UM CORPO DESNUDADO DE HOMEM DEU À COSTA NA AFURADA

Enquanto aguardamos o final do prazo para a receção da pontuação atribuída ao conto nono do concurso “Um Caso Policial em Gaia”, que nos permitirá publicar na próxima edição da nossa secção a sua classificação atualizada, submetemos hoje à avaliação dos nossos leitores a primeira parte de um original do confrade Bernie Leceiro. Trata-se da ficção do caso de um achado macabro que traz à memória dos pescadores da foz do Douro uma antiga lenda associada à “Ilha do Frade”, a partir do qual o autor faz-nos mergulhar no século XVI e nos primórdios do Convento franciscano de Santo António da Piedade que existia em Gaia, bem em frente a Lordelo do Ouro no Porto. A ação passa-se em junho de 2013, ano em que o treinador Jorge Jesus, então na sua primeira passagem pelo Sport Lisboa e Benfica, se ajoelhou ao minuto 92 em pleno estádio do Dragão, quando o brasileiro Kelvin fez abanar as redes da baliza à guarda do seu conterrâneo Artur. Em São Pedro da Afurada ainda se festejava mais um título de campeão e “o presidente da Junta de freguesia tinha prometido mil e noventa e duas rebentações sobre as águas do Douro num espetáculo pirotécnico que em nada ficaria a dever ao recente e monumental fogo de artificio das festas de S. João, tudo acompanhado por milhares de watts de luz e som, que marcariam para sempre o último mandato de Claudino Marrazes à frente da autarquia da Afurada” e… mais um título de campeão nacional do seu FCP. Mas eis que um corpo denudado de homem deu à costa.

 

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 11  

“A Ilha do Frade”, de Bernie Leceiro

I – Parte

O dia começava a raiar e a névoa erguia-se das águas do Douro. A ilha ficou bem visível e à vista dos primeiros transeuntes que saiam de casa naquela manhã de junho junto à Ribeira da Granja. Um corpo desnudado de homem repousava imóvel nas areias brancas da pequena ilha, habitat selvagem de aves bem em frente à ribeirinha vila da Afurada que horas antes assistira a mais um glorioso fogo de artificio em honra do seu padroeiro S. Pedro.

Rapidamente, na margem do Douro, se juntou uma pequena multidão de curiosos que assistiram à chegada das autoridades. Entre os mais velhos, alguns lobos do mar de Lordelo, recordava-se entre risos, pese o macabro achado, uma antiga lenda associada à “Ilha do Frade”.

Em tempos idos do século XVI, existia em Gaia um convento franciscano, o de Santo António do Vale da Piedade, bem em frente a Lordelo do Ouro no Porto. Apesar dos frades serem praticamente auto-suficientes fruto do árduo trabalho diário nas hortas, faltava-lhes o leite, que lhes era oferecido por um próspero agricultor de Lordelo. Assim todos os dias de manhã enviava-lhes leite acabado de ordenhar através de uma jovem e bela moça, que num bote agilmente cruzava as águas do Douro. Rapidamente o freire que diariamente se ofereceu para receber o leite se enamorou da bela e roliça leiteira e perante a insistência do clérigo, combinaram encontro amoroso para uma das próximas manhãs de preferência ao abrigo de cerrado nevoeiro que encobriria a travessia de ambos no pequeno caíco até à outra margem do rio e procurassem um refugio secreto no lado de Lordelo. Certa madrugada um malicioso piscar de olhos da rapariga foi o suficiente para saber que havia chegado o dia. A coberto de densa neblina desceram encosta abaixo e entraram no bote. A bela leiteira manobrou com agilidade a embarcação por entre o denso nevoeiro até terra firme. Saltaram para terra e de imediato o frade se livrou do hábito que lhe cobria o corpo. Quando se preparava para abraçar a jovem rapariga, esta ouviu um ruido e sugeriu que alguém se aproximava, sorrateira entrou no nevoeiro para melhor perceber a origem do ruido que ouvira e sem que o inocente frade se apercebesse, levou consigo a roupa dele.

Afinal não tinham atracado em terra firme. O bote fora conduzido meticulosamente para a pequena ilhota, o mesmo bote no qual escapou deixando sozinho e nu, o atrevido frade. Na manhã seguinte quando o sol raiou fácil será imaginar a galhofa com que o frade foi brindado pela população local, entretanto convocada pela jovem rapariga, que resolveu dar uma lição ao atrevido frade que iria popularmente batizar aquele banco de areia bem perto da foz do rio Douro onde agora misteriosamente aparecia novo corpo nu.

O senhor presidente da junta de freguesia tinha prometido mil e noventa e duas rebentações sobre as águas do Douro num espetáculo pirotécnico que em nada ficaria a dever ao recente e monumental fogo de artificio das festas de S. João, tudo acompanhado por milhares de watts de luz e som, que marcariam para sempre o último mandato de Claudino Marrazes à frente da autarquia da Afurada. Desde o dia 11 de maio passado, o número 92 passou a ser mágico para as gentes da Afurada, afinal marcaria para sempre o minuto em que um jogador brasileiro de nome Kelvin ajoelhou Jesus em pleno estádio do Dragão e deu mais um título ao FC Porto. Naquela magnifica noite ninguém se deu ao trabalho de confirmar a quantidade exata de rebentações de foguetes pelo que a todos escapou o estrondo extra que excedeu o prometido.

Horas antes o engenheiro Passos de Ferreira, empreendedor da zona da Mafamude, que ultimamente se tinha dedicado ao negócio do alojamento local e à compra indiscriminada de casas em toda a orla costeira desde S. Félix da Marinha a S. Pedro da Afurada, convertendo antigas habitações de pescadores em modernos Airbnb para os turistas que desembarcam diariamente no Aeroporto Francisco Sá Carneiro. Tentava agora a compra de mais uma interessante habitação na primeira linha do rio com uma fabulosa vista para a zona de Miragaia no Porto, cujo dono era Vitorino Magalhães. Vitorino um solteiro quarentão, filho e neto de pescadores, mas com uma anormal aversão ao mar, dedicava-se à nobre tarefa do biscate, do nada fazer e de outras atividades menos legais. Valia-lhe a solidariedade da comunidade piscatória que por respeito ao seu pai e avô, lhe forneciam diariamente o peixe necessário para o seu sustento, A casa que herdara do pai, falecido nas lides da pesca, era o único bem de que dispunha, acumulando várias dividas, fruto dos seus manhosos negócios.

(continua na próxima edição)