OS MEIOS QUE A SAUDADE RECORDA

 Sou mais do tempo da cervejinha fresca do que daquele dos copos, meios copos e “dezasseises”. Mas dou graças a Deus por ter sido nascido e criado num meio conservador de tradições, e do tempo em que as mentalidades acreditavam que o vinho de cheiro dava sangue novo e mantinha fortes os músculos dos homens trabalhadores.

Além do mais, vivi infância e juventude bem pertinho de uma mercearia que, sem ser taberna, tinha a fama de vender bom vinho ao copo, à garrafa e ao garrafão. Situada numa das melhores áreas da então vila-cidade, esta mercearia era uma paragem obrigatória a camponeses, operários e mesteres.

Ali muitas vezes se contratou braços para cavar ou lavrar a terra e, quase sempre, não havia contrato que não começasse e terminasse com um copinho de vinho de cheiro. Sou da terra onde um copinho de vinho, na taberna, era nada mais nada menos do que meio litro, e onde os forasteiros se espantavam com o volume, quando pela primeira vez pediam um copo. Esta terra é a mesma onde foi parar, um dia, um vendedor ambulante de Portugal continental, que por pouco escapou de uma boa coça, por causa da falsidade do seu produto. Bem, já que isto foi mencionado, tenho de contar a “estória”. Aqui vai:

     Os camponeses depois de um dia de trabalho, a caminho de casa, paravam na taberna e, sem excepções, bebiam um copo de vinho, da medida, como já se disse, de meio litro. A maioria levava o copo à boca e num só fôlego o despejava. O costume de ingerir tudo de uma só vez, lentamente para saborear, ou depressa para matar a sede, criou-lhes no cérebro um contador de líquido e um cronómetro. Certo dia passou pela localidade um vendedor ambulante, trazendo consigo copos de vidro de várias medidas.

Entrando num destes estabelecimentos convenceu o taberneiro a comprar-lhe meia dúzia de copos de quartilho, mostrando-lhe que depois da venda de cinquenta, teria um copo extra, para beber à sua saúde. Tal justificação foi baseada no fato destes copos terem o fundo um pouco mais alto e não ser fácil dar por isso. Tudo bem! Foram comprados seis copos. Depois das trindades daquele dia começaram a chegar os fregueses e o taberneiro testou o primeiro. A olho nu o copo novo não tinha diferença nenhuma do velho. O freguês leva o copo à boca, pregou-lhe uma dúzia de goladas, despeja o copo, bate com ele no balcão e grita ao taberneiro: – “Falta aqui vinho!…” E esta?!… A situação ia dando zaragata e os copos com medidas falsificadas passaram só a ser usados para servir os fregueses de Ponta Delgada. Se o taberneiro voltasse a ver o vendedor ambulante, partía-lhe os copos na cabeça, ou “quebrava-lhe os cornos”, como ele disse.

     Pense o leitor o que quiser, mas acredite que ao escrever esta crónica eu não estou com os copos. Veio tudo isto a propósito de ter encontrado duas gralhas num livro de um conceituado jornalista, defensor da cultura açoriana e conservador das nossas tradições insulares. Numa passagem ele explica aos seus leitores que um “dezasseis” de vinho é uma medida de um dezasseis avos de litro – por outras palavras: uma décima sexta parte de litro. Mais adiante, ao falar em quartilhos, volta a dizer asneira: “...um quartilho é uma quarta parte de um litro”.

     A leitura deste livro fez-me recordar a história anedótica que eu ouvi há muitos, muitos anos, que conta uma cena em que um fulano, numa loja qualquer, pediu um quilo de vinho. O empregado da loja, soltando uma gargalhada, disse ao freguês que o vinho não se pesava, media-se. -“Então, se faz favor, venda-me um metro de vinho.” – retorquiu-lhe o freguês.

     Ora, bem! Se gostamos de falar do passado, se recordar é viver, e como somos escravos da saudade, vale a pena buscar a verdade e refrescar as memórias:

     Depois das medidas métricas décimais terem sido introduzidas em Portugal, passaram a ser obrigatórias para uso oficial na segunda metade do século dezanove. Como todos nós sabemos, os portugueses não gostam de mudanças radicais. Por isso, mesmo que sejam obrigados a usar as coisas novas, comparam-nas sempre com as velhas. Por exemplo, o escudo deu lugar ao euro em 2002, mas ainda se fala em contos de reis. Ora, aqui está! O conto de reis: Um milhão de réis. Quando a república portuguesa, em 1911 fez substituir mil réis por um escudo, logo mil escudos passaram a ter a mesma importância de um milhão de reais, ou seja: um conto de réis. Naquele tempo usava-se “conto” em vez de “milhão”. Vejam lá como conservamos estas coisas nas lides do dia-a-dia, sem pensar nos seus quês e porquês. E quem de nós está satisfeito com o último acordo ortográfico? A minha resposta está vista neste texto. Por isso, voltemos aos copos:

     O litro quando passou a ser utilizado em Portugal, a ele foi arredondada a meia-canada. Portanto, uma canada é redondamente dois litros. O quartilho da canada é aquilo que se conhece por meio litro – o tal copo de vinho dos Açores, que na minha terra carinhosamente se dizia “copinho”. Um quarto de litro vem a ser um oitavo de canada –  o meio-copo, que também na minha terra de berço se chamava carinhosamente “meiozinho”. Por último, daquilo que a este texto interessa, vem o oitavo do litro – o tal dezasseis da canada, metade de meio copo, na minha terra. Um “dezasseis”, como dizia a minha gente.

    Se alguém tem sede, por favor, não se vire á canada, mas sim ao litro, ou ao quartilho para satisfação instantânea. Mas se preferir beber por uma ou duas horas, sugiro o “meiozinho”. Se está com vontade de beber todo o dia, a medida ideal é o “dezasseis”. Mas aqui fica um conselho: se conduzir não beba ou se beber não conduza, por favor. Assim seja! Pela sua segurança e pela vida dos outros. Haja saúde!

O dezasseis não me interessa,

O meiozinho também não.

O que me faz andar depressa

É o quartilho na mão.

XV Gala do jornal AUDIENCIA

Parabéns ao jornal Audiência pela realização da sua décima quinta gala anual. Uma iniciativa, sem dúvidas, digna de louvor, levando em conta tudo o que se relaciona com este evento. Tudo o que o evento faz girar em torno de si. No ano passado tivemos a honra de participar na gala e o que mais nos impressionou foi a pontualidade – o que se custa a presenciar nos nossos dias, em festas e espetáculos. Horas são horas. Bravo!

Distinguir individualidades que por algum motivo se tornaram notórias é dar-lhes impulso, um incentivo a continuarem sendo o que são, e vontade de seguir em frente. Por mais humilde que uma pessoa seja, sempre lhe cai bem um elogio ou uma distinção. Qualquer um destes é santo remédio para males depressivos e carga de alívio a cansaços. A Ribeira Grande está grata a Joaquim Ferreira Leite e a toda a sua equipa. Esta coisa de estreitar laços, ou derrubar barreiras, como diz o diretor do jornal, entre gente dos nortes (da metrópole e da ilha) é simplesmente espetacular. Fora de série é o facto de ter trazido aos Açores, em pleno inverno, mais de trezentas pessoas.

Um abraço, sr. Joaquim. Bem hajas!