O CASO DO CADÁVER ENCONTRADO NA PRAIA DE LAVADORES

O conto que hoje se publica leva-nos de novo ao restaurante Casa Branca, desta vez tendo como autor um consagrado ator português e como protagonista um investigador da Polícia Judiciária que vem sendo presença habitual na nossa secção, cujo nome remete-nos para um importante escritor nacional que viveu a sua juventude em Gaia. Inspetor Garrett é, aliás, muitas vezes questionado sobre um seu eventual parentesco com Almeida Garrett, como acontece neste original, dividido em duas partes devido à escassez de espaço para a publicação numa só edição.

 

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 8

“O Inspetor Garrett e o Caso de Lavadores”, de Rui Mendes

I – Parte

Sempre que por motivos profissionais tinha de se deslocar ao Porto, o inspetor Garrett não deixava de fazer uma visita à praia de Lavadores e de comer no restaurante Casa Branca. Mesmo depois do desaparecimento da sua proprietária, a acolhedora Dona Adozinda, os petiscos não perderam a qualidade que, desde há muitos anos, era timbre da casa.

Primeiro, se fosse para almoçar, e caso estivesse um bonito dia de sol, era de regra um agradável passeio a pé pela praia ou, no caso de serem horas de jantar, não se podia perder o estonteante pôr de sol, que acompanhava da melhor maneira a sobremesa do repasto.

Naquele dia o sol estava radioso e Garrett não perdeu a oportunidade de cumprir o preceito, fazendo as honras a um suculento “bacalhau recheado”, uma das especialidades da casa, regado por um tinto “Valle Pradinhos” que não lhe ficava atrás em nobreza e paladar.

Durante a refeição, Garrett, sempre atento ao seu redor, não deixou de reparar na atenção que um outro cliente numa mesa próxima lhe dispensava, olhando-o por vezes como quem se prepara para meter conversa. E, de facto, quando mais uma vez a empregada referiu o seu nome, perguntando “o sr. Garrett, deseja já o café do costume?”, o outro avançou, meio hesitante, e indagou:

– “Peço muita desculpa. O senhor chama-se Garrett? É que estou há que tempos cheio de curiosidade de lhe perguntar se por acaso é descendente do famoso escritor Almeida Garrett. Se fosse, seria para mim uma grande honra conhecê-lo, sabe?”

– “Não, meu amigo, e não lhe levo nada a mal a pergunta, não é a primeira vez que acontece. Mas de facto não sou da família do escritor. E, já agora, deixe-me dizer-lhe que o meu apelido proveio da Irlanda, ao passo que Almeida Garrett, que nasceu com o nome prosaico de João Leitão da Silva, só aos 19 anos, estudante de direito em Coimbra, é que resolveu adotar os três apelidos, Baptista, apelido do padrinho, Almeida, segundo apelido da mãe, e Garrett que era o apelido da avó paterna, senhora francesa que viera para Portugal acompanhante de uma princesa. E muita gente não sabe que Garrett, embora tenha nascido no Porto, passou toda a infância aqui em Gaia.”

– “Bom, lamento, e muito obrigado por esta verdadeira lição. Mas então o seu apelido não é francês? É irlandês? Como assim?”

O inspetor, que foi sempre um bom conversador, estava particularmente bem disposto nesse dia e resolveu convidar o interlocutor a tomar café na sua mesa, para continuarem a conversa.

– “O meu trisavô Leopoldo Bernardo de Mello Garrett era filho de um imigrante irlandês de nome Michael Garrett, que veio para Portugal em 1858, aquando da tremenda fome que assolou a Irlanda em meados do século XIX por causa da doença da batata que matou mais de 700 mil irlandeses e obrigou 800 mil a emigrarem, a maioria dos quais para a América. Mas o motivo da fuga foi mais exatamente o facto de ele ter aderido à organização clandestina “Fenianos” que combatia a ocupação inglesa acusando-a de reduzir a Irlanda a um estado de penúria extrema.”

– “Fenianos”? Mas esse não é o nome de uma coletividade muito popular que há no Porto?”

– “Pois é. Mas curiosamente não tem nada a ver com a Irlanda. Foi só o nome adotado aqui por uma sociedade recreativa fundada em 1904 com o objetivo de tornar o carnaval portuense mais divertido, à semelhança do carnaval brasileiro que, nos primeiros anos do século vinte, era dominado por uma escola de samba chamada “Fenianos” talvez porque o nome estivesse ligado na Irlanda a uma ideia de gente guerreira. E é muito curioso que esse meu tetravô Garrett, “feniano” irlandês, que era engenheiro de caminhos de ferro, se tenha fixado aqui no norte e tenha tido um papel importante na construção da linha de comboio Porto-Póvoa de Varzim que veio a ser inaugurada em 1875.”

– “Então quer dizer que a sua família viveu sempre aqui no norte?”

– “Não, o meu trisavô foi viver para Lisboa e a família por lá ficou. Mas eu tenho corrido o país todo, até porque a minha profissão na Judiciária a isso obriga. Hoje sou inspetor, agora já é tarde para mudar, mas confesso-lhe que não há “métier” mais ingrato. Não nos podemos enganar mas, às vezes enganamo-nos. Somos como os árbitros de futebol.”

– “Oh, meu Deus! Então estou na frente de um inspetor da P.J.? Ninguém diria. E, desculpe a pergunta, inspetor Garrett, mas enganam-se muitas vezes?”

– “Não, mas quando acontece é em cheio. Quantas vezes só passados uns anos é que percebemos os erros que cometemos. Por vezes ainda dá para emendar e reabrir o processo, mas noutras já é tarde demais. Olhe meu amigo, vou contar-lhe uma história que nunca contei a ninguém. Foi um dos maiores falhanços da minha carreira. Um erro de palmatória.”

– “Veja lá… Se não quiser, não conte…”

– “Não, não. Eu hoje estou de maré. E já lá vão mais de dois anos. Alguma vez ouviu falar de uma mulher que apareceu morta aqui na praia de Lavadores, no ano de 2017? Não, pois não? A coisa ficou sempre fora das trombetas da imprensa, a família da vítima exerceu influências nesse sentido. Nem o Correio da Manhã conseguiu farejar o sucedido. Eu nessa altura estava em comissão de serviço no Porto e fui encarregado do caso. Mas deixe-me contar a história desde o princípio, olhe, como se fosse um problema policial. Gosta de problemas policiais? Devia gostar. Fazem bem à cabeça da gente. E para mim é o dia a dia.”

– “Inspetor, posso oferecer-lhe um digestivo? Convido eu.”

– “Não, amigo, obrigado. Deixe-me ficar com o paladar do vinho tinto que era ótimo. Mas vamos à história:”

(continua na próxima edição)