A PEDRA-UME DA ANTIGUIDADE AOS NOSSOS DIAS E O SEU FABRICO NOS AÇORES (2)

O seu fabrico nos Açores

Como já escremos sobre este assunto, vamos dispensar as fontes de informação nesta crónica, que estamos tentando encurtecer a todo o custo.

Segundo o Dr. Gaspar Frutuoso, em 1553 o seu grande amigo Dr. Gaspar Gonçalves, ainda antes de concluir os seus estudos e vivendo na vila da Ribeira Grande, foi o primeiro a visualizar a possibilidade de se fabricar em São Miguel a pedra-hume.

Um dia foi até ao Vale das Furnas, e observando as caldeiras e zonas circundantes, reparou em certos nitritos, depositados naturalmente no solo. De princípio, pensava ser “salitre” (nitrato de potássio?). Um dos sais que naquela época se usava para explosivos.  Para tirar dúvidas levou  consigo uma pequena quantidade daquela massa e pediu opinião ao bombardeiro flamengo Mestre Jacques.

Depois de algumas experiências, com resultados negativos, chegaram à conclusão de poder tratar-se de componentes de pedra-ume, porque tinham o mesmo “sabor”.  Por esta razão, o “Gasparinho” amigo de Frutuoso pediu a um surrador que experimentasse aquele material nos seus curtumes. Este, por sua vez, ficou surpreendido com os resultados e daí por diante não quis usar outra coisa.  Tratava-se realmente de pedra-ume.

Em Setembro daquele mesmo ano de 1553, Gaspar Gonçalves voltou a Salamanca para terminar os seus estudos. Ao regressar, dali a quatro anos, encontrou em São Miguel um aragonês chamado João de Torres, que andava nesta ilha a trabalhar com os minerais dela, com licenças legais. Tendo reparado que Torres era ambicioso, Gonçalves levou-o às Furnas, e mostrou-lhe os resíduos na área das caldeiras, convencendo-o, de certo modo, com a possibilidade de se poder dali extrair ou fabricar pedra-ume.

Uma exploração rentável para ambos foi o acordo final. Fizeram-se as primeiras amostras, e João de Torres foi a Portugal Continental obter as respectivas provisões d’ el-Rei.

Por morte d’ el-rei D. João III, em 1557, e pelo facto do herdeiro da Coroa ter somente 3 anos de idade, governava Portugal a Rainha D. Catarina. João de Torres deu-lhe conta da existência da pedra-hume em S. Miguel, e quebrando traiçoeiramente o trato que fizera com o Dr. Gaspar Gonçalves, requereu as licenças só para si.

Tratava-se de um avolumado investimento, que seria quase na totalidade subsidiado pelo Reino, com visão de futuros lucros, acabando sendo pertença real.

Como nunca se havia fabricado em território português a dita pedra-ume, o governo tinha de acautelar-se com o capital que iria investir. Por isso, enviou à ilha dois homens que, infelizmente, não percebiam nada do assunto, para averiguarem e levarem com eles mais umas amostras.

João de Torres, não se conformando com o trabalho que estes dois haviam feito, mandou construir umas casas nas Caldeiras da Ribeira Grande, e nelas fez 12 ou 16 arrobas de pedra-ume, e desta quantidade enviou nova amostra ao Reino.

Tendo gostado daquilo que viu, a Rainha enviou Filipe Silveira a Cartagena (Espanha) afim de contractar alguém que percebesse do assunto. Este conseguiu trazer a Portugal um Francisco Caravaca, que trabalhava como bagaceiro na fábrica d’ el-Rei de Castela.  Esta descrição, ou título de trabalho, é explicada por Frutuoso como “deitar a terra que sai da balsa no rio”. Por outras palavras, este homem seria um especialista em desperdícios. Mas vendo isto pelo lado positivo, temos a certeza de que para fabricar a pedra-ume, este cartaginês seria mais entendido do que qualquer português fora do assunto.

Francisco de Caravaca foi para S. Miguel no ano de 1563.  Nesta altura a Rainha já não era a regente, mas sim o Cardeal Dom Henrique.

Quando Francisco Caravaca chegou a S. Miguel, a ilha encontrava-se sofrendo, ao mesmo tempo cicatrizando os golpes da Mãe Natureza, e as pessoas estavam dominadas pelo desespero. Um clima de plena actividade vulcânica, que se iniciara em junho daquele ano, e a partir da qual a Lagoa do Fogo nasceu.

Depois de certas curiosidades e com alguns receios, o “mestre” Francisco disse a João de Torres que fizesse a pedra-ume, do mesmo jeito que antes fizera. Vendo os resultados, afirmou que na sua terra não se fazia melhor.

Caravaca ganhava 260 réis por dia. Mesmo com a ilha no estado em que se encontrava, não havia tempo a perder. Assim, das casas das Caldeiras da Ribeira Grande saiu um bom monte daquele precioso produto, com destino a Lisboa  em Outubro daquele ano de 1563.

Em Portugal Continental, as notícias e provas do minério transformado foram bem aceites. Por isso, logo trataram de arranjar mão-de-obra e materiais necessários, para que se construísse em S. Miguel uma fábrica com as condições precisas. Francisco de Maris foi designado Feitor de el-Rei. Filipe Silveira, aquele que foi a Cartagena e contratou o bagaceiro, tinha duas irmãs em estado livre. Uma delas casou-se com o viúvo Francisco de Caravaca e a outra com o filho. Voltaram a S. Miguel e em Setembro de 1564 começaram a construção da fábrica, nas Caldeiras da Ribeira Grande, que envolveu mais de setenta pessoas. Enquanto durou a construção gastou-se em ordenados seiscentos e noventa e oito mil réis. Isto seria somente com os denominados “trabalhadores”.

As caldeiras (duas) custaram cento e sessenta mil réis, com transportes incluídos dos mestres que foram a S. Miguel fazê-las. Frutuoso fala em um Martim Navarro, “carpinteiro da rainha” e em um Cosme Dias, “fundidor de el-rei”. Este último foi quem fez os dois pratos para o fundo das caldeiras, usando 87 quintais de metal (cerca de 5.111,424 kg.).

Os edifícios, com os respectivos materiais de construção (incluindo telha) e mão de obra, custaram três mil, duzentos e cinquenta e sete cruzados. Por outras palavras, valendo o cruzado 400 réis, seria: um conto, trezentos e dois mil e oitocentos réis (1.302$800.00). O total deste empreendimento, segundo Gaspar Frutuoso foi de dois contos e duzentos e cinquenta mil e duzentos réis…” (2.250$200.00).

Não hajam dúvidas que esta soma representava um grandioso e perigoso investimento para a época. O único ponto positivo foi a criação de postos de trabalho na área da Ribeira Grande, numa altura em que muita gente queria abandonar a ilha.  Mas, graças a este movimento industrial, os ânimos foram companheiros das pessoas.

João Marinho dos Santos, no seu livro intitulado “Os Açores nos Séculos XV e XVI” (I volume, página 341, edição de 1989), diz o seguinte:

“As instalações da fábrica da Ribeira Grande constavam de: «uma grande casa» que funcionava como cubaria, dispondo-se 16 cubos de cada lado (cada um comportava cerca de 6 pipas de água), alimentados por uma cale que nascia de tanques com lechia (água cozida em pedra-ume); uma outra casa em que estavam duas grandes caldeiras (para cozimento da pedra) e dois tanques; uma terceira para enxugar a pedra, depois de fabricada; e as «lógeas» onde era então armazenada.   Nas pedreiras perto da fábrica, funcionavam 7 fornos, onde a pedra era cozida, e duas casas grandes para a resguardarem da chuva.(…)

No dia em que se fazia cozimento de pedra, tornava-se necessário mobilizar cerca de 60 homens, entre os quais 10 ou 12 carreiros para o transporte da pedra e da lenha.   O pessoal efectivo contava: 1 mestre, 1 escolhedor de pedra, 4 paleiros, 1 lançador de terra, 4 ou 5 maçadores (para maçarem a pedra já cozida), 1 bagaceiro, 1 balseiro, 1 forneiro de caldeira com ajudante,, 2 forneiros, 1 armador, 1 escrivão, 1 apontador (que servia também de capataz) e 1 feitor.   Ao todo cerca de 22 pessoas. Em fase posterior, os maçadores foram substituídos por um instrumento moageiro semelhante a um engenho de pastel, isto é, funcionando com uma roda vertical que girava em torno de um eixo fixo.”

É de notar que as fontes da história insular não mencionam trabalho de escravos nesta segunda metade do século dezasseis nas ilhas dos Açores. Aqui fala-se em ordenados, sabendo-se de antemão que esta era uma empresa do Estado (ou da Coroa).

Segundo Gaspar Frutuoso, no mesmo ano de 1565, fez-se cento e noventa fornos de pedra-ume, extraída da pedreira das Caldeiras e da Caldeira Velha, mas nenhuma dela prestou, pelo que deram culpas a Francisco Caravaca, dizendo que ele fazia perder a pedra propositadamente, regando a pedra com água.

Pelo insucesso, houve briga entre Maris e Caravaca, que voltaram ao Reino no mês de Junho de 1566, regressando à ilha em outubro do mesmo ano. A fábrica deixou de laborar por seis meses, enquanto se fizeram muitas eiras de pedra, na zona da Caldeira Velha (Pedras Brancas) e nas Caldeiras.

Desta vez o regresso de Francisco de Maris trouxe mais peso à Ilha de S. Miguel. Antes era feitor d’ el-Rei na fábrica da Ribeira Grande, agora regressou com outro título e outros lhe foram dados mais tarde. Além disso, trouxe consigo a esposa, os filhos e uma Carta Régia datada de 14 de Agosto do mesmo ano, que lhe garantia o ordenado de 100$000 (cem mil réis) pagos em trimestres e o título de Provedor da Fábrica de Pedra Ume em São Miguel.

Outra vez insucesso, por causa do Mestre Caravaca ter novamente regado a pedra com água, pelo que foi proibido dali em diante de entrar nas instalações. Remédio santo, pois a fábrica começou a produzir a todo o vapor.

Em 1567 fizeram-se 680 quintais de pedra-ume que foram enviados a Lisboa. Com este carregamento seguiu uma carta do Provedor para o Cardeal D. Henrique, a contar o que se tinha passado. O resultado foi a reforma antecipada de Caravaca, passando João de Torres à categoria de Mestre e a ganhar 300 réis por dia.

Com esta nova posição, em 1569 fez a fábrica produzir 1.603 quintais (quase 95.000 Kgs.). Foram para o Continente oitocentos e sessenta, sendo vendidos em Lisboa por 1$500.00 (mil e quinhentos réis) o quintal (quatro arrobas). O restante produto foi vendido em São Miguel a um mercador de Ponta Delgada e a alguns ingleses.

Ou o artigo era bom demais e duradouro, ou apareceu competição no mercado, porque as “glórias” foram cantadas por pouco tempo. Surgiram problemas de vária ordem e fizeram afrouxar a produção, que teve de parar a vinte de Agosto de 1570.

João de Torres, porém, não desistindo facilmente, aplicou-lhe alguns capitais e continuou fabricando uma pequena quantidade. Consta que a fábrica ainda funcionou até ao ano de 1574, quando encerrou definitivamente.

Não se dando por vencido, Torres ainda quis experimentar a sua sorte nas Furnas, mas acabou por endividar-se. Depois comprou a fábrica abandonada da Ribeira Grande em 1578 por 126$423.00. A partir desta compra nunca mais se ouviu falar no fabrico de pedra-ume, e cerca de um século mais tarde já nem as ruinas da fábrica existiam.

 

Fall River, Massachusetts, 4 de setembro de 2022

Alfredo da Ponte