“Primeira Pedra” é um coletivo profissional residente em Gaia fundado apenas há um ano, que procura destacar-se pelas intervenções artísticas, organização de eventos multidisciplinares e produção de espetáculos, ao mesmo tempo que fomenta a cidadania ativa através de eventos e experiências interdisciplinares nas diferentes áreas artísticas e sociais.
O teatro, a dança e a performance são os seus territórios privilegiados de criação e produção, a solo ou em parceria com outras instituições, funcionando também como plataforma de apoio à idealização, criação e promoção de projetos e intervenções nas diversas áreas artísticas, culturais e sociais, em diferentes faixas etárias.
Para conhecer melhor a “Primeira Pedra”, convidamos um dos seus principais impulsionadores, Pedro Miguel Dias. Licenciado em teatro e artes performativas e Mestre em encenação e produção, ele tem desenvolvido uma atividade regular em diversas unidades de produção teatral, ao mesmo tempo que exerce a função de professor de expressão dramática e orienta oficinas de teatro. Atualmente, o seu mais apaixonante desafio chama-se “Primeira Pedra”.
Que razões presidiram à criação da “Primeira Pedra”?
A “Primeira Pedra – Associação Cultural e Artística” surge da vontade de três atores, eu, a Inês Cardoso e o Ricardo Ribeiro, de navegarmos nas dramaturgias clássicas, outras contemporâneas, e criações originais, e pormos em cena desejos e ansiedades que nos acompanham desde os tempos de faculdade. Felizmente, temos tido bastante trabalho enquanto intérpretes com outras companhias e em projetos pontuais, seja em teatro ou em cinema, mas nunca tivemos o espaço e disponibilidade suficientes para “nos olharmos ao espelho”, de abordarmos aqueles textos que nos seguem há alguns anos, que vimos em cena ou que nos passaram pelas mãos enquanto estudantes. A proposta, curiosamente, veio da parte da Inês e do Ricardo que me lançaram o desafio de encenar o texto “Loucos por amor” de Sam Shepard, e que foi algo que me apanhou de surpresa, num primeiro momento porque nunca tinha comentado com eles que adorava este texto e em segundo lugar porque nunca tínhamos falado sobre a possibilidade de trabalharmos os três num projeto exclusivamente nosso. Coincidências felizes e que nos motivam todos os dias, pois há uma simbiose muito interessante entre três pessoas de origens culturais e escolas diferentes. Depois disso, por brincadeira, falámos sobre a criação de uma estrutura que suportasse a nossa ideia, e aí surgiu a “Primeira Pedra”.
O texto de Sam Shepard acaba, portanto, por espoletar tudo…
Começámos depois a pensar que não seria suficiente ficarmos pelo texto do Shepard, o que nos levou a pensar numa base dramatúrgica assente numa ideia: as relações amorosas e a comunicação nos nossos dias. E pensámos então em 6 espetáculos distintos, três monólogos e três espetáculos [com mais atores], que contamos estrear até 2022, e que será a nossa primeira “bi trilogia”. Eu, a Inês e o Ricardo iremos interpretar um dos três monólogos, iniciado pelo Ricardo com a peça “Diário de um louco” de Nicolai Gogol, estreado em 2018 na Sala de Bolso da Assédio Teatro, no Porto. Quanto aos outros dois monólogos e os restantes espetáculos, ainda é muito cedo para os poder desvendar.
Mas é possível fazer um balanço deste primeiro ano de atividade…
Fazendo um balanço deste primeiro ano, o que podemos dizer é que tem sido bastante positivo, pois já apresentámos um dos monólogos, com imenso público e num apoio tremendo por parte da Assédio Teatro e da sua Sala de Bolso e preparamo-nos para estrear o nosso primeiro grande espetáculo [“Loucos por amor”], com residências artísticas na ESAP [Escola Superior Artística do Porto], Companhia Instável, Espaço do Tempo, Tuna Musical de Santa Marinha e BlackBox Earlymade, que se tornaram também nossos parceiros na ajuda logística e de criação.
Para quando se prevê a estreia do espetáculo “Loucos por amor” e em que palco?
A estreia está marcada para o próximo mês de outubro no Armazém 22, em Vila Nova de Gaia. O texto do Shepard é belíssimo e de uma densidade angustiante. Estamos perante uma história de amor impossível entre duas pessoas que tanto se amam como se odeiam na mesma medida. Nas primeiras leituras em conjunto dentro da “Primeira Pedra” alguém terá comentado: “isto é quase a versão americana de Os Maias”… mas todo aquele deserto e aquele motel, o que Augé determinava como “não-lugar”, deixou-me a pensar em ficção cientifica, no futuro e em toda a tecnologia que nos rodeia, e como é que nos dias que correm nós ousamos sequer dizer a alguém que a amamos através de um telemóvel, e como é que nos permitimos não o dizer em frente a alguém… Perdemos a magia, a pureza do amor, perdemos o toque. Vi e acabei por rever muitos filmes de ficção científica durante o processo de criação deste espetáculo, tentando perceber como é que o amor e as relações poderiam ser no futuro. Qual seria a visão do cinema em relação a isto do amor versus tecnologia. E assim, o nosso espetáculo “Loucos por amor” acaba por ter um posicionamento distópico, longínquo e algo abstrato, cinematográfico por vezes, mas que propõe o tempo e a reflexão necessária sobre o amor e as relações num futuro, talvez não muito distante.
Logo após a estreia de “Loucos por amor”, a “Primeira Pedra” volta a apresentar-se em Gaia. O que se pode adiantar sobre isso?
Apresentamo-nos em Gaia, no Festival de Teatro José Guimarães, nos dias 8 e 9 de novembro, na Tuna Musical de Santa Marinha, e estamos muito honrados pelo convite. Iremos apresentar o espetáculo “Diário de um louco”, o monólogo de Nicolai Gogol interpretado pelo Ricardo Ribeiro. Imaginámos este espetáculo num cenário muito intimista, numa espécie de quarto de dormir/confessionário do Aksenti Ivanovitch, que morre de amores pela filha do diretor da empresa onde trabalha, mas que tem uma certa dificuldade em expressar o seu amor, até pela posição social que ocupa. Mas também colocámos a hipótese de isto tudo acontecer na sua cabeça, numa espécie de hospício. São várias as possibilidades de interpretação, num trabalho intenso de corpo e texto, por parte de um ator maravilhoso que é o Ricardo. Foi um enorme desafio e grande prazer dirigi-lo.
Enquanto companhia emergente, quais são as maiores dificuldades com que a “Primeira Pedra” se tem deparado?
A maior dificuldade com que se depara uma companhia acabada de nascer é com o “reconhecimento” e o posicionamento na paisagem artística. Isto porque é difícil chegar aos programadores, às salas, às instituições, pois nunca ninguém ouviu falar de nós. E mesmo que individualmente tenhamos colaborado com algumas entidades de peso, é difícil por vezes “ouvirem-nos” sobre o que queremos fazer em conjunto. Lembra-me muitas vezes aqueles anúncios que procuram recém-licenciados com 20 anos de experiência. Acho que fazem falta mostras para companhias emergentes e que até mesmo os festivais já existentes deviam procurar o que por aí se anda a fazer. Consigo indicar cinco companhias de teatro com trabalho muito válido nos últimos anos e que ainda não tiveram espaço nem apoio institucional. Bom, mas na verdade a “Primeira Pedra”, com perto de um ano de existência, não se pode queixar muito. Termos portas abertas na Sala de Bolso da Assédio Teatro e no Armazém 22, para apresentações pontuais dos nossos espetáculos, e residências artísticas garantidas no Espaço do Tempo, na ESAP, na Companhia Instável e na Tuna Musical de Santa Marinha são exemplo disso mesmo: e isso resulta de muito querer e trabalho válido.
Mas será que o trabalho válido e o muito querer serão suficientes? Sem apoios e incentivos, a produção e o desenvolvimento artístico serão sustentáveis?
Temos visto nos últimos anos que o bom trabalho e querer nem sempre são suficientes. Caso disso é a retirada dos apoios a algumas companhias e uma centralização no que toca a apoios, prémios e crítica teatral. Não querendo ser injusto com nenhuma entidade artística, vejo que as companhias, sejam de dança, teatro ou de qualquer outra disciplina, que se encontrem no interior, norte ou sul do país, têm sido esquecidas. É raro ver uma crítica num jornal de um espetáculo que acontece no Porto, Braga, Vila Real, Faro, Évora. Os “melhores espetáculos do ano” são quase todos os que acontecem em Lisboa. Ao ser transversal a vários setores da sociedade, as atividades culturais também sofrem com isso. Também defendo um maior equilíbrio na distribuição dos apoios, obviamente tendo em conta os projetos e a relevância que têm no meio artístico, mas principalmente na intervenção que as entidades culturais têm junto da comunidade, com os seus projetos de serviço educativo. Sem apoios e incentivos fica praticamente impossível trabalhar no setor da cultura. Tendo o público como única fonte de rendimento, a nossa atividade passa a ser uma utopia.