Nada mais gratificante neste dia que ir ao teatro e assistir a um espetáculo inspirado na obra de Camões, Babel, a última encenação de Nuno Cardoso para o TNSJ. Babel é uma proposta que se insere num género de teatro comunitário; no palco três actores profissionais partilham no palco experiências de vida e de personas com um grupo de 15 actores não-profissionais. “Estamos num terminal de autocarros. Lugar de fim ou de princípio das possibilidades? Neste lugar de espera (e não é também isso o teatro?), dezasseis pessoas olham-se. Apresentam-se tanto a si próprias como às suas personagens, contam histórias sobre si, sobre o estado do (seu) mundo, enquanto a hora de partida não chega. Para onde vão, o que esperam? Nuno Cardoso reúne um elenco diverso, composto por catorze pessoas da comunidade, dois atores e seis jovens músicos. Babel parte de Os Lusíadas enquanto parábola, inspirando-se na estrutura do texto matricial de Camões para construir um percurso pela Cidade e pela portugalidade em várias estações. Que lusíadas somos, hoje? Como olhamos o outro? Babel é uma viagem, simbólica e inquisitiva, pela língua e pela identidade portuguesas, onde se questionam as nossas fraturas, os nossos Velhos do Restelo, os nossos Adamastores. Mas onde também se projeta uma ideia de futuro, diversidade e pertença, de que Babel é afinal um espelho.” (da folha de sala do espectáculo TNSJ)
Se as referências bíblicas à Torre de Babel podem estar presentes, não deixa de ser interessante notar, como a sociedade portuguesa e portuense, mudou e evoluiu nestes últimos 50 anos, a presença de novos grupos e de novas nacionalidades são o fruto herdado de uma aventura que se iniciou com os descobrimentos, e para o bem ou para o mal, a sociedade actual é filha dessa aventura! Não é difícil encontrar em Camões e na sua vasta obra, a inspiração literária na qual este espetáculo se apoia, referências; à gloria de mandar! à vã cobiça, desta vaidade que chamamos fama! … Estavas, linda Inês, posta em sossego, …
A realidade, desta Babel, está tão próxima de nós e do edifício do TNSJ que estas cercanias não podem ser evitadas. Nas traseiras – rua do Cimo da Vila, Rua do Loureiro – aí estão as comunidades às quais o espetáculo também faz menção e referências!
A ação teatral se desenvolve em troca de diálogos entre as personagens, há momentos corais, com o hino nacional em acordes dissonantes, até lograr no fim a harmonia correta…também há momentos confessionais, quando os actores trocam opinião sobre as sua personagens e momentos de elogio e de amor aos seres queridos, alguns deles na plateia do teatro. Foi muito reconfortante para mim, voltar a ver a actriz Rosa Quiroga no palco do Carlos Alberto, actriz que muito deu na sua carreira ao teatro do Porto, e a sentida homenagem que ela prestou no seu depoimento ao Paulo Eduardo Carvalho, jovem homem de teatro que nos deixou tão cedo!
Se a Babel (*) bíblica foi um castigo divino (?), podemos encarar este momento iniciático na construção de civilizações que nas suas línguas construíram e povoaram territórios distintos que os diferenciaram.
Luminoso momento do discurso de Lídia Jorge na cerimónia de 10 de Junho; “O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou” … “Sagres passou para a História e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo. Mas existe uma outra perspetiva – e hoje em dia o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. Lagos oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.”
Sombra, momentos sombrios; os insultos ao sheik David Munir na cerimónia de homenagem aos combatentes do Ultramar, no mesmo dia no qual o actor Adérito Lopes foi alvo de uma agressão violenta em Lisboa, momentos antes de subir ao palco na peça “Amor é fogo que arde sem se ver”. O incidente ocorreu cerca de uma hora antes do início do espetáculo, na zona do Largo do Santos, junto à sala Cinearte, onde decorreria a representação.
Não posso deixar de lembrar a perseguição que as ditaduras latino-americanas exerceram contra os actores no Chile, Uruguai e Argentina, especificamente a triple AAA, (**), lamenta-se que isto aconteça numa democracia.
No momento que escrevo tenho conhecimento da morte do padre Martins Junior, A Igreja suspendeu-o durante 42 anos, mas o povo do Machico esteve sempre com ele. O Bloco da Madeira lembra que “escolheu a palavra livre como forma de resistência e solidariedade”, sendo “um nome marcante na construção de uma consciência social crítica e atenta na Madeira” e “nunca se deixando domesticar pelas conveniências”. (Morreu o padre Martins Júnior | Esquerda) – Cruzámo-nos muitas vezes nos meus cinco anos na Madeira, não sendo íntimos amigos, sempre tive por ele uma profunda simpatia e admiração pela sua coragem e pela sua obra junto dos mais desfavorecidos da Ilha. Com certeza a hipocrisia governante lhe prestará falsas homenagens!
Notas: (*) A narrativa da Torre de Babel é o mito fundador que explica a razão de existirem diferentes línguas.De acordo com a narrativa, em Gênesis 11:1–9, a humanidade unida nas gerações seguintes ao Dilúvio, falando uma única língua e migrando para o leste, chega à terra de Sinar. Lá, eles concordam em construir uma cidade e uma torre alta o suficiente para alcançar o céu. Deus, observando a cidade e a torre, confunde sua fala para que não se entendam, e os espalha pelo mundo. (wikipedia)
(**) Alianza Anticomunista Argentina (AAA), também conhecida como triple A, operou nos anos de 1973-1976, foi una organização terrorista parapolicial.