TAMBÉM NÓS ÉRAMOS CRIANÇAS NEORREALISTAS

Realizou-se no passado fim de semana dias 8 e 9 de Novembro em Chaves a IV Festa de Literatura/ Flic , para esse evento no qual participamos elaboramos o seguinte texto.

O neorrealismo pareceu-me sempre um movimento do cinema. Na minha infância e juventude, habituei-me a relacionar este movimento com o grande ecrã e, sobretudo, com o cinema italiano que, por muitas razoes culturais e de emigração, no Chile, devido a colónia italiana aí instalada, esteve sempre presente nas salas de cinema, naquele tempo o nosso único contacto com a sétima arte.

À semelhança das personagens que víamos no ecrã e que deambulavam pela cidade, os nossos dias passavam-se na rua… Os jogos de infância alternavam com a escola, que também era neorrealista…; os bancos de madeira, mil vezes escritos e feridos por lâminas cortantes, que denunciavam os seus antigos hóspedes; os mapas enrolados em cima dos armários acumulando pó; a tabela  periódica de Dmitri Mendeleev, sempre em desuso, ainda cavalgando para os seus 100 e tal elementos que hoje ostenta…

Os alunos mesmo que uniformados, todos com igual farda, evidenciavam as diferenças sociais de onde provinham. Acresce que os professores acentuavam estas desigualdades: batiam nuns, noutros não…A rua era um paraíso… Perto da nossa casa estava a “Maestranza” dos caminhos-de-ferro, enorme oficina de reparações do ferrocarril. Aí atirávamos pedras aos vagões, imóveis ou em movimento; colocávamos pedras nos trilhos/carris, para ver como, depois, saltavam disparados com o impacto das rodas, ou deixávamos as caricas que com o peso dos comboios se transformavam em reluzentes discos, com os quais fabricávamos os mais diversos brinquedos.

A monotonia escola-rua era interrompida apenas nos dias das festas pátrias/nacionais – 17, 18 e 19 de setembro –, com a chegada do circo em temporadas ou também por aquilo em que o meu país é pródigo, os terramotos! Foi na rua que, certo dia, respondendo aos gritos de um miúdo, vimos um homem morto, deitado boca abaixo, cabelo desgrenhado, corpo molhado pela chuva ou orvalho…

Logo nos apercebemos de que não estava morto, apenas bêbedo. Com efeito, quando se mexeu e balbuciou meia dúzia de palavras, descobrimos que, na vida real, também se ressuscita, não apenas nos livros e no cinema. A presença de rostos infantis enchia os fotogramas, os cartazes e as revistas de cinema. Recordo Vittorio De Sica, com o seu Ladroes de bicicletas, filme italiano de 1948. Choramos com o protagonista, perante o infortúnio do seu destino que, não sendo trágico, nos abria as portas da descoberta de um novo género, o melodrama.

Mais tarde, foi a vez do Milagre em Milão, também de De Sica, filme de 1951, muito próximo da data do meu nascimento. Aqui, o protagonista também era um menino, nascido miraculosamente numa horta, no centro de uma couve. Este menino viria a transformar-se em Totó (nome curioso, atendendo ao seu significado em português…), um homem-menino, um menino grande, cheio de bondade. É a longa a história de Totó – Francesco Golisano – , um menino que, após perder a mãe, ainda na infância, vai morar num orfanato.

Já homem, e tendo de sair de sua antiga moradia, enfrenta as agruras do mundo com tudo aquilo que o caracteriza. Nome destacado desse movimento cinematográfico italiano, o realizador De Sica , como muitos desse período, nasceu e vivenciou as turbulências económicas e sociais de Itália, no início dos anos 1900.

Criador de uma obra relevantíssima no seu país, os seus filmes refletem esse passado e presente, expressando, de forma bem concisa, os princípios do movimento, tanto em tema como em narrativa, assim como suas origens teatrais, já que como outros realizadores começou no teatro.