“QUERO MOVIMENTAR-ME PELO MUNDO, VOLTANDO ÀS MINHAS ORIGENS”

Aos 29 anos, Luís Senra é um músico açoriano que sabe exatamente de onde veio e para onde quer ir. Nascido em Rabo de Peixe, iniciou a sua formação musical na escola de música daquela vila aos 11 anos, em clarinete, tendo mudado para flauta transversal, até que encontrou o instrumento que o completa: o saxofone. Em entrevista ao AUDIÊNCIA, Luís Senra faz uma retrospetiva da sua vida como músico, e conta também os seus projetos para o futuro

 

Como é que o Luís chegou à música?

 Tinha a referência das filarmónicas pelo meu pai, que fazia parte de uma filarmónica em Rabo de Peixe. Depois surgiu a Escola de Música de Rabo de Peixe, que ainda hoje está em funcionamento e onde sou presidente da Assembleia Geral.

 Comecei a aprender música ali, mas também sendo autodidata. Aos 18 anos entrei para o Conservatório e quis aprofundar mais o meu conhecimento sobre música.

 

Sempre em saxofone?

 Não. Comecei com o clarinete, quase que obrigado pelo meu professor de música na altura. Depois não gostei, fui para a flauta transversal e só cheguei ao saxofone aos 17 anos.

 Além do conservatório, fiz bastantes ‘master classes’ e ‘workshops’ com músicos estrangeiros, e o saxofone apareceu na altura em que apareceu também o jazz, o ‘free jazz’ e o ‘avant-garde’. Foi um casamento que resultou muito bem porque o saxofone é muito flexível e combina com muita coisa.

 

 Ainda está em alguma banda filarmónica?

Infelizmente não, embora tenha vontade de voltar a uma. Não tanto pela parte musical, mas pela parte social. Sinto que perdi um pouco da minha ligação com a ilha, devido às minhas saídas, e quero voltar a ter essa ligação.

 

 Por onde é que o Luís já foi?

 Já fui a praticamente todas as ilhas dos Açores e também já fui a várias zonas do Continente. Já toquei no ‘Serralves em Festa’, no Porto, já fui tocar a Peniche num encontro de música improvisada, já fiz trabalhos em Lisboa e em Leiria e também já fui a Espanha. Vivi em Valência por seis meses, onde participei nalguns projetos (inclusive num festival de improvisação livre), à Alemanha e ao Canadá.

 

Sempre a tocar?

Sempre a tocar! Não sei o que é fazer férias sem levar o saxofone.

 

 Como é que é viver só de música? Em São Miguel e tocando saxofone…

 Em geral é difícil, em São Miguel é muito complicado. Normalmente para se ser profissional cá, tem que se dar aulas de música, ou fazer um pouco do que faço. Tenho duas vertentes: o meu trabalho é na arte contemporânea, nas residências artísticas e tudo o que é criação artística, mas como não há tanto trabalho, tenho de fazer a outra parte, como casamentos, bares, hotéis e tocar com bandas de outros géneros de música. Isso serve para me sustentar e para apoiar os meus próprios projetos artísticos. De resto, são ‘open calls’, residências artísticas e candidaturas a projetos.

 

O que são ‘open calls’?

 Quando alguma associação artística ou alguma entidade faz uma “chamada” a artistas para desenvolver ou integrar projetos e equipas artísticas.

 

 E quanto a “residência artística”?

 “Residência artística” pode ter várias componentes. Normalmente é assim que se chama porque acontece quando um artista se fixa num determinado local. Pode ser por associação a um festival, ou simplesmente estar lá e arranjar alguma forma de fazer algo artística. Mas durante esse trabalho, que pode ser de investigação, de criação artística ou de criação de uma ‘performance’, o que acontece é que estamos naquele determinado espaço e ficamos inspirados por aquele espaço, pelas pessoas que lá vivem e temos contacto com outros artistas que também estão lá a fazer residência artística. Isso faz com que haja uma partilha de conhecimentos sobre outras áreas. Posso estar em contacto com pintores ou bailarinos, por exemplo.

 Todo esse conhecimento do local, das pessoas e dos artistas, faz com que eu tenha outros elementos que não tinha cá para criar um projeto. O resultado de cada residência artística são sempre diferentes porque os elementos de inspiração são sempre diferentes.

 

Sente a necessidade de ir para fora agora?

 Em termos artísticos, para a motivação e para desenvolver aquilo de que gosto, sim. Normalmente estou cá na ilha para ter o tal sustento financeiro com os trabalhos que tenho feito cá, e depois quando tenho esse dinheiro, tenho a necessidade de sair para realizar projetos artísticos mais complexos e concretos.

 

 Falando do passado, o Luís fez um projeto no Pico, a tocar em grutas.

 Já tinha começado a fazer um projeto ligado às grutas em 2016, em que fiz uma performance que visitou quatro das cinco grutas dos Açores, então fui a quatro ilhas diferentes para tocar. Esse projeto foi interessante mas ficou parado porque não me senti com vontade de o fazer. É difícil a nível de logística…

Em janeiro surgiu uma proposta do “Montanha Pico Festival” que me convidou a voltar a fazer isto, mas só na ilha do Pico, mas aí em grutas não visitáveis. Em parceria com os Parques Naturais, a intenção era explorar o saxofone e o som em sítios onde a acústica não é tão interessante, e em vez de ter as condições tão perfeitas que um palco tem, aproveitar aquilo que a gruta dá e transformar isso em potencial elemento para criação artística. Sempre com criação em tempo real, nunca com nada preparado. Chego lá, não sei o que é que vai aparecer, e lá é que crio as melodias e as composições com aquilo que vou sentindo, com aquilo que o espaço me dá e com o público que lá está.

 

Como é que foi a adesão desse projeto?

Em termos de escala (estamos a falar dos Açores e em particular de uma ilha do grupo central), foi muito interessante. Houve vezes em que foram grupos mais pequenos, mas houve outras que ultrapassaram as 20 pessoas. As pessoas foram muito interessadas. Em primeiro lugar porque tiveram a oportunidade de ir a uma gruta que não é aberta e que não poderiam ir em outra altura, e por outro lado porque tiveram a oportunidade de contactar com um estilo de música que não é tão ouvido cá.

 As pessoas gostaram bastante e partilhavam o que estavam a sentir com a música e com a experiência. Foi muito enriquecedor.

 

O Luís ainda não fez nenhum álbum. Tem esse sonho?

 A solo ainda não fiz nada, mas já participei em três outros álbuns. A solo ainda não fiz nenhum álbum porque é um tipo de música que vive muito da experiência. É um objetivo meu, mas ainda não sei bem como vou fazer.

 

Que projetos tem para o futuro?

 Neste momento, o meu maior projeto é dar continuidade a essas explorações sonoras. Esse projeto tem-me levado a visitar vários lugares e a contactar com várias pessoas. Explorar cada vez mais sítios diferentes, trabalhar com pessoas diferentes e, quem sabe, juntar outras disciplinas artísticas. A curto prazo é expandir, e a médio prazo juntar outras artes.

 

E que projetos gostaria de fazer se tivesse todo o tipo de disponibilidade?

 Muito honestamente, as grutas têm algo incrível. O facto de não haver luz e de haver um silêncio tão grande, as pessoas ficam mais atentas e com vontade de ouvir. Para mim, sei que tudo aquilo que fizer vai-se ouvir. O que mais gostava era só poder fazer isso. Viajar pelas grutas do país e não só, mas visar só cavidades lávicas… experimentar um pouco de cada acústica diferente.

 Aqui nos Açores, tirando a Furna do Enxofre e o Algar do Carvão (Graciosa e Terceira), devido ao basalto, a acústica é muito semelhante em todas as grutas, porque são todas da mesma formação. A minha dúvida e a minha curiosidade é se outras grutas com outro tipo de formação, se trará sonoridades e desafios diferentes.

 

Como músico não tem a ambição de trabalhar mais e de se tornar mais conhecido? Ainda que já seja, pelo menos no contexto Açores…

Felizmente não é só em São Miguel, nos Açores já me movimento muito bem. Aqui, se calhar conhecem menos o meu trabalho que no Continente. As pessoas aqui têm noção do que eu faço nos bares… como os trabalhos artísticos não são cá, há essa ideia de não ser conhecido lá fora, quando acontece exatamente o oposto.

 A imprensa nacional também tem feito algumas coisas com isso, e tenho alguns contactos noutros países. O facto de inserir este projeto maior no meu trabalho a solo, não significa que não trabalhe com outros artistas. Tenho feito outras parcerias. Por exemplo, no Pico trabalhei em conjunto com uma fotógrafa da Lituânia e sempre que aparecem convites, faço outras parcerias. Não são fixas, mas permitem-me trabalhar várias coisas ao mesmo tempo.

Tenho o meu projeto, mas não fecho a porta a outras coisas.

 

As filarmónicas são autênticas escolas de música. Não faz parte dos seus planos estar numa filarmónica a transmitir conhecimentos?

Eu passei três meses no Pico, e por acaso lá cooperei com uma filarmónica da Madalena, daí o “bichinho” de querer voltar a ir para uma filarmónica.

As filarmónicas são autênticas escolas de música, especialmente por ser gratuito, mas há um choque cultural muito grande com a minha visão pessoal e artística e com a formação que lá dão. Então para eu funcionar numa filarmónica, tem que haver um certo distanciamento dessa diferente realidade.

Eu também faço formações de ‘master classes’ de improvisação, só que não é um tipo de formação pela qual as filarmónicas se interessem. Acima de tudo, as filarmónicas têm uma função social, quer queiramos, quer não. Só o facto de ter músicos (e não preciso ser eu), mas músicos militares ou músicos residentes cá, só a sua postura e atitude, ou o facto de darem dicas e de serem uma inspiração para os outros, já é uma formação que não é tão direta e que não choca com as tais realidades.

 Por exemplo, na filarmónica da Madalena, ao meu lado, havia pessoas mais velhas que estão lá há muito tempo. Eu não tenho, de maneira alguma, vontade de chegar lá e de chocar com eles. Estou lá, respeito o meu lugar e vou tocando. Foi aí que senti que é necessário voltar à origem, mas com outra postura: não querer implementar nada, mas beber um pouco da parte social, da ligação à freguesia e à ilha.

 

Já é a segunda vez que diz que perdeu um pouco da ilha.

Primeiro porque o meu trabalho artístico é conhecido fora, o que faz com que quando esteja cá não tenha tantos convites para trabalhos artísticos e tenha sempre a vontade de sair. Em segundo lugar porque quando comecei a viajar e a viver em outros sítios, quando voltei para cá as coisas foram mudando. Os músicos mais velhos conhecem o meu trabalho mas os mais novos já não conhecem. Senti que há uma pequena falha geracional… e sinto que preciso de voltar a ganhar essas raízes com as pessoas que agora fazem parte das associações e com os músicos, que também mudaram. É apenas por isso, por perceber que tenho um certo desconhecimento do que se passa cá, devido a passar muito tempo fora, e preciso voltar a ganhar essa ligação. Sinto que preciso de conhecer as pessoas que estão a desenvolver coisas, a fazer coisas e a frequentar os espaços.

 

Mas o Luís gosta de sair e desta “instabilidade”.

Gosto muito da “instabilidade” porque o meu projeto é trabalhar com espaços, pessoas e desafios. É normal que estando muito tempo num sítio, de certa forma vou começando a tocar nos mesmos espaços e para as mesmas pessoas. Mas o meu projeto e a minha essência é de partilha, e para essa partilha continuar fluída, tenho de ter contacto com pessoas e lugares diferentes, para ter novos desafios e novos elementos para a minha criação.

No Pico, durante a minha estadia para tocar nas grutas, a certa altura iam assistir as mesmas pessoas e já havia uma certa expectativa. Essa expectativa e esse excesso de conhecimento daquilo que eu ia fazer, já contribuíam para a alteração do meu processo criativo, porque eu já sabia do que é que as pessoas gostavam ou não. Quando tenho um público novo, aquilo que eu faço é 100% válido porque eles vão ser 100% recetivos. Uma pessoa que já conhece e que já foi muita vez a uma performance destas, já sabe do que é que vai gostar ou não. Por mais que eu não queira, isso vai sempre influenciar a minha performance.

Por outro lado, os próprios espaços. Se eu tocar sempre nos mesmos espaços, preciso da motivação para conhecer novos espaços com novos desafios e novas acústicas, para poder desenvolver outras técnicas.

 Claro que não quero sair de cá. Quero movimentar-me pelo mundo, tendo a minha base cá e voltando às minhas origens e depois trazer um pouco desse conhecimento para cá.

 

Quando é que o Luís decidiu que queria ser músico?

 Não me lembro… se calhar quando em 2017 comecei a fazer ‘master classes’ intensivas e comecei a gostar de trabalhar música. Fazíamos cursos de uma semana a trabalhar das nove da manhã às seis da noite. Para mim foi incrível estar, durante uma semana, a trabalhar arte e a tocar música.

É engraçado falar nisto, e é interessante para mim agora. Foi também pela oportunidade de contactar com outros músicos e conviver com novas pessoas. Isso fez com que quisesse ir para a música. Não tanto pela música, mas pela dinâmica de partilha que havia. Agora só olhando para trás consigo perceber isso.

Tentei também criar alguns projetos. Tudo isso foi se construindo ao mesmo tempo que tinha os meus trabalhos, até à altura em que comecei a perceber que já conseguir ganhar dinheiro suficiente para viver só da música. Não a título profissional mas a termo semiprofissional. Quando comecei a achar que era aquilo que me realizava e a minha parte pessoal acompanhou isto, percebi que era uma forma de vida e que a música era muito importante para mim.

 

O que é que se sente quando se toma uma decisão dessas?

 Uma sensação de bastante responsabilidade. Toda a gente comenta que não é fácil. Há sempre aquele estigma que há músicos que passam fome e que não conseguem pagar as dívidas. De certa forma não é totalmente mentira porque conheço situações complicadas, e também de músicos que como eu têm sonhos de criar coisas artísticas e muito elaboradas, e depois acabam por dar aulas ou tocar em hotelaria porque não conseguem arranjar outra forma de subsistir. É muita responsabilidade.

 Também a sensação de instabilidade. Saber que não há um ordenado fixo no final do mês e que tem que se viver diferente das outras pessoas. Não há subsídio de férias nem de Natal, eu é que pago a minha segurança social e as minhas contas ao Estado. Perceber que faço bastante dinheiro num mês mas tenho que guardar porque no próximo pode não vir nada.

 Acima de tudo há um sentimento de realização muito grande porque não é um emprego, é um trabalho de uma coisa que eu gosto e que me sinto feliz a fazer. Por mais que esteja cansado, tenho sempre força para continuar. Não digo que é um sonho. Não é um sonho, é a minha forma de vida. Quando nós temos o nosso trabalho e o nosso rendimento vindo daquilo que é a nossa forma de vida, a nossa forma de estar e vindo daquilo que nos deixa mais felizes, essa responsabilidade e incerteza tornam-se em adrenalina e não tanto numa responsabilidade negativa.

 Às vezes é mais fácil e às vezes é mais difícil. De certa forma consegue-se arranjar um equilíbrio, tendo a noção que um dia pode parar e pode ter que se vir a fazer qualquer coisa se não der.

 

 No futuro vê-se a fazer o mesmo que está a fazer agora?

 Sou uma pessoa muito instável em termos pessoais. A componente artística também é muito instável porque requer convites, dos meus projetos pessoais que desenvolvo e envio para as entidades (‘open calls’, bolsas artísticas…). Se eu tiver bolsas artísticas ou conseguir entrar em ‘open calls’, vejo-me a fazer projetos incríveis e a desenvolvê-los lá fora. Infelizmente, se não aparecerem, é instável. Não consigo ver uma meta porque dependo da dinâmica social, cultural, das associações ou de apoios. Não depende só de mim, mas também do meio envolvente. Por isso é que é importante fazer contactos com artistas e associações e não fazer isto sozinho.

 

 Arrepende-se da escolha que fez?

 Não me arrependo nada. Se calhar tinha começado mais cedo