UMA PASSAGEM SECRETA NA CAPELA DO SENHOR DA PEDRA

Prosseguimos nesta edição a publicação do texto vencedor do Concurso de Contos “Um Caso Policial em Gaia”.

Nas duas primeiras partes já publicadas, ficámos a saber que o Inspetor Carreira anda atrás de uma pista que o conduziu até Gaia, no encalce de alguns indivíduos que suspeitava estarem envolvidos numa história que metia contrabando de vinhos, moeda falsa, ouro e tráfico de influências.

Esta sua investigação levou-o até à Capela do Senhor da Pedra, por onde um suspeito se infiltrou e desapareceu misteriosamente. Após algumas tentativas frustradas, Carreira conseguiu mover uma laje que deixou a descoberto uma escadaria que se perdia na escuridão, por onde o sujeito se esgueirou. E, depois de algumas hesitações, lá foi ele também.

 

Sol de Inverno, de Luís Pessoa
III – Parte

Obviamente continuou a descida, até porque com o calor da noite, certamente já não haveria vendedores. Descobriu uma pequena manivela que acionou, fechando a passagem atrás de si.

Com a ténue luz do telemóvel arcaico, foi descendo a escadaria, até um patamar, semelhante a um cais, em frente ao qual se viam carris, que se perdiam no escuro. Sem hesitações, desceu o pequeno degrau, colocando-se entre os carris e começou a sua viagem, como se fosse um comboio em busca do destino.

Durante algum tempo, o caminho foi simples, não havia obstáculos e os metros vencidos com facilidade, mas repentinamente os carris terminavam, abrindo-se um buraco a que não conseguia tirar as medidas, nem no cumprimento nem na fundura. Olhou em volta e notou que do lado direito existia uma plataforma que permitia continuar, pelo menos até onde a vista alcançava, paralelamente aos carris, se estes lá estivessem. Foi continuando.
Periodicamente ia ligando a luz do telemóvel para se certificar da sua localização, mas numa das curtas exposições à luz, verificou com surpresa que já não havia precipício à sua esquerda, mas apenas uma parede, semelhante à existente à sua direita. Estava, literalmente, a seguir num estreito túnel, sem outra alternativa que não fosse prosseguir ou regressar pelo mesmo caminho percorrido.

Parou um pouco, para ganhar fôlego e para alinhar as ideias… Era óbvio que tinha de continuar, pelo menos até ver onde ia chegar.

Um cheiro fétido acudiu-lhe às narinas. Fazia frio ali em baixo e havia humidade, que lhe tolhia os movimentos. Começava a estar terrivelmente cansado quando chegou a um impasse, em forma de uma parede que impedia qualquer avanço. À esquerda, parede rugosa, tal como à direita e, agora, também em frente… Parecia restar o recuo.
A luz esbatida do telemóvel não lhe dava qualquer outra saída. Com a mão, percorreu toda a parede à sua frente, procurando alguma coisa que lhe permitisse prosseguir. Em vão.

Empurrou com os joelhos, depois com ambas as mãos, finalmente com o corpo todo. Prestes a desistir, uma pedra mais pequena que as restantes, chamou-lhe a atenção. Pressionou-a, lenta mas seguramente, sentindo que ela cedia, ao mesmo tempo que toda a parede se movia! Instintivamente levou a mão ao bolso, de onde retirou a pistola, ao mesmo tempo que avançava para uma cavidade maior, de onde vinha um estranho ruído, semelhante a um corpo volumoso em movimento. Tremeu, não sabia se de frio ou de medo, mas, sem alternativa, prosseguiu.

O cheiro fétido acentuava-se e caminhava às escuras, poupando a pouca carga de telemóvel que lhe restava, arrastando os pés para não cair em alguma armadilha. Reparou que a parede à sua esquerda desapareceu, dando lugar a um precipício, do fundo do qual parecia emanar o barulho que ouvia e o cheiro fétido. Tentou apontar para lá o foco de luz, mas sem qualquer sucesso. Era demasiado profundo. Continuou, até chegar a um ponto sem saída, com o estreitamento da plataforma em que se vinha movendo.

Restavam duas alternativas: regressar pelo mesmo caminho ou descer o precipício. Procurou uma escadaria, uma rampa, alguma forma de poder descer, mas em vão. Não havia pedras soltas que pudesse atirar para medir a profundidade, a luz do telemóvel não atingia o fundo e estava receoso de se atirar sem saber para onde. Decidiu atirar a carteira depois de retirar todos os documentos, mas quando levou a mão ao bolso, sentiu o frio da caneta que Vera lhe tinha oferecido num dos seus aniversários.

– Parabéns, meu amor, isto é para te lembrares de mim sempre que escreveres coisas boas…

Fechou os olhos, como se fizesse alguma diferença fazê-lo naquela escuridão, ou simplesmente para aguçar a concentração naquele momento mágico de recordação. Não atirou a carteira e a caneta guardou-a junto ao coração, que batia desordenadamente.

Suspendeu-se na beira do buraco, contou mentalmente até três e soltou-se, precipitando-se em curta queda.
– Afinal não era assim tão alto! – rejubilou – Carreira, desta safaste-te, rapaz!

Aguardou um bom par de minutos, recuperando do esforço e da tensão do momento, após o que começou a inteirar-se da sua situação. Afinal, o cheiro fétido vinha de um regato de detritos de esgoto que corria ali mesmo, junto a si. Sentiu pequenas bicadas nas pernas e não deixou de dar um grito quando dirigiu o ténue foco de luz para um aguerrido grupo de ratazanas de esgoto, que o cercavam completamente! Sem luz para as manter afastadas, restava-lhe estugar o passo e arrastar os pés, fazendo barulho.

Olhou para o relógio, mas estava parado. A luz do telemóvel deu o último suspiro! Estava entregue à escuridão e às mordidas das ratazanas mais afoitas, mas pelo menos tinha caminho para percorrer e era o que fazia, seguia sempre em frente!

Parecia-lhe que estava há horas no ventre da terra e provavelmente era verdade. Longe ficaram os carris onde se iniciou esta travessia e nunca mais os reencontrou…

Mecanicamente continuava a andar, ouvindo e sentindo o ruído do movimento dos roedores à sua volta, ao mesmo tempo que se apercebia que o caminho começava a subir, pelo esforço requerido. Repentinamente notou, aliviado, a ausência dos roedores, ao mesmo tempo que atingia uma plataforma que apenas dava acesso a uma ponte, aparentemente suspensa, que o devia conduzir para a outra margem. Às apalpadelas, percorreu os primeiros metros dessa estrutura, que lhe pareceu bastante sólida…

– Ó Carreira, arranjaste-a bonita! – pensou, sem se dar conta que o fazia em voz alta, surpreendendo-se com o eco.

Logo se apercebeu que alguma coisa estava para acontecer, quando começou a ouvir o tal ruído estranho, primeiro de baixa intensidade, mas cada vez mais alto e nítido, como se fosse de um enorme corpo em movimento. Um corpo de grande dimensão. Instintivamente deitou a mão ao bolso, apalpando a reconfortante coronha da sua arma. Ainda estava em cima da ponte e mergulhado na mais profunda escuridão, com todos os sentidos em alerta total, pronto para qualquer eventualidade.

 

(Continua na próxima edição)