RECONCILIAÇÃO DE VELHOS AMIGOS DESAVINDOS

A extensão do sexto original participante do nosso concurso de contos determinou que o dividíssemos em duas partes, face às limitações do espaço disponível, pelo que aconselhamos que conservem a parte que hoje se publica até à próxima edição da secção. A sua releitura evitará, assim, que percam “o fio à meada” e tenham mais dificuldades na avaliação crítica do texto na íntegra. A narrativa desenvolve-se entre as cidades de Lisboa e Vila Nova Gaia, com uma eventual passagem pela Invicta, e tem como pano de fundo o falecimento do viúvo Luís Barbosa, encontrado caído, morto à facada, no chão do escritório da sua moradia.

O seu autor é um concorrente assíduo das iniciativas que temos levado a efeito ao longo dos últimos três anos, tendo alcançado um brilhante segundo lugar na edição de 2017 do concurso de contos “Um Caso Policial em Gaia”. Trata-se, portanto, de um potencial candidato a vencedor da presente edição do nosso concurso. Mas isso dependerá da vossa avaliação, caros leitores, já que é vossa a missão exclusiva de atribuir as respetivas pontuações a todos os contos concorrentes, em função da sua qualidade e originalidade.

 

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 6

“Reconciliação Fatal”, de Rigor Mortis

I – Parte

Fazia sol, e a temperatura estava agradável em Gaia.

“Antes assim…”, pensou o inspetor Pedro Malcato, enquanto caminhava apressadamente pela rua Machado dos Santos, ao lado da subinspetora Rosa Martins, em direção à vivenda onde residia a vítima. Já bastava ter sido arrancado de sua casa naquele domingo, ainda mal tinha acabado de almoçar. “Espero que tenham razão quando dizem que este raio deste vírus não resiste ao calor!” Ao chegar à vivenda olhou para o relógio, num reflexo condicionado pelos muitos anos que tinha de Judiciária: 15h55, 29 de Março, domingo.

O agente que estava à porta deixou-os entrar, reconhecendo-os. Uma mulher de meia idade, de avental aos quadrados cor-de-rosa, com os olhos avermelhados de choro, levou-os diretamente até ao escritório do dono da vivenda, Luís Barbosa. O corpo estava estendido no chão, sobre um tapete persa, com os pés em direção à porta. Muito magro, tez macilenta, aspeto geral frágil. No peito via-se nitidamente o cabo, negro, de uma faca. A camisa branca estava encharcada de sangue, bem como o tapete, debaixo do torso.

Atarefado à volta do corpo já estava o médico-legista. A uma pergunta de Malcato, respondeu secamente que a morte teria ocorrido entre as dez e as onze horas dessa manhã.

– Você é empregada aqui na casa? Vive aqui?

– Sou sim, senhor inspetor, Antónia Domingues. Moro numa casinha ali para os lados das Devesas, mas trabalho aqui todos os dias. Ao domingo tenho folga, mas o senhor Luís pediu-me que cá viesse hoje, porque ia ter a visita de duas pessoas para o almoço. Cheguei aqui um pouquinho antes do meio dia, ele disse-me que queria almoçar pelas duas horas da tarde. Mal cheguei fui para a cozinha aprontar o comer e pôr a mesa. Nem vi o senhor Luís, mas ele também costumava levantar-se tarde aos domingos, pensei que estivesse na casa de banho a arranjar-se.

– O seu patrão vivia sozinho?

– Sim senhor, desde que a mulher morreu, faz uns anos. Coitado, andava mesmo muito doente nos últimos tempos, com qualquer coisa que o devorava por dentro. Sabia que ia morrer em pouco tempo… Mas assim… Quem havia de imaginar?

– Tinha amigos que o visitassem com frequência?

– Não senhor. Vivia muito só, coitado.

– E inimigos? Pessoas que lhe quisessem mal?

– Acho que não. Bem… Ele costumava dizer-me que aqueles dois senhores que estão na sala de jantar gostavam de o ver morto, desde há mais de trinta anos… Mas nunca o vi com eles, nem cá em casa nem em lado nenhum, nem sequer a falar ao telefone com eles. Mas era capaz de serem os únicos, sabe, o senhor Luís era muito bom, toda a gente aqui das vizinhanças gostava muito dele.

Ontem ao almoço é que me disse que eles vinham cá a casa almoçar com ele hoje. Tinha-os convidado, porque queria reconciliar-se com eles, depois de tantos anos, antes de morrer.

Malcato e Rosa Martins seguiram a D. Antónia até à sala de jantar.

Sentado numa cadeira algo afastada da mesa estava um homem, com um casaco vulgar, azul escuro, e uma gravata azul. Uns cinquenta e tal anos, encorpado, cabelo castanho escuro, óculos de aros metálicos com graduação visivelmente elevada. Sobre a mesa, à sua frente, um exemplar do jornal Público. Malcato reparou na foto da capa, que ocupava metade da primeira página: uma autoestrada, carros parados em fila indiana na via da direita, polícias a andar nas outras duas vias. “Mesmo com este coronavírus, estes malucos continuam a querer ir passear ao domingo!”, pensou sarcasticamente.

Do outro lado da mesa, de pé, também de casaco mas sem gravata, um segundo homem. Mais ou menos da mesma idade, alto, magro e calvo, musculado, de mãos nos bolsos das calças cinzento escuras.

– Inspetor Pedro Malcato, subinspetora Rosa Martins. E os senhores são?…

– João Seixas – respondeu o homem sentado, levantando-se. – Conheço, perdão, conhecia, o Luís Barbosa desde os tempos da tropa. Vim aqui a seu convite. Devo dizer que com alguma relutância, e apenas porque ele me disse que se queria reconciliar comigo antes de morrer. Achei que já era tempo… Ao fim e ao cabo, que importância têm agora coisas que se passaram há mais de trinta anos?!

– Américo Sepúlveda – disse o outro homem, de pé. – Também estou aqui porque o Luís me pediu, com o argumento que já ouviu, senhor inspetor. Como disse o João, trinta anos é muito tempo…

– Qual a razão da vossa inimizade, tão profunda e tão longa?…

– Coisas de mulheres e coisas de dinheiro, muito dinheiro… Dinheiro com que o Luís ficou, deixando-nos de mãos a abanar…

Enquanto falava, Américo tirou do bolso do casaco um jornal dobrado em quatro, desfez uma das dobras e pô-lo na mesa à sua frente. O Público, também. Reflexamente, Malcato notou a imagem de um drone no ar.

(continua na próxima edição)