“O TEATRO É UM DIREITO BÁSICO DE QUALQUER CIDADÃO”

Maria Clara Gonçalves, docente de Ensino Especial, colaboradora do Carl Orff Projeto – Educação Musical e atriz no projeto Orgânica – Sombras e Sons, é a nossa convidada para mais uma reflexão sobre o teatro profissional em Gaia. É igualmente cofundadora e diretora de produção da Real Companhia de Teatro do Chulé, projeto teatral dedicado ao teatro para crianças e jovens nas vertentes da educação/formação e produção/criação de espetáculos, que privilegia o teatro físico, de fantoches, marionetas, sombras e contador de histórias.

E é nessa qualidade que regressa brevemente a Vila Nova de Gaia, trazendo o espetáculo “A História dos Tigres”, construído a partir do Prémio Nobel (1977) Dario Fo (dramaturgo, encenador e ator italiano), com encenação e interpretação do ator e músico Paulo A. Jorge, com o Ensemble Carl Orff. A peça será apresentada em estreia no dia 20 de novembro, às 16h30, no auditório da Tuna Musical de Santa Marinha, no âmbito do Festival de Teatro José Guimarães, e tem como público-alvo crianças e jovens. Foi essa a razão que motivou esta entrevista com Maria Clara Gonçalves, mas não a única. Fique a par de toda a conversa, que teve sempre o teatro por dentro.

 

 

Para começar, fala-nos um pouco da Real Companhia de Teatro do Chulé. Que objetivos presidiram à sua criação e como tem sido a caminhada até ao momento?

A Real Companhia de Teatro do Chulé é uma invenção do Paulo [Paulo Alexandre Jorge]. Isto é: a determinado momento, e na sequência das suas várias e muitas experiências profissionais artísticas no domínio do teatro para a infância e juventude, sentiu necessidade de criar uma “estrutura” que os albergasse de forma distinta dos projetos que ele também desenvolve no domínio da música (e que estão enquadrados pelo Carl Orff Projeto – Educação Musical – projeto esse que este ano cumpre 20 anos de atividade!!). Ou seja: as atividades musicais são organizadas pelo Carl Orff Projeto e as atividades teatrais pela Real Companhia de Teatro do Chulé. O nome é um gozo: Real Companhia é pretender dar ares de sério a algo que é a brincar (e brincar é a coisa mais séria do mundo, não é?), e Chulé tem tudo a ver com o universo do Paulo, que é um puto, um miúdo em ponto grande como os outros miúdos em ponto pequeno! O convite para fazer parte deste projeto de teatro para crianças não existiu; isto é: era por demais natural e evidente que eu estaria envolvida! Voluntária à força!! É o que dá viver com o artista em casa!! Até porque o Paulo não tem grande jeito para a produção! E, vamos a ver, agora mais a sério, todos sabemos da importância de haver alguém que cuide dos aspetos da produção, libertando os artistas para os aspetos da criação. Ora bem: o objetivo principal da Real Companhia de Teatro do Chulé é potenciar e oferecer a crianças e jovens momentos de vivência estética através das várias formas de fazer teatro (teatro de sombras, teatro de fantoches, teatro físico, contação de histórias, etc.). E já vão seis anos a fazer coisas nesse sentido! Sem querer, passamos por fases! Tivemos uma fase inicial com muitos projetos de teatro de fantoches, uma paixão do Paulo (montamos espetáculos como “Uma História de encantar que pode acabar mal!” e “O Monstro Mioleira”), passamos por outra fase em que exploramos imenso o mundo do teatro de sombras (montamos espetáculos como “Sons e Sombras”, em que tudo o que acontecia era improvisado, música e sombras a acontecer em reação espontânea, era mágico, e fantástica a reação dos miúdos ao “abstrato” que surgia), avançamos depois para um projeto mais estilizado de formação teatral para crianças, o TREARTRO, que devido à pandemia teve que suspender as suas atividades e agora, nesta fase, de há uns três anos, estamos mais apostados na criação de espetáculos a partir da técnica do “Contador de Histórias”, vertente que o Paulo adora e tem vindo a desenvolver – temos em cartaz o “Morte, Medos e Paixões”, a “Avó Adormecida” e, de certa forma, este que vamos estrear no Festival de Teatro José Guimarães, “A História dos Tigres”.

 

Face à importância do teatro na construção emocional e cognitiva das crianças, de que forma é que a comunidade escolar devia interagir com as estruturas teatrais?

Nas estruturas educativas, quer particulares, quer estatais, a presença das atividades teatrais ainda é insipiente, diria até que é o parente pobre das atividades artísticas escolares – salvo raras exceções, encontram-se facilmente atividades de expressão plástica, atividades de educação musical, dança e movimento, mas as atividades de expressão dramática quase não existem como “disciplina”, digamos assim; da experiência que levamos no trabalho com as escolas, dá-nos a sensação que a comunidade escolar não tem bem essa consciência, da importância das atividades teatrais no desenvolvimento das crianças e dos jovens, de a expressão dramática valer por si própria (e não apenas como suporte ou apoio integrador de todas as outras áreas expressivas); para além de que, partindo dessa ignorância, ficarmos com a sensação de que paira a ideia de que qualquer um consegue fazer teatro para crianças e jovens, basta ir para trás da barraquinha e animar os fantoches, ou ir para trás da estrutura e rapidamente se inventam umas sombras, ou que todos temos qualidades para contar, efetivamente e bem, uma história; raramente há perspetiva educativa, pedagógica, curricular; predomina a lógica da animação. Isto, salvo raras exceções, repito. E essas exceções fazem o que deve ser feito: têm profissionais com formação específica teatral a orientar o teatro nessas comunidades, destinam uma carga horária semanal consistente e alocam os meios materiais necessários, tal como projetam, potenciam e criam no seu projeto anual momentos de animações e espetáculos teatrais nos seus espaços educativos, bem como se organizam no sentido de fruírem de espetáculos teatrais que acontecem fora da escola, no nobre e mágico espaço chamado teatro.

 

De que maneira podem ou devem as câmaras municipais mediar um diálogo entre as estruturas de criação teatral e a escola, que ajude a alterar esta situação?

Eu e o Paulo vemos a arte e o teatro, neste caso específico, como um direito básico de qualquer cidadão. Nesse sentido, faz todo o sentido (e desculpa a redundância!) que o teatro surja na educação formal (e informal!) de todos desde tenra idade. Nesse sentido ainda, e sendo a Câmara Municipal o órgão institucional primeiro de gestão de uma cidade, o seu papel é decisivo como criadora das condições básicas e primeiras e fundamentais para que os habitantes dessa cidade vivam como efetivos cidadãos. As Câmaras, com os relativamente recentes projetos políticos “mais ou menos explícitos” de municipalização da ação educativa estatal, asseguram muitos domínios da operacionalização educativa das escolas públicas da respetiva cidade; e tutelam, grande parte das vezes, a oferta das atividades ditas artísticas nas escolas (do primeiro ciclo, por exemplo). É claro que essa ação é positiva. Questionável é o modo como essa operacionalização acontece. No modelo atual das chamadas e famosas AEC (Atividades Extra – Curriculares), pensamos que funciona mal. As atividades artísticas aí presentes surgem descarnadas do projeto educativo da escola, são apêndices, margens, momentos de guarda e entretenimento das crianças e dos jovens, que em nada jogam a favor de uma educação artística e a favor das próprias artes e das crianças e dos jovens. E, a maior parte das vezes, as atividades de Expressão Dramática nem sequer são oferecidas por parte do município – repete-se o ciclo: é oferecida a música, o movimento, o inglês, os computadores… Nada contra, mas… E, muitas das vezes, quando são oferecidas, são orientadas por profissionais sem formação teatral adequada – quem os coloca? Como fazem a seleção? A este aspeto, as Câmaras podem criar ações de formação teatral para professores, oferecer espetáculos nas escolas, espetáculos de qualidade, note-se, não piroseiras da bela adormecida pré-formatada com som em playback e prontos a consumir! Ou oferecer apenas e só projetos teatrais que ilustrem os textos presentes naquela lista do Plano Nacional de Leitura, forçando um teatro que sirva para – e, quanto a nós, esse teatro não serve para nada! Deveriam oferecer, também, espetáculos fora das escolas – de teatro! E de qualidade! Não bilhetes para irem ver a Cinderela no gelo!! Enfim, uma quantidade de coisas que uma Câmara pode fazer, dado o seu papel central no funcionamento escolar de uma cidade. Mas, para isso, é preciso terem, também, nos seus órgãos de gestão, nos seus quadros, artistas, ou professores – artistas, gente conhecedora da escola e da arte, das dinâmicas de um e outro domínio – e muitas das vezes não é isso que vemos: vemos técnicos, talvez muito bons, mas que de arte ou teatro pouco percebem.

 

Na tua opinião, os espetáculos de iniciação, isto é, os primeiros a que as crianças assistem, devem fazer o cruzamento do teatro com outras artes, ou essa multidisciplinaridade é irrelevante?

Eu e o Paulo não pensamos muito esse aspeto quando elaboramos as nossas propostas artísticas; naturalmente acontece que essas propostas sejam atravessadas por música, que é um domínio muito forte no nosso trabalho, mas também pelo domínio das expressões plásticas e do movimento, pelo domínio da palavra, das histórias, da poesia… não sei… se calhar, o teatro é ser isso tudo no momento, é permitir que tudo isso seja explorado e utilizado no momento…

 

A terminar, que a conversa já vai longa, fala-nos um pouco do espetáculo “A História dos Tigres”, a que o público mais jovem pode assistir no próximo dia 20.

A “História dos Tigres” é um texto que nos chega pela mão de Dario Fo com o título “La storia della Tigresa”; ou seja, numa tradução mais razoável, deveria chamar-se a “História da Tigresa”, mas decidimos chamar-lhe a “História dos Tigres” porque envolve também um tigre pequeno, um Tigrinho! A história não é original de Dario Fo. Ele recolheu-a da rua, de um contador chinês. E anotou-a brilhantemente. E ele próprio contou-a por diversas vezes. A “História da Tigresa” acontece durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, que durou de 1937 a 1945. Os japoneses invadiram a Manchúria, uma vasta região do leste da Ásia. A invasão japonesa provocou a união entre as diferentes forças e fações políticas da China, nacionalistas e comunistas. Mas as constantes divergências entre essas duas fações fizeram com que se rompesse a aliança, eclodindo uma guerra entre três forças, japoneses, nacionalistas e comunistas. O espetáculo mostra como o interesse de certas forças políticas nada tem a ver com as necessidades do povo, e sim, de um interesse pelo poder. Trata da luta do povo no seu dia-a-dia contra a burocracia e a demagogia dos políticos. O nosso “herói” – um soldado chinês – consegue com astúcia e um pouco de sorte, livrar-se de várias situações inusitadas depois de se separar de sua tropa. É ferido em combate, enfrenta tempestades, escala montanhas, sobrevive a diversas intempéries até se abrigar numa gruta. Ali, ele tem um inusitado encontro com uma tigresa e o seu filhote, começando uma estranha relação entre homem e animal. Mais tarde, cansado do seu “casamento” com a tigresa, ele foge desesperadamente sem rumo. Depois de caminhar dias, semanas e por fim meses, encontra acidentalmente uma vila que ainda não foi atingida pelas invasões. Ali ele conta as suas peripécias, mas ninguém o leva a sério. Entretanto a tigresa e o tigrinho reencontram-no. Ambos, tigresa e tigrinho, acabam por ser a grande arma para expulsar os invasores. É na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. Em muitas culturas, a identidade do grupo estava sob guarda de contadores de histórias, cantores e outros tipos de arautos, que eram os portadores da memória da comunidade. Buscando referências no próprio autor e ator, Dario Fo, e também nas tradições orais, este espetáculo retoma a simplicidade de um bom “causo”, contado para informar e também entreter. Um ator, o Paulo, uma boa história e um palco vazio. A palavra cria cenários, imagens, instiga o espectador a acompanhar o personagem em sua incrível jornada. Um espetáculo no qual os objetos, personagens e paisagens surgem pela sugestão, pela ação – física e vocal – do ator. O espaço transforma-se na relação do ator com o espectador através da palavra. Com a direção do próprio Paulo, o espetáculo terá música ao vivo interpretada pelo Ensemble Carl Orff – um projeto musical de jovens músicos criado e dirigido pelo Paulo há sensivelmente 15 anos, que tem participado em inúmeros projetos cénicos e teatrais. Neste espetáculo interpretará diversas músicas orientais, descobertas e transcritas por Margarida Fonseca (pianista do Ensemble). Penso que será um espetáculo muito bonito!