“É NECESSÁRIO QUE A OFERTA TEATRAL SEJA CONSTANTE”

A nossa convidada de hoje para mais uma reflexão sobre o teatro profissional em Gaia é a atriz, encenadora e dramaturga Linda Rodrigues. Licenciada em Teatro na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo e Mestre em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estreou-se como atriz em 1998 e como encenadora em 2009. Como atriz, destaca-se os seus trabalhos em “O Fantasma de Canterville (enc. Alexandre Passos), “Pedro e o Lobo” (enc. Castro Guedes), “Pedro e Inês” (enc. José Carretas) e “O Crime de Aldeia Velha” (enc. Júlio Cardoso).

Como encenadora, salienta-se a criação dos espetáculos “Desequilíbrio”, “Os Engenhocas”, “Na Linha da Frente” e “Pimenta na Boca”, entre outros. Paralelamente, o seu gosto e aptidão para a escrita foi-se refletindo em inúmeros originais, alguns deles já editados, como foi o caso do conto “Amor em 3 Capítulos, que integra o livro “Textos de Amor” (edição Quidnovi), do conto para a infância “Gaspar, o Traquinas, e as duas Meninas” (edição Opera Omnia) e da peça de teatro “Mortos de Fome” (edição Fundação Inatel), vencedora do Grande Prémio de Teatro da Fundação Inatel em 2013.

E foi a sua peça “Circo” que a trouxe até Vila Nova de Gaia, para dirigir os atores amadores d’ Os Plebeus Avintenses, depois de com eles ter trabalhado num espetáculo profissional dirigido por Castro Guedes. Ultimamente, temo-la visto como apresentadora das Galas da Escola de Ginástica de Gaia e do GAIA IT-Torneio Internacional de Ginástica Artística Feminina. Passemos-lhe, então, a palavra:

 

Na tua opinião, o que falta para que Gaia se constitua alternativa à oferta cultural da cidade do Porto, designadamente no domínio das artes performativas?

Muito pouco. Gaia, ao contrário do que se poderia pressupor, pode privilegiar com a proximidade ao Porto. Ainda funciona como uma cidade dormitório, o que não tem de significar ausência de vida cultural. Em termos práticos, se uma família regressa ao fim de um dia de trabalho, dificilmente voltará a atravessar a ponte para ver um espetáculo e repetir o percurso no dia seguinte. Gaia tem todas as infraestruturas capazes de acolher espetáculos regularmente. Certamente, com especificidades distintas das que existem no Porto. Mas Gaia não tem necessidade nem de imitar uma cidade que lhe é próxima, nem de tentar perceber quais as lacunas para poder suprimi-las, como foco de atração. Gaia distingue-se na música, no teatro e até no desporto per si. “…entendem-se melhor as coisas quando se tem uma visão clara de como se formaram”, terá dito Aristóteles.

 

Como vês neste momento a realidade cultural em Gaia, nomeadamente no que se prende com a arte teatral, e que caminhos deviam ser prosseguidos?

Existem grupos recreativos e culturais centenários em Gaia, que se mantêm em atividade, com uma exigência e brio inquestionáveis. Essa continuidade é também assegurada pelo público. Temos, desde logo, algumas das premissas necessárias para a oferta de cultura em Gaia: fazedores e espectadores. É também um facto que o público acorre aos espetáculos dos grupos amadores motivados pelos preços e pela familiaridade com as associações. Mas existe, vai e compreende. O passo é mínimo. Discordo quando se diz que temos de ir ao encontro dos públicos. Discordo totalmente. O Porto sofreu da mesma maleita há uns anos, incentivado pelas ideias, digamos que muito singulares, de um só autarca. Era a sua visão. A de querer tornar o Porto numa Broadway autossustentável. E assim como a Broadway nunca será o Porto, o Porto nunca será outra coisa qualquer, nem Gaia tem de competir com o Porto. Não precisamos de importar conceitos ou condescender na qualidade. Viu-se, aliás, o flop desastroso que foi. Devemos oferecer propostas e divulgá-las. Oferecer, no sentido apenas de dar diversidade. Quando os espetáculos são esporádicos, o público não tem rotina.

 

Face à reduzida presença de público nos espetáculos por falta da rotina a que te referes, há quem defenda a distribuição gratuita de ingressos. O que te parece?

É necessário que a oferta seja constante. Esta coisa de oferecer bilhetes é perigosa para a própria vitalidade da cultura. E é necessário que os acontecimentos culturais sejam divulgados. Aí, evidentemente e já é assim há muito, tem de haver uma vontade e disponibilidade política capaz de entender as necessidades reais das diferentes performances e das estratégias de publicidade junto dos cidadãos, bem como na intervenção junto de escolares. Parece-me que a abordagem de levar os miúdos a verem “peças escolares” os tem distanciado ainda mais. Há espetáculos. Todos eles com uma classificação etária. Levemos os alunos a vê-los. Criar propositadamente para um público escolar, é uma condicionante, tanto para os criadores como para o público, que se vê num sistema de formatação repetitivo e pouco apelativo, na maior parte das vezes. Deve ser terrível ter de ir ao teatro, para tirar boa nota no teste de Português. A visão política na gestão, logística, planeamento, apoio e incentivos deve ir além destes parâmetros. Convinha também que para esta abordagem ser pensada convenientemente, os políticos deste pelouro fossem cidadãos com formação na área ou tivessem, pelo menos, a humildade de ouvir os agentes culturais.

 

Na tua opinião, até que ponto a concertação de estratégias entre o teatro amador e o profissional pode propiciar o enriquecimento da oferta teatral de Gaia?

Sou de Viana do Castelo, onde durante muito tempo (até ao final dos anos 80) só existia teatro amador. O surgimento do teatro profissional acabou com o teatro amador, que só renasceu já nos anos 2000. Felizmente, em Gaia, isso não aconteceu. Vejamos o caso dos Plebeus Avintenses e do Grupo Mérito Dramático, por exemplo. Aqui, não me parece que a política deva ou possa ajudar nessa concertação. A cultura deve, tanto quanto possível, não depender da política. Nenhum regime deve estabelecer cânones à cultura, sob risco de a converter em propaganda. Quem faz teatro deve ter abertura suficiente para perceber que todo o teatro é válido, independentemente da formação e da atividade principal dos seus fazedores. No entanto, a política deve estabelecer relações que permitam o propiciar de atividades culturais. Parece-me que os grupos amadores ou profissionais podem trabalhar juntos permitindo, por exemplo, o intercâmbio de públicos. O regime político deverá estar atento e facilitar deslocações e instalações para sessões de trabalho. A própria noção de cultura alargou-se no tempo, permitindo que fatores como religião, educação ou posição económica e social dos seus intervenientes não seja impeditivo ou essencial, mas antes bem-vindo à criação e produção de diferentes conteúdos.

 

Além de ser um poderoso instrumento de inclusão e cidadania, o teatro pode constituir-se num importante meio de criação de valor económico. Concordas?

Eu acho que há uma visão generalizada sobre o teatro que não corresponde à verdade, em grande parte devido ao desconhecimento das suas especificidades, do público em geral. O teatro não é só dos atores, nem para atores. É do público, dos técnicos, é dos cenógrafos, escritores, é da pessoa que assegura a limpeza, a bilheteira, a frente de casa, a assistência, a maquinaria, os jornalistas, os críticos… O teatro estabelece uma quantidade de diálogos transversais. Praga e Buenos Aires, entre outras cidades, promovem o teatro como atração turística. E há todo um envolvimento dos serviços ao seu redor, que se prestam ao conforto tanto de espectadores como de trabalhadores do teatro: os restaurantes, os cafés, os transportes públicos, os parques de estacionamento, os bares, mesmo os serviços que fornecem matéria prima ao teatro. Eu não vejo mal nenhum em encararmos a coisa do ponto de vista do negócio. No âmbito da criação, acho é que isso não a deve condicionar. Mas o teatro deve e pode gerar lucro. Em 2012, a cultura contribuía em 3,3%, do PIB Europeu, num total de 6,7 milhões de pessoas empregadas. Isto tem um peso macroeconómico brutal e ignorar isso é desvalorizar o trabalho de uma quantidade enorme de cidadãos que fazem parte do processo e contribuem para a riqueza dos países. Ao fim e ao cabo, foi nisto que nos tornámos… números.

 

Há quem defenda que a criação e apresentação de espetáculos teatrais devia ser sustentável, dispensando a ajuda dos organismos públicos. Achas isso possível?

Não acho impossível, mas acho difícil. A menos que façamos sempre espetáculos com poucos atores e poucos ou nenhuns recursos cénicos. Numa altura como esta, em que adulterámos o conceito de lotação esgotada, por medidas sanitárias, seria um fenómeno extraordinário, no qual não acredito. O teatro é uma arte multidisciplinar em que 90 por cento ou mais do tempo de trabalho são ensaios. Sobretudo o tempo de criação tem de ser apoiado. É muito difícil controlarmos quando é que um espetáculo está pronto. Idealmente, será quando estiver. Na prática, não pode ser. O Estado paga a formação de um médico e paga-lhe para que ele depois esteja apto a salvar vidas. De igual forma, paga professores. O teatro associa saúde e educação, num cocktail (preferes um drink?). Não sei porque não há de ser financiado de igual forma, se tem a mesma importância. E depois há a questão que ainda prevalece num orçamento familiar: quanto é que cada família despende mensalmente para teatro? O poder de compra em Portugal é muito pequeno. Associando isso à pouca qualidade da educação, o teatro é remetido para um terceiríssimo plano na vida das pessoas. Desta forma, não é possível a sustentabilidade do teatro.

 

Como explicas então que pessoas com responsabilidade a nível de governação local ainda olhem de lado para o investimento público na criação e produção teatral?

Quando digo que sofremos um problema de educação, não excluo os governantes dele. Não basta ser alfabetizado. Neste momento, não basta sequer ter um curso. Digo isto com tristeza. Os maiores problemas de um país têm todos a mesma causa: educação.

 

A terminar, fala-me de ti: quais são os projetos em que estás neste momento envolvida e quais são os teus sonhos ou desejos que ainda estão por realizar?

Quando era pequena sabia exatamente que seria atriz. Lembro-me de passar noites a chorar só de ponderar a hipótese de não o ser. Agora sinto-me muito mais uma profissional do espetáculo. Escrevo, enceno, dirijo e até faço cenografia, desenho de luz e sonoplastia. Mas sempre na perspetiva de atriz. Eu sou mesmo uma apaixonada pelo teatro. O que é extremamente cansativo. A paixão consegue ser uma coisa horrível de tão cruel e dolorosa. Neste momento, estou à espera de melhores dias para que os meus “Mini Contos da Meia Noite” se transformem em livro. Houve o convite de uma editora e às custas de uma pandemia tivemos de adiar. Talvez escreva um mini conto sobre isso. Entretanto, continuam publicados com alguma regularidade nas redes sociais, com logótipo de Kisto (da Spider Tatoos) e o apoio digital do Broots. Eu e a Joana Teixeira fundamos as Contilheiras – as coscuvilheiras, as mulheres que contam tudo. Recolhemos expressões e poesia popular e contamos a quem nos quiser ouvir. Em 2020 convidámos as atrizes Ni Fernandes e Patrícia Queirós para se juntarem a nós. Temos a sorte da Inês Cardoso (produção) e o José Galvão (comunicação/audiovisual) colaborarem connosco. Esperamos fazer digressão pelo país, mal nos seja possível. Colaboro na promoção do pião Ana de Viana, uma peça de artesanato criada pelo Arnaldo. Em agosto estarei em cena como protagonista d’ “O Crime de Aldeia Velha”, de Bernardo Santareno, numa belíssima encenação de Júlio Cardoso, para a Seiva Trupe, e acompanhada por um elenco fantástico. Continuo a lecionar no Bando dos Gambozinos e no AIJI Carolina Michaelis, atividade que levo muito a sério e onde sou muito feliz. Estou também envolvida no projeto mais arrojado da minha vida: a Alice e a Filipa.