A SAGA DO ACORDO ORTOGRÁFICO (PARTE II)

No passado dia 20 de Março, o jornal Audiência publicou um artigo da minha autoria sobre o Acordo Ortográfico (Parte I), no qual, em jeito de brincadeira, reclamava a anulação não do último acordo, mas de todos os já firmados até hoje, bem como a recuperação de todo o vocabulário e matriz cultural perdidos ao longo dos tempos.

No referido texto, incitava o povo luso a encetar uma “luta organizada” com o objetivo de resgatar o nosso idioma, tal como foi escrito há 800 anos por D. Afonso II que decidiu “redigir o 1º texto oficial de sempre em Língua Portuguesa – o seu testamento, num acto propositado de rebeldia para marcar a nossa independência nacional”.

Neste primeiro trabalho, deixei a promessa que voltaria ao assunto. Ora aqui vai, num tom mais sério, o que espero seja um contributo importante para a discussão sobre o Acordo Ortográfico. Antes de mais, começo por lembrar os ensinamentos que nos vêm dos maiores linguistas e estudiosos a nível internacional, dos quais destaco Noam Chomsky:
–    Todas as línguas do mundo estão num processo acelerado de profundas alterações quer ao nível oral quer escrito. Se há uns séculos atrás, os idiomas evoluíam lentamente, em consequência das invasões e dos contactos entre povos, que aconteciam com pouca regularidade, hoje em dia com a globalização, as ligações aéreas, os fluxos migratórios e as novas tecnologias essas interações acontecem 24 sobre 24 horas, à distância de um clique que nos lança no mundo infindável da internet. Vivemos rodeados de línguas e de interseções entre elas ao minuto.
–    Se é bem verdade que todas as línguas estão sujeitas, presentemente, a todo o tipo de interferências, tal torna-se indiscutível quando se trata das línguas de expressão mundial, com uma relevância indiscutível no panorama linguístico global, como é o caso da língua portuguesa, veículo de comunicação e de cultura de um número significativo de povos e suas comunidades espalhadas na diáspora. Sabe-se, hoje, que a língua portuguesa é um idioma falado por mais de 250 milhões de pessoas, espalhadas por todos os continentes.
–    As mudanças a que temos assistido na evolução das línguas são poucas quando comparadas com as alterações que as atuais gerações mais jovens (no futuro, os únicos falantes vivos das línguas) vão imprimir às mesmas, fruto do uso das novas tecnologias. Na atual arena linguística, os jovens e as crianças escrevem com menos letras e falam com menos palavras. A tendência é respeitar os dois princípios basilares de qualquer língua: comunicação e economia. Enquanto a língua, traduzida nas suas múltiplas linguagens, for capaz de garantir a comunicação entre os seus utilizadores, podemos ficar descansados. Os sistemas linguísticos, criados por seres humanos, para servir o propósito da comunicação a isto estão obrigados. A língua, plasmada em textos orais e escritos, tende a ser usada de forma direta, sem rodeios, sem malabarismos, sem perdas de tempo, numa correspondência maior entre o que se pensa, o que se diz e o que se escreve, pois a modernidade não se compagina com truques escusados de oratória. Não estou vaticinando o fim da literatura, da poesia, do texto científico, também estes alvo de grandes transformações em termos de mensagem e de suportes para a sua divulgação.
–   As línguas, quaisquer que sejam os seus percursos, devem servir a humanidade nas suas necessidades comunicacionais e nunca colocar os seres humanos em posição de subserviência face aos códigos linguísticos, inventados ao longo de séculos, sem qualquer relação intrínseca com a essência da condição humana. Se a língua fosse universalmente imposta, então, estaríamos todos, independentemente da raça, da geografia, da religião e do género, a falar o mesmo idioma. A necessidade de comunicar é universal, os mecanismos fisiológicos e mentais que permitem a comunicação acompanham a evolução da raça humana, mas a língua como sistema linguístico não existe em exclusividade. Assim se explica a existência de muitas línguas pelo mundo fora com léxicos e gramáticas diferentes.

Tendo como pano de fundo todas estas evidências, chegou a hora de questionarmos a insanidade que grassa entre nós no que diz respeito à vontade de obstaculizar o rumo que a aprovação do Acordo Ortográfico impôs no nosso país. Toda a gente envolvida na proposta e na aprovação do novo Acordo já percebeu que nem tudo foi bem conduzido e que nem tudo está bem na nova ortografia.

Uns defendem que as duplas grafias só complicam, as exceções à regra não têm qualquer lógica, o desrespeito pela etimologia das palavras é grosseiro, a situação de inferioridade assumida por Portugal, especialmente em relação ao Brasil, é uma prova de falta de orgulho nacional e patriotismo. Uns com mais razão, outros com menos, a verdade é que toda esta argumentação deixa a língua portuguesa em situação de grande fragilidade. E porquê?

Apesar de concordarmos que nem tudo está bem, o desrespeito maior que poderíamos cometer nesta altura seria o de obrigar as famílias, escolas, crianças, editoras e utentes da língua a mudarem a forma de escrever, passados oito anos após a entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico. Se foi um erro histórico a aprovação do mesmo, então, que haja coragem de retirar ensinamentos desta decisão política e aprender com ela.

Havendo necessidade de corrigir o que precisa de ser melhorado que se comece a preparar, em parceria com todos os povos de língua portuguesa, um novo processo de alteração a implementar daqui a uma dezena de anos. Importa recordar que o povo não pediu acordo algum, não exigiu a sua implementação e, agora, não deseja, certamente, retrocessos que descredibilizem o nosso país e a língua de Camões pelo mundo fora.

Os apoiantes da anulação do Acordo repetem que é urgente respeitar a etimologia das palavras, a origem da nossa língua. Só quem não entende da formação da língua portuguesa é que pode falar desta maneira. Este argumento é pura demagogia. As línguas são códigos linguísticos compostos por signos que compõem o léxico de um idioma em que os sons, a forma de escrever e o significado dado às palavras foram pura invenção, pura arbitrariedade, de seres humanos. Exceção seja feita às onomatopeias, palavras cuja representação escrita ou oral se aproximam dos sons produzidos pela natureza ou por algo que existe na realidade.

Para rebater o argumento da etimologia sagrada das palavras, basta recordar que a língua portuguesa falada ou escrita nos nossos dias já constituiu erro no passado.

Recordo igualmente a origem popular da língua portuguesa nas suas múltiplas interferências com outros idiomas e dialetos de tantos povos invasores e de tantos países que visitamos e que nos visitam diariamente no mundo real e no mundo virtual. Quando se fala da língua como algo sagrado é motivo para uma boa gargalhada.

Há quem do alto do seu trono insista em lembrar que o Português é uma língua nobre, faz parte do nosso ADN cultural, existencial. É uma língua românica com origem no latim, uma língua clássica com um historial de peso. Ninguém nega que o Português vem do latim, mas esquecem-se os doutos opositores ao Acordo que a língua portuguesa vem do latim popular, falado por invasores e plebeus que de gramática conheciam zero.

A nossa língua é, historicamente falando, a súmula de um conjunto vasto de influências linguísticas trazidas por largas dezenas de povos analfabetos que, na Península Ibérica, se instalaram. E não se pense que por estes motivos a língua lusa perde a sua importância. Devemos pensar, sim, que a nossa língua é orgulhosamente o código que permite a milhões de falantes comunicarem diariamente nos cinco continentes. Aqui reside o verdadeiro valor de qualquer idioma. Este é que é o milagre que a língua opera junto de quem a usa.

Em Portugal criou-se o mito que quem é contra os grupos que agora defendem a anulação do Acordo não é patriota e é um ignorante sobre a história da língua. E assim surgem uns bons milhares que opinam a favor da anulação, sem terem qualquer intenção de acrescentar o c ao facto, nem escrever com hífen a palavra fim de semana ou voltar a colocar o acento circunflexo em voo.

Em boa verdade, com c ou sem c, com hífen ou sem hífen, com acento ou sem acento o que mais importa é que as pessoas se entendam. Vem tanto mal ao mundo escrever ação em vez de acção, como registar farmácia em vez de pharmacia, como se usava em tempos idos.

E tal acontece porque o importante é a comunicação, que não dispensa regras, mas que deve ser cada vez mais simples, inteligível, sóbria em excepções, rica em palavras que servem os contextos e contribuem para o aprofundamento da justiça, da qualidade de vida, da paridade e da democracia.

Insistir que Portugal deve liderar os destinos da língua, porque esta é nossa, constitui um erro ainda maior. A língua portuguesa, a partir do momento em que é falada por mais de 250 milhões pelo mundo fora, é propriedade de todos os seus utentes. Portugal tem de pôr de lado complexos saloios de superioridade face aos descobrimentos, tanto mais que não é capaz de aceitar os efeitos da sua ação. Uma das consequências a assumir com frontalidade e desassombro é a expansão da língua junto de um conjunto vasto de povos que a tomaram como sua, gesto que devemos agradecer e acarinhar.

O Brasil tem, por diversas vezes, dado mostras de algum cansaço perante o argumento de que a língua é de Portugal e que ao nosso país cabe ditar o futuro da mesma. Em eventos internacionais de língua portuguesa fala-se à boca pequena que o Brasil se prepara, a passos largos, para implementar o Brasileiro como o idioma dos 205 milhões de brasileiros.

Já imaginaram o que será da histórica língua portuguesa se um dia destes acordarmos com a notícia que o Presidente do Brasil, à semelhança de D. Fernando II, resolveu escrever simbolicamente o seu testamento em Brasileiro, num acto propositado de rebeldia para marcar a independência linguística do povo irmão, dando origem a uma nova língua, a qual não encontrará qualquer obstáculo, por parte dos governos estrangeiros, no sentido da sua legitimação?

Nesse dia, Portugal, com os seus parcos dez milhões de habitantes, orgulhosamente dono exclusivo da tão amada língua portuguesa, saberá, pelos piores meios, o seu real valor no panorama linguístico mundial.

Aqui deixo estas chamadas de atenção para nos posicionarmos (1) com inteligência face à tentação de anular o Acordo Ortográfico aprovado e implementado pelo Governo de Portugal em 2009 e (2) com respeito e deferência junto de todos os povos que falam o idioma luso.

Espero, sinceramente, que os mais altos representantes do nosso país tenham a consciência da nossa falta de representatividade numérica (recordo que só a cidade de São Paulo tem uma população superior a Portugal inteiro) e o bom senso de não embarcar em aventuras e discursos que poderão pôr em risco a nossa credibilidade na senda linguística internacional, com custos elevadíssimos para Portugal e para os PALOPs, num futuro não muito longínquo.

A língua portuguesa só manterá o seu estatuto de idioma de expressão mundial enquanto todos os países lusófonos se mantiverem unidos e coesos em torno da sua expansão e dignificação.

 
Graça Castanho
Docente da Universidade dos Açores