ARTE SACRA DO VALE DO CORONADO: CONQUISTA DO SELO DE 7 MARAVILHAS DA CULTURA POPULAR DEIXOU SANTEIROS REPLETOS DE ORGULHO

Os Santeiros de São Mamede do Coronado são, atualmente, uma das 7 Maravilhas da Cultura Popular Portuguesa, no seguimento da conquista do concurso da RTP, que terminou no passado dia 5 de setembro, com a realização da Grande Final, que contemplou a execução de um programa transmitido em direto de Bragança.

 

Depois da consagração com o reconhecimento do Selo de 7 Maravilhas da Cultura Popular, o AUDIÊNCIA falou com alguns dos Santeiros de São Mamede do Coronado, que têm marcado a história da produção de imaginária religiosa no concelho da Trofa.

 

Augusto Ferreira

Escultor de arte sacra e um dos santeiros mais jovens de São Mamede do Coronado

Augusto Ferreira nasceu em 1972, em São Mamede do Coronado e aos treze anos começou a aprender a arte de santeiro na oficina do mestre Avelino Moreira Vinhas, que lhe transmitiu as técnicas de escultura, prática que, no passado, não era frequente, uma vez que era um papel que cabia aos oficiais e não ao mestre.

“Com 13 anos eu desconhecia, por completo, esta atividade por isso não foi por conhecer e por querer ir, mas sim porque a minha mãe viu algum potencial e eu acho que até me canalizou muito bem, porque, de facto, o meu mestre Avelino Vinhas viu a mesma coisa e um ano depois, intermédio dele, eu fui para a Escola Artística Soares dos Reis, em horário pós-laboral, onde conclui o ensino secundário enquanto exercia esta atividade”, explicou Augusto Ferreira ao AUDIÊNCIA.

O santeiro, que é, atualmente, o mais jovem em atividade, contou ainda que permaneceu na oficina do mestre Avelino Vinhas até aos dezanove anos e que, pouco tempo depois, montou uma oficina para desenvolver a atividade de produção de imaginária religiosa em São Mamede do Coronado.

O artesão revelou ainda que a importância desta profissão “acima de tudo, além da parte comercial, tem que ver com a parte cultural que é muito forte, porque estamos a falar de uma atividade que já é centenária, que já vem de muitas gerações atrás e, então, acaba por ter importância nesse sentido, visto também que é uma atividade única aqui na região e com este tipo de cariz, com este tipo de trabalho, com este cunho artístico com que se trabalha a arte sacra aqui no Vale do Coronado, onde residem os últimos escultores santeiros. Nós não estamos a falar de uma atividade na qual estaríamos a formar alguém, para depois perder tempo, não, de facto existe mercado, bastante mercado. Eu, atualmente, tenho muito mais mercado para aquilo que tenho capacidade de resposta. Também, na linha com que eu trabalho, não dá para industrializar demasiado, porque há sempre um trabalho final que tem de passar pela mão do artista e, então, são trabalhos que acabam por ser bastante morosos, daí achar que tem importância, sim”.

Relativamente à conquista do galardão de 7 Maravilhas da Cultura Popular Portuguesa por parte dos Santeiros de São Mamede do Coronado, Augusto Ferreira enalteceu que “eu acredito que isto tem uma importância bastante grande, porque vai dar-nos visibilidade e faz a chamada de atenção para a necessidade de se dar continuidade ao saber-fazer, porque, atualmente, nós pelas oficinas, que são unipessoais, não temos a possibilidade de passar esse legado, porque para estarmos aqui a ensinar alguém, teríamos de abdicar do nosso tempo de trabalho, para passar a informação e, neste momento, isso é impossível. Este galardão vem, de facto, ajudar a catapultar esta arte, porque não podemos esquecer que isto é escultura, com uma especialização em arte sacra, mas daqui é possível fazermos outros trabalhos também. Aqui, o maior segredo é saber dominar a matéria-prima, algo que, por exemplo, nas escolas de artes não se aprende a dominar, neste caso, a madeira e a mais-valia destas oficinas é permitir que os aprendizes aprendam a dominar a matéria-prima com que trabalham”.

No que concerne ao futuro, o santeiro sublinhou que “está muito incerto apesar de toda esta projeção, que talvez possa vir a ajudar, mas não se pode esperar muito mais tempo, porque eu posso ser o mais novo, mas também já tenho 48 anos e é preciso que pessoas tenham alguma paciência para passarem o legado e, para isso, é de facto importante que existam incentivos. Deste ponto de vista, eu vejo o futuro assim meio cinzento, olhando às coisas que eu sei que estão a acontecer, mas uma coisa é ver aquilo que está a acontecer e outra coisa é, de facto, as coisas que já deveriam ter acontecido, mas tenho esperança no futuro”.

 

 

Jorge Brás

Escultor de arte sacra

Jorge Brás começou a aprender a arte de santeiro aos catorze anos na oficina do mestre Avelino Moreira Vinhas e há mais de quatro décadas que se dedica à arte da produção de imaginária religiosa. “Eu gosto e tenho muito brio naquilo que faço, porque sei que milhares de pessoas vão olhar para o meu trabalho”, afirmou o escultor ao AUDIÊNCIA.

As imagens executadas por este artesão são feitas de peças de madeira inteiras, que, conforme são trabalhadas, vão recebendo vida e significado. “É muito difícil explicar como se faz uma peça, é mais fácil mostrar”, garantiu o santeiro, adiantando que “nós temos de conseguir apanhar os toques da madeira, os veios da madeira e por baixo disto a que nós chamamos de panos da madeira, nós temos de imaginar que há um corpo e são estas as bases que nós temos de ensinar a alguém que cá venha e que queira aprender isto. Eu tenho medo que esta arte termine e que não tenhamos seguidores para esta arte”.

“Posso dizer-lhe que há muita gente que quando vê as imagens pensa que são de louça, ou marfim, ou coisa parecida, mas são mesmo de madeira”, referiu o escultor, destacando a importância de dar continuidade a esta arte, porque “era bom se nós conseguíssemos encontrar alguns jovens interessados, aliás era uma vitória para nós e para a pessoa que ia ficar com a mais-valia de aprender este saber-fazer, porque não é muito fácil e se nós tivermos jovens para ensinarmos, para passamos este legado e este saber-fazer, esta arte pode vir a ter continuidade. Porém, eu creio que esta arte não vai ter continuidade, porque isto não é muito fácil e tem sido muito difícil encontrarmos alguém que queira trabalhar esta arte, todavia nós não queremos deixar morrer a tradição da arte sacra que é produzida em São Mamede do Coronado, daí ser importante o surgimento de jovens interessados em aprender esta arte, enquanto está cá alguém para ensinar”.

 

 

Boaventura Matos

Pintor e escultor de arte sacra

Boaventura Matos nasceu a 1 de maio de 1931, é especializado em pintura e escultura de arte sacra e dirige a sua oficina no lugar de Água Levada, em São Mamede do Coronado.

Aos treze anos iniciou a aprendizagem na pintura, apesar de também gostar da escultura, na oficina de José Ferreira Thedim, com o qual tinha laços de parentesco, porque, no momento, era na pintura que havia falta de mão-de-obra.

O pintor e escultor de arte sacra trabalhou com José Ferreira Thedim durante 18 anos e asseverou ao AUDIÊNCIA que “eu gosto daquilo que faço e estou sempre a aprender. Eu acho que ainda não cheguei ao máximo de aprendizagem. Eu estou sempre a aprender, aparecem sempre coisas diferentes e é uma forma de eu estar sempre no ativo, a realizar aquilo que eu gosto e é isso que me mantém aqui ainda. Eu sempre tive aqui gente a trabalhar, contudo agora estou só, mas vou continuar até quando Deus me deixar”.

Dada a dimensão do seu trabalho, Boaventura Matos ganhou a confiança do Santuário de Fátima, tendo intervencionado a imagem da Virgem Peregrina. “Foi uma ocasião única que me apareceu na vida. Na altura, eu ainda trabalhava com o mestre Thedim e ele disse-me para eu preparar o material, para ir a Coimbra, ao Convento do Carmelo, retocar a imagem da Virgem Peregrina, que tinha chegado lá. Ele preparou-me uma carta para eu levar, dirigida à Irmã Lúcia, e eu lá fui de comboio até Coimbra, entreguei a carta e a Irmã Lúcia fez questão de ser ela a vir entregar-me a imagem para eu restaurar. Eu estive lá três dias e, no final, vim satisfeito, porque ela ficou contente. Eu nessa altura tinha 18 anos”, contou o santeiro.

O artesão aproveitou a ocasião para desvendar que, ainda hoje, nenhuma obra sai da sua oficina, sem passar pela sua observação e que o Santuário de Fátima ainda se mantém como um dos principais destinos do seu trabalho.

Boaventura Matos, tal como os restantes santeiros, também assegurou que, no que concerne a continuidade desta arte e desta profissão, “eu, enquanto puder, tudo farei para que esta arte não acabe, mas a verdade é que tende a acabar, porque não temos aprendizagem e isto não se aprende de um dia para o outro, pois demora bastante tempo”.

 

 

Manuel Moreira

Escultor de arte sacra

 

Manuel Moreira nasceu em 1938, em São Mamede do Coronado e iniciou-se na produção de imaginária religiosa aos catorze anos, no Stúdio Nossa Senhora de Fátima, com o mestre Avelino Moreira Vinhas. Mais tarde, já como oficial, trabalhou na oficina de Manuel Thedim, em Cidadelhe, em Santa Maria de Avioso, e na oficina de Aureliano de Sousa Fonseca, no lugar de Facho, em São Mamede do Coronado.

“Eu acho que tenho mais aprendizagem do que talento, porque eu não queria ser escultor. Contudo, quando eu entrei nisto e fui aprender com o mestre Avelino Vinhas, eu percebi que não tinha alternativa e que tinha de me dedicar, para ver se chegava um bocadinho mais longe”, adiantou o artesão ao AUDIÊNCIA.

Porém, no início da década de 1960, devido a uma fase de crise pela qual passou a produção de arte sacra, decidiu procurar outra profissão. Todavia, logo em 1987, o santeiro voltou à criação de imaginária religiosa, atividade que mantém até à atualidade, na sua casa, no lugar de Santa Eulália, em São Romão do Coronado.

“Quando eu regressei de África, em 1982, eu estava convencido de que não sabia fazer nada disto e depois comecei a visitar antigos colegas e a ver o que é que eles faziam e, automaticamente, ao ver o trabalho deles, eu achei-me capaz de fazer a mesma coisa e comecei a dedicar-me a sério e, inclusivamente, cheguei a fazer muitas peças, mas não acabava as cabeças. Porém, quando comecei a ver obras minhas com cabeças de outros, eu decidi que era capaz de fazer melhor”, declarou o santeiro.

Ultimamente, além de produzir dentro da temática mariana, que vende para os Missionários da Consolata e para o Santuário de Fátima, tem executado trabalhos para o arquiteto Luís Líbano Monteiro e obras destinadas a diversos países.

“Eu não preciso de falar, para publicitar o meu trabalho. Se a obra fala pelo artista, cem por cento, se a obra não fala pelo artista, estamos um bocadinho mal e, por isso, eis a razão pela qual eu ponho na mão dos outros e os outros é que decidem e é que me dão a classificação que entenderem, pois, para mim, qualquer que seja está bem”, disse Manuel Moreira, que admitiu, à semelhança dos restantes santeiros, que “eu estou convencido de que a arte vai acabar quando os santeiros existentes deixarem a profissão e acredito nisto apesar do município da Trofa estar a fazer todos os esforços para dar formação, para que isto não acabe. Posso dizer-lhe que o Augusto seria a pessoa ideal para ensinar, porque ele tem muitas capacidades e é o mais jovem, mas isto tem um bocadinho que se lhe diga e tem de haver muita dedicação e muita vontade”.

 

 

Fernando Duarte

Pintor artístico

 

Fernando Duarte nasceu em 1952, no lugar de Casal, em São Mamede do Coronado. O pintor divulgou ao AUDIÊNCIA que desde criança que desenvolveu o gosto pela pintura e que foi o santeiro Boaventura Matos quem o introduziu na imaginária religiosa.

“Tudo aconteceu quando eu tinha pouco mais de trinta anos e realizei a minha primeira exposição em São Mamede do Coronado, onde o senhor Boaventura Matos, mestre de arte sacra, viu que eu, de facto, tinha jeito ara a pintura e convidou-me para trabalhar com ele. Na altura, nenhum dos meus trabalhos estava relacionado com a arte sacra, mas ele viu que eu era uma pessoa que podia colaborar com ele na pintura. Eu aprendi bastante com ele e, ainda hoje, agradeço-lhe por aquilo que eu sei”, elucidou o artista, ressaltando que “a pintura de arte sacra tem o seu conhecimento, sem dúvida, e tem a particularidade de estarmos a pintar, a cobrir, uma peça que já existe”.

O pintor artístico dedica-se, atualmente, à pintura geométrica, “onde também me sinto bem” e referiu que o que a difere da pintura de arte sacra “é que nós na pintura geométrica, na pintura artística e na pintura realista temos de criar as coisas. É essa a diferença que existe, mas ambas exigem conhecimento e têm o seu valor”.

Relativamente à conquista do Selo de 7 Maravilhas da Cultura Popular Portuguesa por parte dos Santeiros de São Mamede do Coronado, Fernando Duarte mencionou que “na verdade vem um bocadinho tarde”, mas “é o reconhecimento do nosso valor” e “vem acrescentar mais valor àquilo que nós já estávamos a fazer”.

No que concerne à continuidade da profissão de pintor de arte sacra, o pintor artístico destacou que “na verdade, eu tenho pena que esta arte não tenha continuidade. A continuidade da arte sacra vai ter a ver com a formação que vamos fazer. Tanto a Câmara da Trofa, como as pessoas entendidas que estão a preparar isso, que já devia ter começado, mas não começou devido à pandemia, já partilharam que existem pessoas com interesse e que vamos dar formação de pintura e escultura de imaginária religiosa”.