A INGRATA GRATIDÃO

Nos dias que correm as palavras de gratidão andam de boca em boca. Não são de ninguém mas de quase toda a gente. Infelizmente, muitas vezes é necessário se passar por épocas ou situações quase idênticas a esta, que atravessamos, para se dar o devido valor às coisas e às pessoas.

Mas isso não é nada novo, porque estes procedimentos fazem parte da humana filosofia, e a razão desta chata crónica prende-se ao facto de nunca na minha vida ter ouvido dizer tantos “obrigados” a tudo e a todos. Sim, estamos mais ou menos aflitos e sabemos apreciar gestos, comportamentos e a beleza do mundo em que vivemos, talvez por termos aquele tempo que em situação normal não tínhamos, ou era escasso. Muitos consideram esta pandemia uma forma de purificação em vários aspectos.

Eis que, por um lado diminuímos a poluição nestes últimos três meses. Agora o nosso planeta, visto do espaço, apresenta-se mais colorido. Por outro, temos vivido mais no seio familiar. Os proveitos que se pode tirar disso são numerosos, e por estarmos encarcerados olhamos a liberdade como a mais bela graça que se pode conseguir na vida. Por este fio se acrescentaria uma lista longa de teias e tramas que fariam panos para mangas e máscaras respiratórias. Pelo dito e pelo que ficou por dizer estamos gratos.

Obrigado, meu Deus, por mais este dia de vida. Obrigado aos nossos governantes por tentarem o seu melhor com as suas resoluções nesta guerra contra o inimigo invisível. Obrigado a todos os homens, e mulheres, que voluntariamente se recolheram, e aos outros que a isso foram sujeitos, afim de combater a propagação do vírus. Obrigado a todas as pessoas que não deixaram de trabalhar para que não nos falte os bens de primeira necessidade. Obrigado às pessoas que têm de trabalhar mesmo fechadas em casa, dividindo o dever com os afazeres do lar. Obrigado aos professores, porque bem sabemos que não é tarefa fácil lidar com alunos pessoalmente, muito menos virtualmente. Obrigado a toda a enorme mancha de voluntariado que se juntou à mancha do dever. Não tem tido mãos a medir e encontra-se nas primeiras fileiras das batalhas, fazendo das suas armas mais uso do que as suas utilidades permitem.

Mas há também a gente ingrata. Aquela raça com quem estamos habituados a lidar diariamente. Aquela do indivíduo que só está bem aonde fisicamente não se encontra. Refila este porque tem de ficar fechado em casa, refila aquele porque tem de ir trabalhar. Uma chatice a situação de casal dividido, quando um tem de ir à luta deixando o outro na caserna. Mas tem de ser assim. Os soldados são mais precisos em tempo de guerra do que em tempo de paz, e para as guerras se tornaram soldados. Portanto, enfermeira, não lamentes o teu estado. Doutor, agora a comunidade precisa de ti mais do que nunca. Muito obrigado pelos vossos serviços! Não custa nada um “obrigado”. Aqui, na América, em qualquer evento que em tempo normal junta mais de dez pessoas, é costume perguntar se ali há algum membro das forças armadas, em qualquer dos estados, activo ou passivo. Se o “sim” vem como resposta, a palavra é coroada com esta frase: “Thank You For Your Service!”

 

Num destes dias, no Wall-Mart, meio mascarado por causa do vírus, fiquei surpreendido quando alguém me chamou pelo nome. Voltei-me. Era a Virgínia da Bretanha. Sim, aquela senhora que quase me deu dois sopapos, há uns anos atrás, por eu ter oferecido ao marido meia dúzia de livros, com os quais ele perdeu grandes partes de alguns dias, fazendo com que ela, ao chegar a casa, do trabalho, encontrava tudo por fazer. Desta vez a reação foi diferente. Dirigiu-se a mim de braços abertos, fazendo com que eu lhe lembrasse dos perigos de contágio e da regra dos seis pés de distânciamento. Parou, não me tocou, recuou. Prometeu-me então um grande abraço depois da tempestade. O marido já morreu. Lamentei. Depois perguntou-me se eu tinha algum livro que não me fizesse falta. É que, estava já farta de fazer rendas e bordados, massas, bolos e biscoitos, e enredos no Facebook. Que sim, respondi, e disse-lhe que tinha alguns no carro. Fui buscá-los e entreguei-lhe. Um “muito obrigado” e um “Deus te pague“. Sem dúvida o melhor gesto de gratidão não foram as palavras, mas simplesmente voltar a ver aquele sorriso saudável na cara quarentona daquela mulher de setenta anos de idade. São estes pequenos gestos, e momentos, capazes de mudar o rumo de um dia, e muitas vezes o de uma semana.

Resta-me mais um gesto de gratidão. Aqui vai:

Muito obrigado ao leitor, que não tendo outra coisa para fazer, se pôs a ler esta crónica.

 

 

Muito obrigado, meu Deus

Por mais um dia que nos deste.

Dai perdão aos filhos teus,

E terminai esta “peste”.

 

Este vírus do Corona

Quer acabar com a gente,

E a ciência, sabichona

Nem lhe sabe fazer frente.

 

Meu Senhor, com tua ajuda

Nós vamos vencer a guerra

Contra esta invasão aguda

Que sofreu a nossa Terra.