O DIA DOS PERUS NA AMÉRICA

Chegaram a 31 de outubro, e mal assentaram pés em solo americano repararam que, realmente, a sua terra estava mesmo a muitos quilómetros de distância. Aqui era dia de mascarados e de onde tinham partido as pessoas só se mascaravam pelo carnaval. Mal sabiam eles que esta festividade popular era desconhecida nesta zona do Novo Mundo.

José e Olívia, mais seis filhos, deixaram Portugal numa das suas épocas mais conturbadas. Decorria o ano de 1975. O país não tinha conserto. Meia dúzia de filhos expostos aos ares do comunismo que se anunciava não era coisa boa. A América, isso sim. A terra-mãe da liberdade e da democracia daria novas oportunidades. As diferenças da cultura seriam levadas a sério, à medida que elas se fossem deparando. O rapaz, que era o filho mais velho, tinha dezasseis anos, as cinco raparigas eram entre si intervaladas entre um, dois, três e quatro, tendo a mais velha quinze e a mais nova quatro. Idades terríveis. Mas tudo se havia de remediar. Como todos os outros que da ilha saíram, trouxeram-na consigo, e o Senhor Santo Cristo dos Milagres sempre os acompanhou.

À chegada, as visitas e as boas-vindas dos familiares e amigos foram promissoras. Explicada a razão dos mascarados nas ruas, naquele dia, batendo às portas para receber rebuçados, porque era dia de Halloween, foi dito que em menos de um mês seria a festa do peru. O dia mais santo da sociedade americana. Mais santo que o próprio natal. Quando as famílias se reúnem à volta de uma mesa abastada, em paz e harmonia, dando graças a Deus por todas as bençãos recebidas durante o ano.

No dia 27 de novembro daquele ano, que foi a tal quarta quinta-feira do mês, a família recém chegada da Ribeira Grande, da ilha de São Miguel, acolheu-se em casa de um irmão da Olívia para o jantar do dia de Acção de Graças. Um Padre-Nosso, uma Avé-Maria e um Glória ao Pai pelas almas dos falecidos, um agradecimento a Nosso Senhor por todas as graças concedidas. Sopas servidas, ave para o centro da mesa. “Touqui” (turkey, em inglês) assado no forno, com os respectivos acompanhamentos, não faltando as batatas e o recheio, bem à moda portuguesa. Sim, porque o que interessa é ter a ave na mesa. Não importa o sabor que lhe damos. Numa casa portuguesa tem que saber a alho, sal e pimenta. Aquele foi um dia marcante e bem acolhido na diferença das tradições. Um bom princípio para o respeito da lei “melting-pot” dos Estados Unidos, política adversa ao multi-culturalismo.

 Por alguns anos o ritual do jantar de Acção de Graças conservou-se em casa de um cunhado do José. Mas tempos depois, verificando-se o crescimento das famílias dos irmãos da Olívia, e dela própria, houve a necessidade de cada uma estar sobre si, e assim, o dia dos perus começou a ser celebrado em casa da filha mais velha, passando a costume familiar por mais de vinte anos. Mas há a salientar um pormenor: na véspera do grande dia a matriarca tinha de se deslocar a casa da filha para temperar o “touqui”! Sim, uma ave daquele tamanho tinha de levar para o forno bastante vinha d’alhos e tudo o mais que os temperos da Ribeira Grande exigiam. Sublinha-se que não era necessário este seu trabalho, mas ela fazia questão. Uma maneira de se sentir útil no seio da família. Ela também confeccionava o recheio. Isto, então, era o que desaparecia mais depressa. Todos se deliciavam com ele, ao ponto de lamber os lábios e pedir por mais, até à maioria saber a lista dos seus ingredientes. Porque quando o segredo foi revelado sobrou só pão-de-milho com chouriço, e o recheio nunca mais teve o mesmo sabor. Afinal, não deve ser crime usar os órgãos vitais da ave, porque os perus congelados que se compra nos supermercados trazem-nos consigo dentro de si. Mas, pronto! Há que respeitar as opiniões e os gostos de cada um. Antes do jantar, o momento da oração, cujas honras cabiam ao patriarca. E o José nisto era bom.

As famílias dos filhos da Olívia também cresceram. Já não cabe toda a gente na mesma casa para a celebração do Thanksgiving, mesmo usando duas ou três mesas. Ainda assim, quem tem mais espaço insiste com os outros a ir à sua casa. Faz-se tempo e não se pensa duas vezes, porque a família é a base do ser humano e da sociedade a que pertence. Na família tudo começa, e a maior alegria dos pais é ver os filhos reunidos. Portanto, em acção de graças ao Pai do Céu, reunem-se os filhos na Terra em paz e amor.

As empresas gratificam os seus empregados nesta altura do ano, oferecedo um peru com alguns acompanhamentos, ou optam pelo seu valor monetário. A primeira vez que José foi gratificado nesta altura do ano, o patrão, que não falava português, pediu a alguém para explicar ao José a intenção daquela oferta de dez dólares. O tradutor foi um luso-americano, que por sinal nunca tinha ouvido falar em perus, ou talvez pensasse que eles em Portugal não existiam, disse ao José: “Isto é para comprar o touqui. Sabes o que é o touqui? É aquela galinha grande para comer quinta-feira.”      

 Esta tradição na América do Norte, como todos sabem, teve a sua origem na celebração da primeira grande colheita da colónia de Plymouth, Massachusetts, na segunda década do século dezassete. Em precisão as opiniões divergem, mas todas estão nisto baseadas. No Canadá, como não é novidade para ninguém, o dia do “Thanksgiving” assinala-se todos os anos na segunda segunda-feira do mês de outubro, quando nos Estados Unidos se comemora o Dia de Colombo. Cada terra tem seu uso, cada porca um parafuso e cada roca tem seu fuso. Com raizes mais sólidas, recuamos ao ano de 1620. Os passageiros do navio Mayflower que sobreviveram a viagem da Inglaterra até ao Novo Mundo chegaram em Novembro, e o inverno daquele ano cifrou uma grande parte deles. No ano seguinte lançaram sementes à terra e esta foi generosa para com eles. O governador da colónia, William Bradford (1590-1657)resolveu organizar uma grande festa, onde participaram com eles algumas dezenas de índios. Patos, perus, peixes, veados, milho, abóboras e outros manjares fizeram parte deste banquete que durou alguns dias. A partir de então depois da colheita de cada ano passou-se a fazer uma festa de gratidão a Deus na Nova Inglaterra. A divulgação foi rápida e espalhou-se depressa pelo continente. O presidente Lincoln, em 1863 determinou que a última quinta-feira do mês de novembro fosse o dia de acção de graças. Mas, em  1941 Franklin Roosevelt rectificou esta determinação, assinalando a quarta quinta feira do mesmo mês, que nem sempre é a última de novembro. É feriado nacional por excelência. Como já se disse, é o dia mais santo e santificado da América. O anterior é conhecido pelo mais movimentado nas estradas, portos e aéroportos porque as pessoas se deslocam, por vezes longas distâncias para estar com familiares no dia seguinte. O posterior, conhecido por “black Friday”, é aquele que mais dinheiro movimenta. Há retalhistas que só neste dia fazem um terço do seu lucro anual.

 É neste fim-de-semana do que se começa as decorações das luzes, das árvores e dos presépios, e se faz as primeiras compras para ofertas. É o início da quadra natalícia. É família, é football (americano). Tanksgiving é o dia da Parada do Macy’s, em Nova Iorque, que é transmitida em directo nos principais canais de televisão nacional. É dia de solidariedade. Dá-se de comer aos famintos e abrigo aos desalojados. Por excelência Dia de Deus e dos seus Filhos. Dia de Acção de Graças deve ser cada um dos trezentos e sessenta e cinco do ano. Mas como isso ainda é impossível, que se comemore um condignamente. Assim seja por muitos e muitos anos. José e Olívia adoram este dia. E nós também.

Fall River, MA., 4 de Novembro de 2019

Alfredo da Ponte