há dependentes de menor idade, desconto durante o ano o mínimo que a lei permite e, por isso, não recebo dinheiro de volta. O que vem do Estado geralmente dá para pagar ao governo federal, cujo prazo se estende até 15 de Abril. Este prazo será alterado este ano, tendo em conta a loucura de vida que estamos a levar por causa do vírus da Corona. O certo é que a data por mim escolhida veio a calhar, porque foi anterior às proibições dos ajuntamentos sociais. Se estivessem em efeito, haveríamos de fazer nós mesmos as contas com o governo. Aliás, já preenchemos, várias vezes, papelada mais complicada do que esta das taxas sobre rendimentos, mas por uma questão de rotina, todos os anos eu vou fazer uma visita ao Mister Leo, da Bedford Street.

Leo L’Homme, como o seu nome assegura, é de ascendência francesa, cujos antepassados foram de França para Quebéc, e que na viragem dos séculos de 19 a 20 se mudaram para a Nova Inglaterra para melhores condições de vida. As invasões francesas, digo: canadianas, foram naquela altura grandes, sendo necessário o governo americano colocar travões na fronteira, desenvolvendo algumas indústrias naquela província do Canadá para segurar os canadianos no seu país. Assim nasceu mais uma etnia nesta região, que sempre foi, desde o seu princípio, uma grande rival à portuguesa e à irlandesa. A memória popular não regista grandes incidentes entre italianos e franceses. Mas ajuntamentos com estes e com os portugueses nunca acabavam bem. Tanto que, chegámos ao ponto de ter criado uma das mais belas histórias de guerra nesta cidade dos teares com as famosas batalhas entre os soldados do general Lafayette e o exército do Infante Dom Henrique, nos anos cinquenta do século vinte. Adianta-se que, ainda há cerca de vinte e poucos anos era muito difícil haver casamentos entre franceses e portugueses na cidade de Fall River. Mister Leo nunca fugiu a esta regra de separação de raça criada pelos francófonos, mas sempre acreditou que precisamos uns dos outros, e que os “Green-Beans”, como ele nos denomina entre os seus patrícios, são boa gente. Por isso sempre teve grande clientela portuguesa no tempo dos impostos pela localização do seu escritório, numa zona em que a etnia portuguesa donina em cerca de noventa por cento da população. Serviu-se de um pequeno escritório na Bedford Street por quase cinquenta anos, mas há pouco tempo, nos finais do ano passado, mudou-se para um maior espaço, quase em frente daquele que usava, e que abrigou durante muitos anos a Agência de Viagens Lima. Já me prepara os impostos há 36 anos, e eu não encontro razões para que ele os deixe de preparar. Neste novo espaço tem em dia a tecnologia, oferece café e tem alguns brinquedos para crianças impertinentes. Aqui não se fuma, como se fazia no escritório velho, sendo contra-a-lei. É outra coisa! Além do mais, tem um ajudante a tempo inteiro. Reparei, porém, que o preço dos seus serviços subiu, através de um papel afixado na parede. Mas quando lhe perguntei o preço, segredou-me, em voz baixa: “o mesmo do ano passado”. Metade do valor afixado. Como posso deixar de visitar o Mister Leo para a preparação dos meus impostos?

Depois da época alta o Mister Leo vai sempre de férias, mas este ano não pensa nisto. Já foi à China, e admirou-se de lá não se chamar “Chinese-Food” àquilo que lá se come. Sabemos perfeitamente que aqui, na Nova Inglaterra, ele era um grande consumidor de comida chinesa, mas agora fartou-se e não quer saber mais dela. Diz que agora prefere comer tacos ampanhados de cerveja Corona.

Sempre que me vê cumprimenta-me sorridente. “Señor da Ponte” para cá, “Monsieur L’Homme” para lá. Pergunta-me pela esposa, porque ela era sua freguesa antes de eu ter posto os pés neste país, e pelo meu filho, porque é professor, como ele também foi. Sim, era professor a tempo inteiro e contabilista nas horas vagas. Até acho que chegou a ser superintendente do sistema escolar antes de atingir a reforma. Está bem de vida. Tem filhos casados e netos nas universidades. Já teve dois enfartes, mas continua fumando e bebendo, gosando a vida, tendo em conta que a morte é certa. A nosso entender tem pouco a ganhar e menos a perder ao importar-se com o que os outros pensam dele. Recordo uma cena, no velho escritório, que nunca me esquecerá e que confirma o que já foi dito:

O pequeno espaço estava cheio de gente. Dez pessoas adultas, mais o mister Leão. Eu encontrava-me na cadeira do réu, sendo servido, sentado em frente do contabilista, e a separar-nos a secretária de cento e cinquenta centímetros de largura. A certo momento o homem tira os olhos do computador e deitou uma visão geral à clientela. Apoiou-se ao braço direito da cadeira, e inclinando-se lateralmente na mesma direção soltou uma bomba de gaz do traseiro, pelo lado esquerdo, que não passou despercebida a ninguém pelo barulho que provocou, voltando de seguida a trabalhar na maior naturalidade. Para além do espanto ninguém se queixou de mau cheiro. Por sorte naquele momento o ventilador do aquecimento não estava a funcionar. Quinze minutos mais tarde, pronto com o meu trabalho o contabilista foi pago. Nem foi preciso perguntar-lhe o preço, porque ele apressou-se a segredar-me, dizendo que era o mesmo do ano passado. Pus-me de pé, paguei, e como de costume apertei-lhe a mão. Neste momento veio-me às narinas um dos mais terríveis cheiros, e reparei que a maioria dos clientes franzia o nariz. Um escape gasoso silencioso havia saído do rectro de alguém. Desta vez não foi mister Leão, tenho a certeza, porque ele não se mexeu da cadeira. Também não fui eu, mais certeza tenho, porque conheço o cheiro dos meus. Mas como eu estava de saída pude ler os pensamentos daquela gente toda, incluíndo o cantar silencioso da galinha que pôs o ovo.

Um abraço da Nova Inglaterra para todo o mundo lusófono. Cuidem de si e dos seus e, por favor, sejam felizes. Vamos vencer esta guerra.

 

Já paguei Ti Samuel,

Já não lhe devo um tostão.

Sou um cidadão fiel

Às leis da minha nação.

 

Vivendo as incertezas

Que despontam dia-a-dia

Notícias só dão tristezas

Desta grande epidemia