UM FINAL SURPRENDENTE NO ÚLTIMO CASO DO INSP. CARREIRA

O conto vencedor do concurso “Um Caso Policial em Gaia”, que tem animado as últimas edições da nossa secção, chega hoje ao fim. O inspetor Carreira, o seu protagonista, depois de ter perseguido e dominado a quase totalidade dos membros de uma perigosa rede de criminosos que operava em Vila Nova de Gaia, desapareceu misteriosamente.

Os seus colegas da Judiciária suspeitam que terá sido ele o autor da morte dos dois meliantes que haviam escapado à prisão, porque os dados laboratoriais não deixavam margem para qualquer dúvida: fora a sua arma que disparara os tiros mortais encontrados nos dois corpos. Iniciou-se, por isso, uma autêntica caça ao homem. Era necessário que a PJ chegasse ao inspetor Carreira antes de qualquer outra força policial ou de um possível cúmplice dos dois criminosos abatidos, eventualmente ainda em liberdade. Mas será que os seus colegas conseguem chegar a tempo? É o que vamos ficar a saber.

 

Sol de Inverno, de Luís Pessoa
VI (última) – Parte

Já a tarde ia alta quando um taxista revelou que transportou Carreira até à Estação de Campanhã. Acabou por dizer que na altura notou um cheiro intenso a pólvora, que ele bem identificou porque é caçador, mas nem sequer levantou qualquer suspeita. Identificou a fotografia de Carreira.

Imediatamente a busca passou pelos horários dos comboios. Provavelmente Carreira tomou um comboio para Lisboa. O Chefe acabou por ligar para um seu colega da capital, pondo-o ao corrente e pedindo-lhe que verificasse, a título não oficial, se Carreira estaria por lá.

– Farinha, temos um telefonema de um taberneiro da Ajuda, chamado “Ti’Stalo”, ou coisa que o valha, que diz que o Carreira passou lá pelo estabelecimento dele e que estava muito esquisito…
– Ó Barroso, o Carreira está para o Norte…
– Parece que não. O taberneiro diz que o conhece há montes de anos e é cliente dele…

Uma chamada rápida ao Chefe e este a dar-lhe ordem para seguir imediatamente para lá, porque havia recebido um alerta dos colegas do Porto, para o deterem.

O carro parou a escassos metros da tasca e dele saíram três homens, que se dirigiram para dentro do obscuro estabelecimento. Alguns pares de olhos elevaram-se dos copos cuidadosamente tapados com a famosa bolacha de água e sal e fixaram-se nos visitantes. O taberneiro rodeou o balcão e veio de imediato:

– Os senhores da Polícia?
– Somos.
– Ainda bem. Estou muito preocupado. O senhor Carreira sempre foi meu cliente e nunca o vi assim. Vinha beber um ou dois copos, de vez em quando, e ficava algum tempo a saborear. Hoje não! Entrou e bebeu uma meia dúzia num instante e saiu sem conversa!
– Foi para casa? – perguntou Farinha.
– Sim, senhor, aquela vivenda, ali em cima. Mas há muito tempo que não vejo lá movimento, nem ele, nem a mulher, nem mesmo os filhos. Julgo que não estão cá, às vezes vão temporadas para fora… Mas hoje vi o senhor Carreira entrar, há um bom bocado…
– Fique aqui!… – ordenou ao tasqueiro – e não deixe ninguém sair, ok?
– Está bem, senhor inspetor.
– Vamos lá! – ordenou ao Barroso e ao Silva, que deitaram a mão à respetiva arma, instintivamente, como que a confirmar a sua presença. – Calma, não vamos precisar disso, é o Carreira, que diabo!

Já na rua, avançaram cautelosamente.
– Silva, toma conta das traseiras, Barroso, vem comigo…

Tocou à campainha e fez-se ouvir um som estridente no interior da habitação, mas não houve qualquer resposta.
Pressionou a campainha novamente, sem melhor resultado. Do interior, apenas silencio…
– Carreira! – chamou – Abre a porta, pá, sou eu, o Farinha e estou com o Barroso, só queremos falar contigo!
Silêncio absoluto.
– Porra, Farinha, o que fazemos agora? – o Barroso dava sinais de nervosismo.

Entretanto, chegou um carro com mais agentes, que levantou muita curiosidade naquele bairro pacato, onde nada acontecia. Farinha receava que se reunissem muitas pessoas, movidas pela curiosidade e deu a ordem para que porta fosse deitada abaixo, no preciso momento em que se ouviu uma denotação vinda do interior, que fez com que todos se deitassem no chão, por precaução e rotina…
– Vocês, porta abaixo!

Com uma investida rápida, mas musculada, a porta cedeu… Farinha e Barroso precipitaram-se para o interior… Um cheiro nauseabundo invadiu as narinas, fazendo-os recuar um pouco, antes de avançarem, alcançando o quarto…
Farinha recuou, horrorizado, e Barroso sentiu-se desfalecer, apesar da experiência que ambos tinham e o muito que já viram…

Sobre a cama, longa, repousavam os corpos, em decomposição, de Vera e dos dois filhos e junto a eles, o cadáver recente de Carreira, ainda ensanguentado junto do ouvido direito, onde entrara o projétil que finalmente lhe deu descanso.

Os agentes que entretanto foram entrando, logo deixavam cair os braços ao longo do corpo, segurando as armas, parecendo hipnotizados perante tal violência… Um deles começou a vomitar, sem conseguir desviar o olhar…
Por longos segundos, que pareceram horas, assim estiveram todos, perdidos no tempo… As lágrimas corriam pela face de Farinha, quem estava ali era o seu melhor amigo, Carreira e a Vera… E os miúdos que tanto adorava, como se fossem seus, parceiros de tantas brincadeiras…

Em cima de uma pequena mesa, repousava uma carta em envelope fechado, com um nome manuscrito: Farinha. Mas ninguém parecia notar, tal a força do quadro que prendia os olhares.

Foi Barroso quem ergueu o envelope e o entregou a Farinha. Este tomou o caminho do exterior, completamente destroçado, com os olhos rasos de lágrimas teimosas. Abriu o sobrescrito e retirou um pequeno papel onde se lia, com a caligrafia habitual de Carreira, estranhamente serena:

“Farinha, meu bom amigo:
Peço-te que me perdoes, mas não posso deixar que me prendam. A minha vida acabou quando há muito tempo entrei em casa e vi o que tu estás a ver. A partir daquele momento, só vivi para vingar os meus amores e não estou arrependido do que fiz.
Quando te lembrares de nós todos, não nos recordes assim, mas nas brincadeiras em que todos entravamos, nas festas que fizemos, nas férias, nos momentos bons que vivemos.
Vou juntar-me aos meus amores. Peço-te por tudo que nos deixem ficar juntos. Não me julgues mal, meu bom amigo.
Carreira.”