UMA HOMENAGEM A GENTE ILUSTRE DA BEIRA-RIO DE GAIA

O conto que hoje publicamos tem por palco a Beira-Rio e miolo do Centro Histórico de Gaia. Para além da história que ele encerra, são recordadas algumas das figuras mais ilustres daquele lugar da freguesia de Santa Marinha. Não sabemos se o seu protagonista existiu ou se é apenas fruto da imaginação de Inspetor Mokada, que se estreia na nossa secção, mas as outras personalidades evocadas em jeito de homenagem existiram mesmo e ainda hoje são recordadas com saudade pelas pessoas que com elas tiveram o privilégio de conviver. Ora, leiam por favor:

 

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 3    

“O Meu Velho Tio Ambrósio”, de Inspetor Mokada

O centro histórico de Gaia encerra uma secular história, que se encontra inscrita nas pedras das suas ruas, becos e escadarias, nas suas velhas casas e na alma das pessoas que as habitam. São as pessoas, aliás, os maiores bens patrimoniais que acrescentam real valor ao lugar. A nossa memória cultural não é apenas constituída por monumentos, outros edifícios históricos, estátuas, pelourinhos ou paisagens singulares. São sobretudo as pessoas que fazem o espírito dos lugares, sempre feitos de diferenças e complementaridades.

Há pessoas que se eternizam na nossa memória pelas melhores razões e outras que permanecem para sempre na nossa cabeça por motivos menos felizes, dramáticos ou até mesmo caricatos. Da beira-rio, da marginal junto ao cais ou do miolo do centro histórico, são muitas as pessoas que se projetam no futuro através da nossa memória.

Zé da Micha é uma dessas pessoas, uma das figuras mais queridas das gentes da beira-rio, uma personagem singular de grande humanidade e espirito de ajuda ao seu semelhante, com uma forte ligação ao rio Douro, de cujas revoltosas águas arrancou muitos homens das garras da morte.

Inesquecível é também Fernando Peixoto, poeta, historiador de teatro e investigador de história contemporânea na área da política institucional, que chegou a servir os seus concidadãos como presidente da junta de freguesia de Santa Marinha, terra que o viu nascer, à beira-rio.

Inesquecível é igualmente José Guimarães, autor de canções, encenador e autor de teatro de revista, que veio do Porto já homem para Gaia e que por cá ficou até ao seu desaparecimento físico, não sem antes ser merecidamente homenageado pela Câmara Municipal gaiense com a medalha de Ouro da cidade pelos serviços prestados à cultura.

Mas além destes e de outros ilustres homens, que se distinguiram pelas suas qualidades, sociais, desportivas ou culturais, outros houve que ficaram na história da nossa vida por particularidades pouco recomendáveis. Foi o caso do irmão de meu pai, o sapateiro Ambrósio.

O meu velho tio Ambrósio era muito chato. Implicava com tudo e por nada. Até os putos que brincavam na rua, junto à sua janela, o incomodavam Era raro o dia em que não abria as vidraças da janela para gritar com os pulmões que lhe restavam: “Pirem-se daqui, catraios. Vão jogar à bola para outro lado e deixem-se de gritarias. Arre, que uma pessoa nem consegue dormir uma sesta descansado. Qualquer dia perco a cabeça e corro convosco ao estalo.”

A embirração com os miúdos era tal que, a partir de determinada altura, passou a guardar aquele quarteirão da rua onde morava, impedindo-os de reinar. Ficava ali especado, de mãos cruzadas atrás das costas, como se fosse um polícia de giro. Os moços mais espigadotes ainda lhe faziam frente, teimando em imitar na perfeição as habilidades de Figo e dos seus pares, até que a bola lhes escapava e ia parar aos pés do velho Ambrósio…

Eu cheguei a contar dez bolas arrecadadas num canto do seu quarto, todas elas surripiadas aos jovens aspirantes a génios dos relvados, que, nessa altura, o brindavam com alguns mimos pouco agradáveis, mas merecidos: “Devolva a bola, seu jarreta d’um raio. Qualquer dia fazemos-lhe a folha, seu velho cadudo d’uma figa.” O Ambrósio enfurecia-se e remoía baixinho as piores pragas que lhe vinham à cabeça calva e já vermelha de a tanto coçar.

Certo dia, era fevereiro – lembro-me como se fosse hoje –, o Ambrósio estava de sentinela à porta de casa, pronto a dar caça aos que se atrevessem a fazer da rua um parque de brincadeiras, um palco de tropelias e algazarras, um campo de futebol improvisado. O tempo estava frio e húmido e soprava um vento forte e agreste. Tinha chovido durante toda a manhã e não se via vivalma na rua. O meu velho tio batia o dente, mas não largava o seu posto.

De súbito, como se saíssem do denso nevoeiro que acordara a cidade e que continuava a impedir que o sol inundasse as ruas, quatro moços caminhavam em direção a Ambrósio. “Lá vem o bando dos quatro” – pensou o velho. Vinham de rostos cobertos, um deles com um lenço que só lhe descobria os olhos, outro com uma mascarilha, os outros com meias enfiadas na cabeça. Colocaram-se em fila diante do Ambrósio e todos à uma sacaram de pistolas.

O meu pobre tio tremeu que nem varas verdes. A cara encheu-se de uma palidez de pânico quase transparente, que deixava ver as magras veias sem pinga de sangue. Os seus dentes batiam mais do que o descompassado coração, o suor caía em bica pelas faces gretadas, a boca secava, secava, secava, até que se abriu num grito sufocado pelo medo. De olhos muito abertos e boca escancarada, Ambrósio gelou quando um dos miúdos gritou: “Um, dois… disparar!”.

Esguichos de água fria encheram a boca do meu velho tio! O silêncio sepulcral de Ambrósio misturou-se com mil gargalhadas de crianças justiceiras, que juraram vingar naquela tarde os tormentos de dias sem conta vividos à custa do velho. Era terça-feira de Carnaval! Os miúdos correram rua abaixo e o meu velho tio galgou escadas acima. Os garotos foram pregar partidas para outra freguesia e o Ambrósio foi enfiar-se no seu quarto, tolhido de frio e de… medo.

 

CONVITE AO LEITOR

E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, repetimos o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em função da sua qualidade e a originalidade, do terceiro conto do nosso concurso, da autoria de Inspetor Mokada, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).

A competição prossegue na próxima edição com a publicação do quarto conto, desta vez com assinatura de Ma(r)ta Hari, repetindo-se o processo de avaliação crítica dos nossos leitores durante o mesmo espaço temporal de 30 dias. A sua colaboração é fundamental, caro leitor!