RECORDANDO DONA ELVIRA

Ao entrar na sala número cinco deparámos com uma senhora alta, de cabelos aloirados, expressando as boas-vindas com um largo sorriso nos dentes. Era a Dona Elvira, de quem toda a gente dizia ser a melhor professora de matemática. Sim, aquela matéria que era um bicho de sete cabeças para tanta gente, mas que no ensinar daquela mestra não passava de uma brincadeira. Iríamos ver e pôr-à-prova a partir daquele momento se, realmente, era uma matéria complicada.

Depois da apresentação de cada aluno, a senhora professora introduziu-se a si mesma, e avisou os alunos sobre a necessidade da atenção absoluta nas suas aulas, principalmente no início do ano letivo. Acrescentou, dizendo que quando os alicerces estão sólidos a casa está segura. Se compreenderem as bases fundamentais o resto será uma brincadeira. Assim foi, durante aquele ano (1973-1974), e o outro que o seguiu.

Dona Elvira usava um método que não fazia parte do sistema, e só por si era especial. Nunca deixava ninguém ficar para trás. Pelo que me recordo, nas minhas turmas do primeiro e segundo anos do ciclo preparatório não houve “chumbos”. Nunca passava à frente de uma lição sem que todos a tivessem compreendido. Também fazia uso de um programa de pontos que, ao que parece, era inédito: se um aluno chegasse a uma conclusão antes de um problema ser resolvido em grupo ganhava um ponto; e se desse uma achega significante para outra resolução, também um ponto ganhava. Dois pontos daria um valor a mais (na escala de 1 a 20) nas notas do fim do período àqueles que sem eles não atingiriam os 14, ou qualquer coisa parecida com isto.

Pelas Quaresmas toda a gente queria brincar aos balamentos com a Dona Elvira. Eram tantos os alunos que com ela participavam nesta brincadeira, que ela até dava balamentos a rapazes e raparigas que nem constavam da sua lista. Depois das férias da Páscoa os sacos de amêndoas abundavam na sua secretária. Duvidamos o facto de ela ser a campeã relativa ao número daquelas unidades. Isso só dava a prova do quanto ela era querida e amada por todos aqueles que com ela lidavam. As amêndoas, enquanto havia, eram partilhadas com alunos no início das aulas. Assim, todos tinham o consolo de chupar e trincar. Primeiro chupava-se, depois trincava-se; e os dentes agradeciam. É que, as amêndoas da Moaçor não se podiam comparar de modo algum aos confeitos da mulher do sacristão, que mal entravam na boca logo se desfaziam, libertando açúcar e essência de funcho – uma espécie de petisco divino.

A primeira conta de poupança de muitos rapazes e raparigas foi instituída pela Dona Elvira, em 1973, na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, que naquela altura se situava quase em frente da igreja do Espírito Santo. Uns dias antes, quando se começou a estudar o assunto de juros e taxas, Dona Elvira combinou com seus pupilos, pelo menos com os elementos da minha turma, para trazerem consigo, na próxima aula, algum dinheiro. No mínimo vinte escudos, sabendo de antemão que nem todos haveriam de corresponder.  É que, naquele tempo uma nota de Santo António ainda tinha certo valor, e não era fácil para a maioria da rapaziada, muito menos da raparigada, arrancar das mãos dos pais tanto dinheiro de uma só vez. Visto que, um papo-seco recheado com queijo ou fiambre, na cantina da escola custava três escudos.

No dia combinado a aula que se esperava deu lugar a uma visita de estudo. Saímos da escola, fomos ao centro da vila, e em seguida evadimos a Caixa de Crédito. Depois de um acordo prévio com o gerente, Dona Elvira pediu para se abrir contas de poupança para todos os seus alunos ali presentes. Cada uma com vinte escudos. Vai-se a ver: somente três indivíduos tinham a quantia necessária, neste caso mínima, para a abertura da conta. O problema não era  de matemática, mas com matemática a professora resolveu:

Pagou do seu bolso 20$00 (vinte escudos) vinte e poucas vezes. Problema resolvido! E todos dali saíram com um livrinho de poupança daquela instituição. Chegando à escola, estas foram as palavras da senhora professora:

Não se precisam preocupar com o dinheiro que vos emprestei. Considerem uma oferta da minha parte. Mas mantenham a conta aberta, porque algum dia ela vos será útil; e sempre que puderem depositem nela mais dinheiro, para verem como os juros fazem a quantia crescer.

Nunca perdi de vista a Dona Elvira, porque esta senhora era um símbolo de várias perfeições na vila e arredores. Mas tentei por muitos anos nunca dela me aproximar. Uma questão de receio. Vergonha, talvez. Até que chegou ao ponto de ela me apanhar de surpresa enquanto eu lhe fazia uma revisão ao seu automóvel, a pedido do meu patrão, nas instalações da firma João Gouveia Moniz e Filhos, sua vizinha.

-Tu foste meu aluno! Tu és o Alfredo, filho do sr. José da Ponte, da loja do Mestre António Fona.

-Sim, senhora professora! E ainda tenho aquela conta aberta, na Caixa de Crédito.

A vergonha foi-se embora, e começámos a falar como dois velhos amigos, seguindo as regras do respeito e os  princípios da boa-educação. Daí em diante nunca mais evitei a Dona Elvira, e sempre que a avistava fazia questão de a cumprimentar.

Quanto à conta da Caixa de Crédito, sim, estava aberta e alimentada. Só foi fechada uns dias antes de eu vir para a América, com os escudos que vinte multiplicaram e que depois foram divididos por dólares. Isto é pura matemática! Muito obrigado por tudo, senhora professora!

Dona Elvira foi convidada de honra do nono Convívio Ribeiragrandense da Nova Inglaterra, que teve lugar a 14 de outubro de 2001, dando-nos a honra de estar presente no lançamento do livro Os Fusíadas (I volume), realizado no dia anterior, em East Providence.

Desta vez ficámos a saber que ela, em pleno gozo de reforma, para além de dar explicações em casa também dedicava-se ao desenho e à pintura. Mais tarde tivemos oportunidade de apreciar alguns dos seus magníficos trabalhos.

Os dados biográficos apontados nos excedentes da capa do livro das suas “Memórias”, os quais pelo último parágrafo se percebe tratar-se de uma mini-autobiografia, dizem o seguinte:

Maria Elvira Machado Melo nasceu na Ribeira Seca da Ribeira Grande, na casa onde ainda reside, a 3 de Junho de 1927.

   Em 1950 terminou simultaneamente o 7º Ano Complementar de Ciências e o curso do Magistério Primário.

   Exerceu as suas funções de Professora Primária durante 20 anos em algumas freguesias do Concelho da Ribeira Grande e dois anos na cidade de Ponta Delgada.

   Em 1956 foi convidada para ensinar, em acumulação, no Externato Ribeiragrandense, Matemática do 2º e 3º ciclos e por vezes Físico-química e Desenho até ao seu encerramento. Em 1972 passou a lecionar no 2º ciclo, na Escola Preparatória da Ribeira Grande. Exerceu 21 anos, reformando-se com 43 anos de serviço. Foi Diretora da Cantina, Diretora de Turma, Delegada da Disciplina de Matemática, Orientadora de Estágio e Presidente do Conselho Diretivo.

   Foi, na Ribeira Seca, Presidente da Conferência de S. Vicente de Paulo e catequista.

   Foi membro da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia durante quase 19 anos (…)

   Foi agraciada pelo Senhor Presidente da República, Dr. Mário Soares, em 10 de Junho de 1995, com o grau de Comendadora da Ordem de Instrução Pública.

   A 29 de Junho de 2006 recebeu a Medalha Municipal de Mérito, entregue pelo Presidente da Câmara, Dr. Ricardo Silva.

   Foi homenageada pelo Presidente da Junta de Freguesia da Ribeira Seca, Senhor Carlos Anselmo, a 29 de Junho de 2007 (…)

   A partir de 2008 começou a frequentar cursos na Universidade dos Açores – Programa de aprendizagem ao longo da vida, em salas do Teatro da Ribeira Grande, desde o início até ao fim dos mesmos. (…)

Aos 91 anos de idade, em 2018, Dona Elvira publica o seu primeiro livro, ao qual deu o título de “As Minhas Memórias”. Um rico documento, que para além de relatar por alto a vida da senhora professora, também se cruza com  factos e fatores indispensáveis a quem estuda o passado recente da nossa terra e da nossa gente, tendo uma linguagem rica, simples e clara, acessível a todos os níveis. É altamente recomendada a sua leitura, principalmente aos indivíduos que julgam que as oportunidades só caiem do Céu para alguns; ou pensam que “Nosso Senhor só dá chouriços a quem não tem cambeiros”.

Tendo conhecido pessoalmente a Dona Elvira, e mais ainda o trajeto da sua vida descrito nas suas “Memórias”,   sinto-me plenamente de acordo com o que diz Dona Maria Zenaide Borges Miranda, sobre a vida e obra da sua mestre e colega, no prólogo do mesmo livro:

“VIVEU A SUA VIDA EM PROL DOS OUTROS”.

Para nossa surpresa, em tempo de pandemia, e aos 94 anos de idade, Dona Elvira lança o seu segundo livro, em junho de 2021. Desta vez o título é “Como eu Ensino Matemática”.

Muitos parabéns, senhora professora. Haja saúde e forças constantes, porque esperamos ainda muito mais de si.

Como esta crónica já está alongada, decido-me ficar por aqui, até à leitura da revelação do segredo do ensino da Matemática. Já, agora, vou revelar-lhe o meu, de mais não ter aprendido: eu pensava que ia estragar inteligência estudando a Matemática. Enganei-me! Reconheço agora que inteligência é aquilo que sempre me faltou. Agora já nem preciso dela. E mais não digo…

Bem haja, Dona Elvira! Muitas felicidades. Um grande abraço de amizade e gratidão.

Fall River, Massachusetts, 30 de Março de 2022