“O TEATRO É A ARTE MAIS DEMOCRÁTICA QUE EXISTE”

Nesta nossa ronda pelos criadores teatrais com ligação a Gaia, para uma reflexão sobre o estado do teatro profissional neste concelho da margem esquerda do rio Douro, vamos hoje ao encontro da atriz Ângela Marques. Possui o Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes e a Licenciatura em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

A sua estreia como atriz ocorreu em 1989, na Seiva Trupe, em cuja Escola concluiu o Curso de Interpretação, tendo colaborado depois com quase todas as companhias e espaços de criação teatral do Grande Porto. Foi docente em Teatro na ESMAE-Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo, entre 2012 e 2020, funções que exerceu paralelamente à sua atividade como atriz na Astro Fingido, estrutura que criou e dirige com o dramaturgo, encenador e ator Fernando Moreira. No seu currículo, destaca-se a participação nos filmes “O Princípio da Incerteza”, de Manoel de Oliveira; “Tebas”, “Surdina” e “Ornamento e Crime”, de Rodrigo Areias, entre muitas outras longas e curtas metragens, para além da prestação na novela “Morangos com Açúcar” e nas séries televisivas “4Play”, “Dentro” e “Mulheres de Abril”.

A sua voz já deu vida a inúmeras personagens criadas para alguns dos mais inspirados desenhos animados, trabalho que vem desenvolvendo desde 1992 em dois estúdios de dobragens localizados em Gaia, cidade que assistiu, há pouco mais de uma dezena de anos, a uma das suas melhores criações, no palco do Auditório Municipal, na mítica peça de Eugene O’Neill “Longa Jornada Para a Noite”, pelo TEP, sob a direção de Nuno Cardoso. Passemos-lhe a palavra:

 

 

Que recordações guardas das reações do público gaiense aos vários espetáculos a que assististe ou representaste no Auditório Municipal de Gaia?

Trabalhei em Gaia com o TEP [Teatro Experimental do Porto] durante algum tempo em espetáculos que se apresentaram no Auditório Municipal, mas também na Casa Barbot e no Centro Cultural e Social do Olival. Conheci um público interessado e generoso, mas em menor quantidade do que a dimensão do concelho faria supor. Como espectadora, confesso que é raro agora dirigir-me a Gaia para ver espetáculos. Alguns dos grupos de teatro que mantinham atividade regular no concelho, como o TEP, o Teatro do Ferro ou o La Marmita acabaram por desaparecer ou deslocaram-se para outros lugares. O último trabalho que vi foi um espetáculo do Teatrão [Coimbra], que integrava o FITEI [Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica], no Auditório Municipal.

 

Na tua opinião, a que se deve a escassez de espetadores? Défice de divulgação, oferta irregular de projetos, menor atenção na formação e fidelização de públicos?

Só se consegue construir uma corrente de público se houver regularidade na programação e uma divulgação eficaz. É ainda fundamental uma articulação com as escolas e uma periódica auscultação da satisfação do público. É para ele que trabalhamos.

 

De que forma é que as companhias de teatro devem interagir com a comunidade escolar e como pode o município promover/mediar esse diálogo?

O município pode ser um excelente mediador entre as companhias e as escolas, pelo conhecimento privilegiado que tem do território. O trabalho a desenvolver passa não só pela oferta de espetáculos que interessam às escolas, e não me refiro só a textos dramáticos que fazem parte do plano curricular, o que seria redutor, mas também pela dinamização de clubes de teatro. Este trabalho tem sido desenvolvido em vários municípios com sucesso e a resposta dos alunos e dos professores revela que há muito a ganhar se se der continuidade a estas parcerias.

 

Na tua opinião, os espetáculos de iniciação, os primeiros a que as crianças assistem, devem fazer o cruzamento do teatro com outras artes, ou essa multidisciplinaridade é irrelevante?

O teatro faz, desde sempre, esse diálogo com outras artes. Essa multidisciplinaridade está presente desde a sua génese, o canto, a dança… É imprescindível dar lugar às expressões na educação desde a primeira infância. As crianças precisam desse espaço de liberdade criativa, de assistir a manifestações culturais, mas também de criar.

 

Concordas que a produção, investigação e desenvolvimento artísticos são sustentáveis, sem a ajuda dos organismos públicos, como alguns sustentam?

Não me parece, não percebo o fundamento de uma afirmação dessas, se estivermos a falar de criação artística, que, não sendo massificável, não será nunca lucrativa.

 

A verdade é que ainda hoje há quem olhe de lado para o investimento público na cultura, nas artes performativas e no teatro em particular. Queres comentar?

Sempre haverá quem considere a cultura, e o teatro em particular, um investimento que devia respeitar apenas ao setor privado. Sabemos o quanto isso empobreceria a oferta, tornando-a parca e à medida do gosto em voga! O fazer artístico precisa de tempo e espaço. Logo, de apoios que lhe permitam trabalhar. Cada criação é única, e nem sempre conduz ao sucesso. É uma lógica diferente da que rege as indústrias criativas, daí a necessidade do investimento público. O teatro é a arte mais democrática que existe, faz-se e frui-se no coletivo. Não há teatro sem o contributo do espectador. Além disso, no teatro pensa-se sempre o presente, mesmo quando se fazem os clássicos. E pensa-se com os outros. Como diz o Peter Brook «A vida no teatro é mais visível.» Numa era tão tecnológica, onde se ouve música sozinho, onde se vê um filme sozinho, onde os motores de busca da internet substituem uma ida à biblioteca, o teatro permite o encontro com o outro, e connosco também.

 

Eu diria ainda que, além de um poderoso instrumento de inclusão e cidadania, o teatro pode ser um importante meio de criação de valor económico. Concordas?

Sim, concordo. Não só pelas equipas que envolve, mas porque dinamiza os meios em que desenvolve o seu trabalho.

 

Entretanto, o Auditório Municipal deixou de ter uma companhia residente e a sua programação é cada vez mais escassa e descontinuada. O que pensas disso?

Não sabia. Lamento. Não existem assim tantos espaços culturais disponíveis, pelo que cada sala desaproveitada é uma oportunidade perdida. Infelizmente, não é uma situação inédita no país.

 

Agora, com a sua integração na recém-criada Rede de Teatros, o Auditório Municipal pode vir a assumir-se definitivamente como espaço de acolhimento, deixando de vez de ser também um espaço de produção e criação. Queres comentar?

Parece-me positiva a integração na Rede de Teatros. Quanto à utilização do espaço, não tenho conhecimento suficiente do tecido cultural de Gaia para opinar. Mas é sempre mais interessante quando serve as duas funções: acolher e criar/produzir.

 

Após a saída do TEP, do Teatro de Ferro e do desaparecimento do La Marmita, a oferta teatral de criação própria dos grupos profissionais com sede em Gaia tem sido escassa e praticamente ignorada pelo Município. Isto faz sentido?

Confesso que não conheço grupos profissionais radicados em Gaia. Talvez seja apenas ignorância minha, uma vez que não habito no concelho. É difícil a sobrevivência nesta área sem o apoio e articulação com as autarquias. Quando existe este diálogo, saem todos a ganhar: os profissionais da cultura, o município e o público.

 

São 7 as estruturas profissionais com sede em Gaia, sendo a Má Companhia a mais antiga. E nenhuma tem apoio municipal relevante. Queres comentar?

Confesso que desconhecia. Penso que a autarquia deve procurar conhecer o trabalho dessas estruturas e encontrar formas de trabalhar com elas. Faz todo o sentido apoiar quem está no terreno a desenvolver atividades culturais que fazem falta ao concelho e esse apoio pode manifestar-se de formas diversas. Será que já foi feito um levantamento das estruturas que existem, quais as suas condições de trabalho, objetivos, necessidades, etc.?

 

A democratização da cultura em Gaia podia passar pela descentralização da oferta teatral pelo concelho, através das criações dessas estruturas. Concordas?

Sim, penso que a dimensão do concelho de Gaia o justifica.

 

Esse tem sido mais ou menos o trabalho da Astro Fingido nos municípios da Comunidade Intermunicipal Tâmega e Sousa. Queres explicar esse vosso projeto?

A Astro Fingido está sediada no Porto e é nesta cidade que desenvolve boa parte do seu trabalho, quer na área do teatro quer na da formação (por exemplo, integra há 10 anos o Programa Porto de Crianças com o “Filosofário-Oficina de Filosofia” com Crianças para o 1º ciclo). No entanto, tem desenvolvido um trabalho de proximidade com a CIM [Comunidade Intermunicipal] do Tâmega e Sousa: criou a Oficina de Expressão Dramática “TOU-in”, que levou a 5 concelhos desta CIM durante 3 anos letivos, está a produzir um espetáculo para o projeto “Escrita em Cena”, da Escritaria, em Penafiel, e tem mantido, na última década, uma relação de proximidade com o município de Paredes, criando espetáculos a partir do diálogo com a comunidade local (ex. “O Português Voador”, “A Torre dos Alcoforados”, “Mulheres Móveis” ou, recentemente, “Moço da Cola”). Foi ainda responsável pela programação do “MAPPA21, Teatro, Arte e Património”, que decorreu, entre junho e outubro, em várias freguesias do concelho de Paredes. Procuramos a proximidade com as comunidades, sem descurar um serviço educativo, que nos parece fundamental para a criação de públicos. Este é um trabalho que tem contado quer com o apoio do Ministério da Cultura, através da Direção Geral das Artes, quer dos municípios envolvidos. O interesse pelas atividades que temos vindo a desenvolver tem sido crescente e as oportunidades vão surgindo, porque o trabalho vai falando por nós. Estamos com grandes expectativas de fazer ainda mais e melhor no futuro. Ambicionamos ser a primeira companhia profissional do concelho de Paredes.

 

A terminar, porque a nossa conversa já vai longa, fala-me de ti. Quais são neste momento os projetos em que estás envolvida, enquanto atriz?

De momento estou a preparar a digressão de 2 espetáculos da Astro Fingido, que integram o Ciclo da Invisibilidade: “Mulheres Móveis” e “Moço da Cola”, ambos com texto e encenação de Fernando Moreira. São trabalhos desenvolvidos a partir da realidade laboral de Paredes nos anos 60/70 do século XX, que abordam a invisibilidade social de uma parte da população. Preparo também, para uma coprodução Assédio/TNSJ, o papel da Rita em “O Pecado de João Agonia” de Bernardo Santareno, com encenação de João Cardoso, a estrear no TeCA [Teatro Carlos Alberto] a 11 de novembro próximo.