LOURDES EM LOWELL

Ali o rio encontra outro leito, desnivelado em cerca de trinta pés, onde forma uma maravilhosa cascata que tem por nome Pawtucket Falls. Na parte mais alta, sendo uma represa natural antes da intervenção humana, os índios da região faziam fartas apanhas de peixe com a maior facilidade.

Com a chegada dos europeus àquela área, e depois de estudadas as condições existentes começou-se a construir canais, para se fazer da água fontes de energia. As Cataratas de Pawtucket estendem-se por cerca de uma milha, acabando por se desvanecer quando o rio Merrimack se junta ao Concord, que por ser um caudal mais pequeno não desmerece valor, porque dele também se tirou antigamente alguns anéis de água para energia e outros fins. Assim se criou um lugar destinado a exploração industrial, de onde floriu vantajosamente a indústria têxtil.

Na década de 1820 nasceu a cidade de Lowell, em Massachusetts, que prosperando chegou aos anos de 1850 tendo o maior parque industrial dos Estados Unidos. As suas fábricas teceram muito algodão que vinha do Sul, e há quem afirme que em 1860, um ano antes do início da guerra civil norte-americana, havia em Lowell mais fusos do que em todos os onze estados que viriam a formar a Confederação (e nós, ribeiragrandenses, é que ficámos com a alcunha de fuseiros). A cidade continuou a prosperar e a atrair  imigrantes, que eram, naquela altura, os escravos livres, escravos por vontade própria. Mas isso é outro assunto. Vamos em frente. Vieram os  irlandeses, os alemães, e depois aconteceram as invasões francesas. Digamos: franceses de Quebéc, ou franco-canadianos, em grandes fluxos, principalmente durante as décadas de 1870 e 1880. Os portugueses vieram para Lowell mais tarde, verificando-se a primeira grande vaga entre 1890 e 1924. Em 1900 o número de imigrantes vivendo na cidade de Lowell era metade da sua população. A outra metade, claro, seria o número de indivíduos nascidos nos Estados Unidos. Na primeira década do século vinte, entre as várias etnias fixadas na cidade, em bairros separados, como acontecia em outras localidades, a franco-canadiana liderava em cerca de trinta por cento a conta arredondada de cem mil pessoas, porque antes da primeira guerra mundial Lowell tinha cento e dez mil habitantes.

Em 1868 nesta cidade foi criada a primeira paróquia franco-americana da arquidiocese de Boston, dedicada a São João Batista. Mais tarde apareceram outras, e mencionamos apenas mais duas, para mostrar a força de patriotismo do imigrante “Vive la France”: Notre Dame de Lourdes, criada em 1908 e Saint Jeanne d’Arc, em 1922. São João Batista para além de ter sido a primeira, sempre se mostrou a mais dinâmica, com maior poder económico, e com o constante auxílio das Freiras Cinzentas de Quebéc.

Na esquina das ruas Pawtucket e School encontra-se um edifício datado de 1875, que fora erguido para o industrial Frederic Ayer, que nele viveu por cerca de 24 anos. Por curiosidade ficámos a saber que era pobre, e em Lowell enriqueceu com a manufactura de medicamentos. Em 1899 Frederic mudou-se com a sua família para Boston e a mansão ficou desabitada até 1908, altura em que foi comprada por um dólar, segundo algumas narrativas do seu historial, pelos padres Joseph Campeau, Joseph Lefebvre, e Leon Lamothe, três padres católicos da paróquia de São João Baptista de Lowell, missionários da Ordem dos Oblatos de Maria Imaculada, para servir de orfanato, o qual ali funcionou por largos anos com o nome de Franco-American Orphanage, a ser operado pelas Irmãs da Caridade de Quebéc, conhecidas também por: Soeurs Grises, Irmãs Cinzentas ou Grey Nuns. Em Abril do ano seguinte os três padres passaram a mansão a uma corporação recentemente formada por membros da comunidade canadiana-francesa de Lowell, chamada L’Orphelinat Franco-Americain.

Por coincidência o ano da compra do orfanato foi o mesmo em nasceu a nova paróquia de Notre Dame de Lourdes. Lá aparece outra vez o Padre Joseph Campeau metido na aquisição de uma velha Igreja Batista, pelo valor de vinte e seis mil dólares. Curioso não deixa de ser o facto de que em 1908 comemorava-se o quinquagésimo aniversário das aparições da Virgem Maria a Bernadette Soubirous, numa gruta de Lourdes, em França. Para além do nascimento da nova paróquia, as freiras do orfanato, associando-se à efeméride, resolveram decorar o quintal, ou jardim, com uma gruta replicada de Lourdes, e com um carreiro de meditação “a caminho do Calvário”, com as estações da Via-Sacra, mandando vir de França algumas imagens, e colocando em cima do monte da gruta das aparições uma enorme cruz. O jardim do orfanato passou a ser conhecido pelo nome de Grotto, que significa Gruta. As estações da Via-Sacra decorariam então o carreiro de quem se encaminhasse em direcção à cruz, no cimo daquela montanha rochosa. Ficou o Grotto concluído em 1911, e o trilho da Via-Sacra um ano depois. A partir de então passou a ser local de oração e sacrifícios por parte da população de Lowell, para além da comunidade francesa.

Também em 1912, nos terrenos do prédio foi adicionado um edifício de quatro andares, de tijolo, afim de dar resposta ao crescimento e às necessidades que a instituição enfrentava, passando dali a pouco tempo a servir de escola.  Em 1964, os estatutos da organização foram alterados, e o seu nome passou a ser Franco American School of Lowell Inc.

Nos finais do século XX ainda mantinha anualmente um número de alunos superior a 300, com listas de espera. Desde a fundação, e ao longo de um século, o conjunto de orfanato e escola sempre foi operado pelas freiras de Québec, as ditas Irmãs Cinzentas.

Em 2008 a organização ao comemorar o seu centenário regizijou-se de optimismo e tudo parecia estar bem. Porém, oito anos depois, em  fevereiro de 2016, o Conselho de Administração da Escola Franco-Americana anunciou que aquele seria o último ano lectivo naquela instituição. A diminuição das matrículas e os elevados custos para manter o ensino ali a funcionar não justificavam as suas portas abertas. De facto, muitas escolas católicas enfrentaram as mesmas dificuldades em meados da segunda década deste século e tiveram que encerrar definitivamente. A 8 de Junho de 2016 a escola realizou a cerimónia do “Adeus a Franco” e dois dias depois teve lugar a formatura final.

Em Dezembro do mesmo ano já havia comprador para a propriedade, e no ano seguinte a venda foi efectuada pela quantia de 2,3 milhões de dólares, com a condição de preservar o Grotto e a Via-Sacra, de modo a ambos ter acesso aberto ao público, visto tratar-se de duas obras de inestimável valor para os “Lowellenses” e não só. Foram dois pilares de vida religiosa na cidade. Quando a escola anunciou o seu encerramento, os moradores mostraram-se  preocupados com o possível desaparecimento das 14 estações da cruz e da gruta, estando dispostos a tentar tudo para que isso não acontecesse.

Presentemente, o edifício que servia de escola está transformado em repartições de escritórios e habitação, e a mansão está conservada na sua traça original. Quanto ao Grotto e às estações, foram restaurados e re-localizados. Encontram-se ao lado do canal, num extremo do parque de estacionamento. As estações da Via-Sacra, dispostas na traseira do Grotto, com as suas legendas em francês estão em ordem, estendendo-se ao longo de um carreiro que o circunda. Em ambos os lados da montanha de pedra há escadaria de acesso ao Calvário, que é no topo, onde se ergue uma enorme cruz, que é visível além do rio Merrimack, suportando uma formosa escultura de Jesus Cristo, com dimensões humanas normais. Diante da imagem de Deus há um assento de mármore negro para alívio de quem possa ali passar mais tempo com o Senhor, no caso de se sentir cansado de estar em pé. No centro da base da montanha há uma concavidade que alberga um altar, e um espaço de velas que os fiéis podem acender por promessas, ou quando ali fazem suas preces. Um pouco à direita, acima da capela é que se situa a gruta de Lourdes, contendo a formosa imagem, de boa dimensão, da Virgem Nossa Senhora. Digamos que todo este conjunto é encantador. Só lamentamos o facto de Jesus estar sozinho no cimo da montanha, sem a companhia dos malfeitores que com ele foram crucificados, que é o retrato tradicional que temos do Calvário. Todo este espaço está sob vigilância 24 horas por dia.

O grande poeta e escritor nascido nesta cidade, Jean-Louis Lebris de Kérouac (12/3/1922 – 21/10/1969), mais conhecido por Jack Kerouac, um dos líderes do movimento literário da Geração Beat, em quase todas as suas obras colocou um pouco de Lowell. No seu livro Doctor Sax, traduzido em português para o Brasil, com o título “Os Vagabundos do Dharma” classificou o Grotto e tudo a ele ligado com estas palavras: “Tudo o que havia para lembrar da Morte, e nada em louvor da vida.” Opiniões e pontos de vista. O que temos a dizer é que o Grotto de Lowell é um espaço santo porque ali milhares de pessoas oraram e continuam a orar. Deve ser respeitado, digno de uma visita, e sobreviverá por mais um século se donativos tiver para a sua manutenção. O moral desta “estória” é saber preservar os legados dos nossos antepassados, mesmo com mudanças necessárias, e passá-los às gerações futuras. Haja saúde!